A equidistância inviável. Artigo de Bruno Cava

(Foto: Frank Zimmermann | Unsplash)

28 Março 2023

"Reconfiguração dos âmbitos de atuação externa e interna do governo Lula pode alterar os posicionamentos do Brasil na guerra na Ucrânia?", escreve Bruno Cava em artigo publicado por Open Democracy, 22-03-2023.

Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e on-line por meio do canal Horazul (YouTube). É autor de A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), A constituição do comum (Revan, 2017), com Alexandre Mendes, e de A vida da moeda: crédito, imagens, confiança (Maudad, 2020), com Giuseppe Cocco.

Eis o artigo.

Lula disse “não” ao pedido de Scholz de fornecer munição oriunda dos depósitos do Exército brasileiro para serem usadas nos tanques Leopard fornecidos à Ucrânia. Lula também disse “não” às pressões de seus parceiros do bloco dos BRICS, para alinhar-se com eles na votação da Resolução da ONU n. ES-11/L.7. Em 16 de fevereiro, o Brasil votou com os outros 140 Estados-membros das Nações Unidas que exigiram a desocupação “integral, imediata e incondicional” dos territórios ucranianos tomados pelas tropas russas. O voto do Estado brasileiro foi acompanhado por seus parceiros regionais com presidentes de centro-esquerda, como a Argentina (sob a presidência do kirchnerista Alberto Fernandéz), o Chile (Gabriel Boric), o México (López Obrador) e a Colômbia (Gustavo Petro). Todos eles votaram pela resolução que condena a Rússia em termos peremptórios. Em contrapartida, membros dos BRICS, China, Índia e África do Sul se abstiveram na votação dessa mesma Resolução. O presidente pertencente ao Partido dos Trabalhadores, recém-empossado para o seu terceiro mandato depois de quatro anos de governo da extrema-direita no Brasil, se equilibra entre a condenação formal da invasão de fevereiro passado pela Rússia e a recusa, seja em participar de sanções econômicas, seja em se envolver direta ou indiretamente na guerra na Ucrânia.

Brasil pró-multilateralidade

Na política externa brasileira, a defesa da multipolaridade nas relações internacionais historicamente significa a defesa da própria ONU, enquanto instância pluralista para a arbitragem das disputas e a promoção do direito internacional nas questões entre os Estados. O Estado brasileiro vem advogando o fortalecimento da Assembleia Geral, bem como a reforma dos poderes do Conselho de Segurança. Além disso, o Brasil vem pleiteando há algumas décadas a sua inclusão entre os membros permanentes do Conselho. O argumento principal é que, no século XXI, com a maior distribuição do poder decisório pelo globo, não há mais motivo para Estados como França e Reino Unido continuarem como membros permanentes ao passo que Brasil e Índia, não. Além de signatário do Tratado de Não-Proliferação nuclear, o Estado brasileiro igualmente adere ao tratado do Tribunal Penal Internacional – no qual, aliás, o ex-presidente Bolsonaro (2019-22) foi recentemente denunciado por crimes contra populações indígenas e ambientais na Amazônia, cometidos durante o exercício do mandato presidencial.

Independente de quem seja o presidente em exercício, o corpo técnico da chancelaria brasileira, formado por diplomatas de carreira, costuma exercer um contrapeso aos rompantes mais político-ideológicos na tomada de posicionamento por parte do chefe de Estado. Bolsonaro, um nostálgico do último período da ditadura cívico-militar no Brasil (1964-85), compartilha afinidades de valores com Putin, como o ultraconservadorismo religioso, a defesa da família nuclear e a redução da forma de fazer política ao paradigma da guerra. Em fevereiro de 2022, quando Putin determinou a invasão de larga escala da nação vizinha, os meios de mídia da direita organizada no Brasil começaram a retratar Bolsonaro como um genial estrategista, ao lado de Putin. Mesmo assim, o bom relacionamento interpessoal entre os presidentes da Rússia e do Brasil não foi suficiente para impedir que, em março, o Estado brasileiro votasse contra a invasão, na resolução sobre a invasão (n. ES-11/1). Em boa medida, a contenção do alinhamento ideológico entre Putin e Bolsonaro se deu em razão do prestígio e da capacidade de manobra que o corpo diplomático brasileiro detém.

De um ponto de vista técnico, ao buscar a equidistância, Lula não deixa de seguir princípios tradicionais caros às relações internacionais brasileiras: não-intervenção, solução pacífica dos conflitos e prevalência dos direitos humanos, que estão até mesmo inscritos como cláusulas pétreas da Constituição Federal. À parte do posicionamento de condenação formal na ONU, Lula busca não tender nem para o lado de Putin, nem de Zelensky, possivelmente na expectativa de cacifar-se para a posição de mediador. A calibragem do posicionamento de Lula semelha ao papel de intermediador projetado em 2009, quando montou um grupo paralelo de tratativas junto da Turquia para negociar a redução dos estoques de urânio enriquecido do Irã. Em entrevista dada à revista Time, em maio de 2022, Lula afirmou que Zelensky também tem culpa pela situação de guerra e que o presidente ucraniano precisa mudar a atitude diante da guerra. Neste ano, já empossado como presidente, ao recusar fornecer munição aos ucranianos, Lula apelou ao provérbio popular que “quando um não quer, dois não brigam”, dando a entender que nenhum dos dois lados está interessado em retornar à mesa de negociações. Conforme a anunciada plataforma de recolocar o Brasil no mapa múndi da diplomacia, assim revertendo a tendência isolacionista dos anos Bolsonaro, Lula propôs um “Clube da Paz”. O grupo seria composto por Estados “neutros”, com os líderes de China e Turquia, a fim de facilitar a retomada das conversas diretas entre Rússia e Ucrânia. O anúncio lulista foi comemorado pelos membros dos BRICS, inclusive pela Rússia, assim por membros do PT e apoiadores, que consideram Lula um importante player global retornando à ativa. Entre os aliados dos ucranianos, à primeira vista, apenas Macron acenou para a proposta lulista de paz. O presidente francês pontuou no encontro do G-20 em Nova Déli como a unilateralidade das ações da Europa e Estados Unidos no apoio econômico e militar à Ucrânia levou-os a “perder a confiança do Sul Global.

A interdependência russo-brasileira

Por trás das declarações e humores ideológicos de Lula e Bolsonaro, subsiste uma razão pragmática mais profunda para a reticência com que o Estado brasileiro vem se posicionando no conflito. Isto explica, em parte, a constante dosagem das críticas a Putin e a limitação das condenações à Rússia ao âmbito formal e declaratório. O ex-presidente do Brasil e o atual detêm entre as suas bases parlamentares importantes segmentos de interesse ligados ao agronegócio, que corresponde a nada menos do que cerca de 26% do PIB e 48% das exportações totais brasileiras ou USD 160 bilhões/ano. A produtividade do agronegócio está condicionada à aplicação massiva de fertilizantes, sobretudo adubos NPK (nitratos, fosfatos, sulfatos). No cômputo total, o Brasil é o maior importador de NPK do mundo e a Rússia é atualmente o país de origem da maior parte das importações, atendendo a 22% da demanda, conforme dados de 2022. Ao longo das últimas duas décadas, a indústria agropecuária nacional não se preocupou em desenvolver autossuficiência na produção de fertilizantes, pois sempre foi considerada uma commoditie de fácil acesso, sendo mais barato comprá-la no mercado globalizado do que internalizar sua cadeia produtiva.

Bolsonaro foi o último chefe de Estado a visitar oficialmente o Kremlin, em 15 de fevereiro de 2022, logo antes da invasão, quando a escalada de tensões na fronteira já apontava para a ação drástica assumida pela Rússia. O gesto do ex-presidente não foi apenas para manifestar simpatia ideológica ao companheiro da direita russa, como também para assegurar o compromisso russo-brasileiro na manutenção da relação comercial bilateral. Antecipando-se ao aprofundamento das sanções econômicas incidentes sobre a Federação Russa, num crescendo desde a anexação da Crimeia em 2014, Bolsonaro cuidou do interesse do agronegócio em assegurar o afluxo de fertilizantes russos, item número um da agenda do encontro entre os dois países. Além de importar uma quantidade enorme de adubos NPK dos fornecedores russos, o agronegócio brasileiro exporta alimentos para a Rússia, assim equilibrando a balança do comércio bilateral. Na ocasião, mesmo com as tensões internacionais prestes a explodir, com o visível acúmulo de tropas russas nas fronteiras com a Ucrânia, Bolsonaro não teve pudor de ressaltar o “casamento perfeito” entre eles. Bolsonaro acentuou o caráter de interdependência decorrente das vantagens comparativas recíprocas, entre Brasil e Rússia. Ou seja, a seis dias do início da maior guerra europeia desde 1945, iniciada por ordem do presidente da Rússia, Bolsonaro ainda pontuou que “Putin busca a paz”.

Eleito por pequena margem, numa eleição marcada pela polarização violenta, o governo Lula dispõe de correlação de forças desfavorável para contrastar os interesses do agronegócio, com seu considerável poder econômico e político em todas as esferas de governo, nacional ou regional. Mesmo que não houvesse limitações políticas dadas pela conjuntura de polarização, é provável que Lula não quisesse afrontar tais interesses. Durante os seus dois primeiros mandatos (2003-10), o boom do preço das commodities foi crucial para ampliar o gasto público. Com a ampliação, o governo Lula pôde direcionar parte do orçamento às políticas massificadas de transferência direta de renda, tal como o programa social que virou sua marca registrada, o Bolsa Família. Hoje, em um cenário macroeconômico piorado em relação à década de 2000, além de politicamente mais instável, com uma oposição enraizada pela sociedade e nas instituições, impactar o setor estratégico do agronegócio poderia acelerar o desmanche dos fundamentos de governabilidade. Ademais, do ponto de vista econômico, sem a arrecadação das exportações de produtos do agronegócio, Lula dificilmente vai ter condições de reabrir um espaço fiscal para realizar políticas sociais e melhorias nos serviços públicos prestados à população, que foram promessas centrais da sua campanha.

Politizar o Sul Global

As limitações do governo brasileiro são semelhantes às de outras economias emergentes com populações mais pobres. A principal relutância dos governos do Sul Global em se envolver no conflito decorre da ausência de margem política ou socioeconômica para sacrifícios de suas próprias sociedades, seja para apoiar a Ucrânia, seja a Rússia. A maior parcela da população global enfrenta problemas concretos de apelo mais imediato, como miséria, fome, falta de saneamento básico, crise na saúde pública, inflação de gêneros básicos e acirramento do conflito social. Os Estados-nações do Sul Global, onde se situa a maior parcela das populações vulnerabilizadas pela crise, não têm condições de arcar com os custos decorrentes de uma guerra que não plantaram nem a estão irrigando de armas e discursos beligerantes. Sejam eles custos diretos, através de repasses materiais e armas ou de um eventual apoio financeiro; sejam custos indiretos, decorrentes dos efeitos colaterais das sanções ou de perturbações da delicada malha das interdependências, o que pressiona pelo aumento de preços no mercado globalizado. Para quem vive numa sociedade repleta de mazelas e problemáticas endêmicas, um caldeirão prestes a ebulir, de fato, a guerra na Ucrânia parece um problema remoto.

A percepção enunciada pelos líderes dos Estados do Sul Global é que os países mais ricos do Norte estão monopolizando a agenda durante encontros, reuniões e organismos internacionais, em detrimento das prioridades das populações mais necessitadas, que são maioria e se concentram fora da Europa. A crítica deles é baseada em uma sensação comum de desalento e abandono das prioridades mais imediatas das sociedades, enquanto Europa e Estados Unidos drenam os esforços internacionais para armar e ajudar a Ucrânia. Aliás, segundo os detratores mais ácidos do esforço ocidental em apoio à resistência ucraniana, não fosse esta uma guerra europeia, combatida na Europa e entre europeus, não teria sido aureolada com o mesmo caráter sacrossanto do que foi pelas mídias. Não seria, segundo essa objeção, tratada como divisor de águas entre um antes e um depois do curso da globalização, como se as demais conflagrações mundiais, suas guerras civis e catástrofes humanitárias em andamento, tivessem se tornado, de um dia para o outro, meras coadjuvantes do confronto principal.

Com as linhas desse raciocínio defensivo e reativo, que fala em nome dos pobres do Sul Global, Lula adere à crítica de Estados com longa folha corrida de intervenções em outros países, como os Estados Unidos e a União Europeia, que não teriam moral para cobrar dele, presidente do Brasil, o sacrifício do “casamento perfeito” com a Rússia, muito menos rifar os planos do Brasil de balancear o painel de suas alianças ao participar de um bloco alternativo ao hegemônico ocidental. Ao dizer “não” tanto aos parceiros do BRICS, quanto aos pedidos por envolvimento mais incisivo advindos de Scholz ou Biden, Lula reabriria um espaço geopolítico cujo análogo, nos tempos da Guerra Fria, tinham sido as iniciativas de Nehru ou Sukarno, conducentes à conferência dos países não-alinhados de Bandung, em 1955. O Estado brasileiro, afinal de contas, é relativamente desarmado e historicamente pacífico no plano externo, sem aspiração a disputar hegemonia. Sua tradição desde pelo menos a fundação da ONU consiste em contribuir para a construção de uma ordem de Estados que, no longo prazo, favoreça a democratização da governança mundial e a redução das desigualdades regionais e internas.

Contudo, todo esse bloco discursivo suscitado pelo Sul Global contém uma contradição. Embora seja cortante para contra-argumentar com líderes de Estados Unidos, Alemanha ou França, o mesmo não procede quando endereçado à Ucrânia. A jovem república ucraniana, país mais pobre do Leste Europeu e com um passado colonial tão lancinante quanto da África ou América Latina, não é enquadrável como uma nação do Norte Global. A solidariedade horizontal a ser manifestada entre Brasil e Ucrânia seria uma ação reconstrutiva do eixo Sul-Sul, independente do posicionamento das velhas potências mundiais (EUA) ou aspirantes (China). Diante da antiga metrópole, a Ucrânia não deixa de ser um país do Sul Global. Em artigo de 1991, E.P. Thompson alertava sobre como o uso da expressão “Terceiro Mundo” tinha se esvaziado, tornando-se pretexto para relativismo cultural, até mesmo sentimental.

Em 2023, em vez de apelar para a gramática do “Sul Global” para relativizar a brutalidade contra as dissidências e o fechamento autoritário de grupos dirigentes no Irã, na Coreia do Norte ou na Nicarágua – como por vezes o Partido dos Trabalhadores e o próprio Lula fazem – o caso é usar essa noção para politizar a guerra na Ucrânia. Isto significa sair da dicotomia Ocidente x Não-Ocidente, que tanto convém ao discurso antiocidental do Estado agressor, para reconhecer a existência do povo ucraniano enquanto sujeito histórico, capaz de elaborar um ponto de vista sobre os processos de opressão. O povo ucraniano é o maior vitimado e ao mesmo tempo quem preenche a resistência de força humana e moral. Desse modo, a noção de Sul Global ganharia um sentido palpável, permitindo ao governo brasileiro identificar-se com outro povo periférico, que em vários períodos de sua história sofreu os efeitos do colonialismo e da opressão estrangeira.

Isto é, a saída para a dicotomia se dá em diagonal em relação a dois piores. Por um lado, evita-se a contraposição hipócrita entre democracias x autocracias, como se Turquia ou Arábia Saudita, aliados dos EUA e da OTAN, fossem Estados democráticos de direito; por outro lado, não se recai em um relativismo cultural igualmente hipócrita. Este justifica a inviabilização das oposições internas e o fechamento autoritário do regime da República Popular da China, com seu Politburo com 25 homens e nenhuma mulher, em nome de um mistificado “conceito chinês” de democracia. A gramática terceiromundista dos anos 1970 seria assim reciclada, de modo concreto, como “Sul Global”, ao se enxergar na difícil e sofrida resistência ucraniana uma luta de libertação nacional. É preciso solidarizar-se primeiro com ela, em vez de se solidarizar com a potência invasora e agressora, que conduz uma guerra inteiramente no território da Ucrânia e contra a população ucraniana. Isto permitiria ao Brasil escapar da dicotomia esvaziada entre Ocidente e não-Ocidente e desse modo assumir um protagonismo, abrindo um espaço de formulação e intervenção que, até agora, não existe. Além disso, retiraria a Ucrânia da condição de ausente do discurso predominante que vem sendo elaborado pelos Estados do “Sul Global” ou em nome dele, ora reduzida à vítima de uma ocidentalização perversa, ora à de idiota útil das forças da OTAN.

Tensões e dilemas

Apesar da aparência de coerência argumentativa, tensões de toda sorte perpassam o posicionamento calibrado pelo Brasil até aqui, com Bolsonaro e depois Lula. Em primeiro lugar, está cada vez mais difícil sustentar a equidistância entre Putin e Zelensky. Até certo ponto, o constructo narrativo se apoia sobre o fato que, mesmo a invasão sendo flagrantemente ilegal à luz do direito internacional, no momento em que recebeu o apoio militar da OTAN, a Ucrânia teria “nivelado o jogo”. Ou seja, com o apoio militar dos 30 países da OTAN, o conflito teria se simetrizado, não cabendo mais falar em agressor e agredido, mas em duas partes beligerantes simétricas. Apesar disso, o aprofundamento das apurações dos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos pela Rússia na Ucrânia, como em Bucha, Borodyanka e Izyum, vem erodindo qualquer tentativa de equidistância. Como Lula poderia se apresentar como mensageiro da paz, à frente de um país historicamente comprometido com os direitos humanos, ao passo que se coloca em um meio termo entre opressores e oprimidos? Tal dilema decorrente da assimetria dos crimes cometidos, inclusive, repercute internamente no Brasil, pois um dos principais tópicos de crítica à esquerda de Lula consiste em criticar a sua pretensão de árbitro universal. Segundo esse rol de críticas, o ex-sindicalista exerceria no Brasil o papel de conciliador de classes, sempre em busca de um meio termo entre exploradores e explorados. Em vez de representar as camadas populares, estaria antes exercendo um papel de pacificador do conflito social, atrás de um quimérico esquema ganha-ganha: ganham as elites, ganham os trabalhadores. Na guerra na Ucrânia, esse esquema de conciliação lulista se chocaria frontalmente com a existência de crimes contra a humanidade, que não poderiam ser simplesmente esquecidos pelo lado cuja população os tenha sofrido.

Além disso, se o Brasil desde a fundação da ONU defende a multilateralidade e a maior distribuição de poderes, o discurso de Putin é abertamente beligerante e multi-imperialista. Seus pronunciamentos e artigos são ostensivos em contestar a ordem internacional vigente como se ela não passasse de secreção de uma unipolaridade hegemônica norte-americana. Nessa lógica, haveria um predomínio de valores ocidentais no modo prático como funcionam as instituições e os organismos internacionais, em detrimento de outras cosmovisões, como a russa, a chinesa ou a indiana. Com base nesse argumento culturalista, Putin contesta a legitimidade da mesma estrutura de direitos internacionais e humanos que o Estado brasileiro, desde 1945, é um dos apoiadores. Consistentemente, o Brasil defende a colocação em prática, isto é, a efetividade das normas inaplicadas e sua validade para todos, em vez de deslegitimar as normas em si mesmas, como faz Putin. Na concepção enunciada de conflito de civilizações por parte de Putin, o mundo futuro deveria ser redesenhado não pelo multilateralismo, mas por um acordo entre as grandes potências nucleares, que traçariam entre si as novas linhas de zonas de influência, à semelhança do que ocorreu na Conferência de Ialta (1945), na fase final da Segunda Guerra Mundial. Tal futuro contido no imaginário putinista não interessa ao Brasil, pois estaria condenado a escolher de quem seria colônia: China ou EUA.

Outra zona de grande tensão no interior do discurso brasileiro com Lula se dá na questão do agronegócio. Sem dúvida, a saúde do comércio internacional de fertilizantes e alimentos é um elemento central para a estabilidade monetária, a retomada econômica e a capacidade de investimento público do governo nos próximos anos. Contudo, as franjas de expansão do agronegócio têm sido responsáveis pelo aumento do desmatamento da Amazônia e pela destruição dos ecossistemas do cerrado. O avanço do agronegócio também provoca passivos ligados à segurança alimentar da população e à concentração de terras e rendas do campo. Por mais que hoje haja um marketing milionário voltado a demonstrar a conciliação virtuosa entre agronegócio e meio ambiente, os movimentos ecossocialistas brasileiros discordam e, na contramão, propõem uma quebra de paradigma. A proposta da esquerda ambientalista é substituir o regime de colossais plantations monocultoras pela matriz do minifúndio familiar; bem como substituir a presença intensiva de transgênicos e fertilizantes em toda a cadeia produtiva, pela agricultura orgânica e sustentável. Contudo, na conjuntura, qualquer questionamento mais direto ao setor do agronegócio colocaria o governo sob pressão oriundas tanto de cima, a partir das elites agrocapitalistas e sua bancada atuante nos parlamentos; quanto de baixo, ao comprometer o volume de arrecadação de divisas que o governo do PT conta para aumentar o nível do investimento público. A solução ao dilema, obviamente, ainda não existe pronta, dependendo ainda de um terreno de criação de alternativas e lutas.

Dentro do governo Lula, lideranças como a ministra do meio ambiente Marina Silva, defensora de uma proposta mais moderada de economia ecológica, é crítica do padrão de desenvolvimento implicado no agronegócio. Embora a problemática socioambiental venha de antes, passando pelos governos anteriores do PT, com Bolsonaro houve uma aceleração, quando a indústria recebeu passe livre para devastar ecossistemas e violentar comunidades indígenas. Dentro do governo Lula, duas tendências prenunciam um embate futuro: de um lado, quem propugna pela volta aos “anos felizes”, com a reprodução da fórmula de sucesso dos anos 2000, isto é, mediante a exportação de commodities para gerar excedentes então reinvestidos nas políticas sociais; por outro lado, quem defende uma reorientação reformista, mirando em outro padrão de desenvolvimento pós-Acordo de Paris, voltado à bioeconomia, aos créditos de carbono, às matrizes renováveis e ao hidrogênio verde (em cuja pesquisa e implementação a Alemanha é parceira). Enquanto tais tensionamentos não se resolvem em função das decisões estratégicas e das pressões políticas, Lula vai preferindo ficar com os dois mundos: o mesmo agronegócio de sempre voltado para a exportação, e os proponentes de uma modernização pela via da Economia Verde. Essa disputa, que também envolve lutas a partir de movimentos externos ao governo, vai definir o destino da interdependência entre Brasil e Rússia (ou China). Os grandes volumes de importação de fertilizantes e de exportação de alimentos são variáveis do tipo de desenvolvimento a ser seguido ou revisado.

Vale mencionar um último dilema para o posicionamento de Lula sobre a guerra, de cunho mais político-ideológico. Ligado à tradição da esquerda latino-americana nacional-desenvolvimentista, a tendência predominante no Partido dos Trabalhadores é identificar nos Estados Unidos o maior risco às pretensões brasileiras por liderança regional e desenvolvimento autônomo. Os EUA seriam o inimigo maior levando em conta o passado da Doutrina Monroe, as circunstâncias do golpe de 1964 e as prescrições derivadas das teorias marxistas da dependência ou do desenvolvimento desigual. No entanto, é preciso fazer a análise concreta da situação concreta. Em 2023, o mesmo governo norte-americano contribuiu para desativar a bomba relógio montada por aliados institucionais de Bolsonaro e uma extrema-direita social radicalizada para o caso da derrota eleitoral.

Tendo vivenciado a experiência da invasão do Capitólio norte-americano pelos trumpistas radicalizados, em 6 de janeiro de 2021, Biden se antecipou às articulações golpistas no Brasil, enviando o diretor da CIA em pessoa e outros emissários aqui. Entre 2021 e 2022, os enviados especiais do presidente democrata reuniram-se com membros do governo brasileiro, generais do Exército e o próprio Bolsonaro, a fim de dissuadi-los de planos golpistas. Lula foi empossado graças à vitória de uma coalizão democrática ampla, que encampou o um discurso de defesa da democracia contra a eclosão da guerra civil, em vários pontos similar ao que Biden e o Partido Democrata utilizaram ao longo da acirrada campanha eleitoral contra Trump. Por uma convergência de conjuntura, mas com desdobramentos importantes nos próximos anos, Biden e Lula estão do mesmo lado em defesa das instituições da democracia liberal, em guarda diante da eclosão de tumultos liderados pela extrema-direita organizada (trumpista ou bolsonarista). Afinal de contas, a emergência das novas direitas é uma tendência mundial, com efeitos entrecruzados nos EUA e no Brasil.

Como previsto, o episódio brasileiro do Capitólio aconteceu, em 8 de janeiro de 2023, com a invasão e depredação dos prédios que sediam os poderes do Estado em Brasília. Mas a montanha pariu um rato. Com um respaldo tímido, insuficiente, por parte de agentes de forças de segurança ou lideranças políticas da direita, a insurreição dos bolsonaristas foi desarticulada e em poucos dias reprimida. Como retribuição à defesa da legitimidade do resultado e do Estado de direito no Brasil, no começo de fevereiro, Lula visitou oficialmente a Casa Branca para frisar que, quanto à defesa da democracia contra as novas direitas autoritárias, está junto de Biden e conta com ele.

Tudo somado, o quanto a reconfiguração dos âmbitos de atuação externa e interna do terceiro governo Lula vai alterar os posicionamentos do Brasil na guerra na Ucrânia é um problema em aberto, além de ser terreno para a repolitização do Sul Global e do sentido da democracia na atualidade, em meio às tendências e antagonismos da globalização em crise.

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