18 Dezembro 2024
A autobiografia do papa, que será lançada em 14 de janeiro em mais de cem países, é intitulada “Spera”. Nesse trecho, que publicamos com exclusividade, Bergoglio fala de sua infância no bairro Flores, Buenos Aires.
O artigo de Papa Francisco é publicado por la Repubblica, 17-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Conheci o lado mais sombrio e complicado da existência, um e outro juntos no mesmo bairro. Na periferia, os padres vivem o Evangelho entre os descartados de uma economia que mata”.
O bairro era um microcosmo complexo, multiétnico, multirreligioso e multicultural. Em nossa família, sempre tivemos ótimas relações com os judeus, que a gente chamava de “os Russos” em Flores, porque muitos vinham da região de Odessa, onde vivia uma comunidade judaica muito grande, que na Segunda Guerra Mundial seria atingida por um enorme massacre pelas forças de ocupação romenas e nazistas. Muitos clientes da fábrica onde papai trabalhava eram judeus, empregados no setor têxtil, e muitos eram nossos amigos.
Da mesma forma que, em nossa turma de crianças, tínhamos vários amigos muçulmanos que, para nós, eram “os Turcos”, já que, em sua maioria, haviam desembarcado com passaportes do antigo Império Otomano.
Eles eram sírios e libaneses, e depois iraquianos e palestinos. O primeiro periódico em língua árabe em Buenos Aires data justamente do início do século XX.
“O Turco vai vir? O Russo também vai vir?” No bairro da minha juventude, as diferenças eram a normalidade, e a gente se respeitava [...]. Assim como o mercado de rua, o bairro era uma concentração de humanidade diversificada. Trabalhadora, sofredora, devota, alegre.
Havia quatro “solteironas”, as irmãs Alonso, mulheres devotas de origem espanhola que haviam emigrado para La Plata e que eram bordadeiras habilidosas, com uma técnica requintada. Um ponto e uma oração, uma oração e um ponto.
Mamãe mandou minha irmã aprender com elas, mas Marta ficava entediada e protestava: “Mamãe, mas elas nunca falam, não dizem uma palavra, só rezam! [...] Quase na esquina da nossa rua havia um salão de cabeleireira com um apartamento anexo; o nome da cabeleireira era Margot, e ela tinha uma irmã que era prostituta.
Ela combinava aquela atividade com aquela de xampu, corte e penteado. Eram pessoas muito boas, às vezes até a mamãe ia arrumar o cabelo lá. Um dia, Margot teve um filho. Eu não entendia quem era o pai, o que me deixava curioso e intrigado, mas o bairro não parecia se importar muito.
Naquele mesmo prédio, em outro apartamento, morava um homem casado com uma mulher que havia sido dançarina de revista, e ela também tinha fama de prostituta: ainda jovem, morreu de tuberculose, desgastada por aquela vida. Lembro-me da tristeza apressada daquele funeral: o marido parecia mal-humorado e distante, recolhido em seu egoísmo, preocupado apenas com que a doença não o contaminasse e com a nova mulher que substituiria a falecida. A mãe daquela senhora, Berta, uma francesa, também havia sido dançarina e dizia-se que tinha se apresentado nos clubes noturnos de Paris; agora ela trabalhava como empregada na casa de outras pessoas, por horas a fio, mas tinha um porte e uma dignidade que impressionavam.
Desde criança, também conheci o lado mais sombrio e complicado da existência, um e outro juntos, no mesmo quarteirão. Também o mundo da prisão: as escovas que usávamos para as roupas eram artigos que comprávamos dos detentos da prisão local, e foi assim que percebi pela primeira vez a existência daquela realidade.
Duas outras garotas da vizinhança, irmãs, também eram prostitutas. Mas eram de outro calibre: marcavam encontros por telefone e eram buscadas de carro. A gente as chamava de “la Ciche” e “la Porota”, e todos no bairro as conheciam. Os anos se passaram, e um dia, quando eu já era bispo auxiliar de Buenos Aires, o telefone tocou no episcopado: era la Porota me procurando. Eu a havia perdido completamente de vista, não a via desde que era um garotinho. “Ei, você não se lembra? Soube que o nomearam bispo, queria lhe ver!”. Ela é um rio em cheia. Venha, respondi e a recebi na residência episcopal, eu ainda estava em Flores, devia ser 1993.
“Sabe”, ela me disse, ”trabalhei como prostituta em muitos lugares, até mesmo nos Estados Unidos. Ganhei dinheiro, depois me apaixonei por um homem mais velho, foi meu amante, e quando ele morreu, mudei de vida. Agora tenho uma pensão. E vou dar banho em velhinhos e velhinhas em lares de idosos onde não têm ninguém para cuidar deles. Eu não vou muito à missa e com meu corpo fiz de tudo, mas agora quero cuidar de corpos com que ninguém se importa”.
Uma Madalena contemporânea. Ela me conta que sua irmã, la Ciche, também mudou de vida e passa o tempo rezando na igreja: “Diga a ela que precisa mexer o traseiro e fazer algo pelos outros!” Ela usava uma linguagem pitoresca e criativa, quatro palavrões em cada cinco palavras. E estava doente.
Algum tempo depois, quando eu já era cardeal em Buenos Aires, la Porota me ligou para dizer que gostaria de festejar com suas amigas e perguntou se eu poderia ir rezar uma missa para elas na paróquia de Santo Inácio. Eu disse que sim, é claro, me perguntando quem poderiam ser aquelas amigas. “Mas venha mais cedo, pois muitas querem se confessar”, acrescentou la Porota. Naquela época, eu me encontrava com frequência com o padre Pepe, José de Paola, um jovem padre que eu conhecia desde o início do meu episcopado e que desde 1997 era o pároco na Virgen de Caacupé, na Villa 21. Ele é um homem de Deus, um dos padres que sempre prestaram seu serviço nas “villas miséria”, as favelas que constelam Buenos Aires, há cerca de trinta apenas na capital e cerca de mil em toda a província. As favelas são uma concentração de humanidade, formigueiros com centenas de milhares de pessoas. Famílias que, em sua maioria, vêm do Paraguai, Bolívia, Peru e do interior do país. Elas nunca viram o Estado ali, e quando o Estado está ausente por quarenta anos, não fornece casas, eletricidade, gás ou transporte, não é difícil que uma organização paralela seja criada em seu lugar. Com o tempo, as drogas começaram a circular em grande escala, e com elas vieram a violência e a desintegração familiar.
O “paco”, a “pasta de coca”, o que resta do processamento da cocaína para os mercados ricos, é a droga dos pobres: um flagelo que multiplica o desespero. Ali, naquelas periferias que para a Igreja devem ser cada vez mais o novo centro, um grupo de leigos e sacerdotes como Pepe vivem e testemunham o Evangelho todos os dias, entre os descartados de uma economia que mata.
Aqueles que dizem que a religião é o ópio do povo, uma história tranquilizadora para alienar as pessoas, deveriam primeiro dar uma volta pelas favelas: veriam como, graças à fé e a àquele empenho pastoral e civil, progrediram de maneira impensável, mesmo em meio a enormes dificuldades. Também experimentariam uma grande riqueza cultural. E perceberiam que, assim como a fé, todo serviço é sempre um encontro, e que somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres. Quando alguém diz que eu sou um papa “vileiro”, eu só rezo para que eu seja sempre digno desse apelido. Encontrar o Padre Pepe é bom para minha alma e minha vida espiritual. Com o tempo, nos tornamos cada vez mais amigos.
Naquele ano, acho que era o 2001, Pepe já era padre de favela há algum tempo e estava passando por um período complicado e difícil, uma crise em sua vocação sacerdotal, que ele mesmo contaria mais tarde. Ele falou francamente com seus superiores, pediu para ser dispensado do exercício do sacerdócio e foi trabalhar em uma fábrica de calçados. Quando ele me contou sobre isso, eu simplesmente lhe disse: venha me ver quando quiser. E ele aceitou. Mais de uma vez, quando saía do trabalho, gastava umas duas horas para vir até a catedral. Eu o esperava, abria a porta, o escutava e a gente conversava. Mas sempre em liberdade. Um encontro após o outro, um mês após o outro, o tempo passou, até que certa noite ele chegou e disse: “Padre, aqui estou... gostaria de celebrar missa”. Nós nos abraçamos. Você quer que a celebremos juntos no dia 20 de julho, o dia da Fiesta del Amigo? Ele ficou muito feliz. Então vamos fazer isso na Santo Inácio, eu disse: vou rezar a missa lá porque uma senhora de Flores me pediu.
Então fomos juntos. Fomos da arquidiocese pela Calle Bolívar e chegamos à igreja: eram todas ex-prostitutas e prostitutas do “sindicato”. E todas queriam se confessar. Foi uma celebração belíssima. Também la Porota estava feliz, quase comovida.
Ela me chamaria uma última vez, algum tempo depois, quando estava no hospital.
“Eu pedi que você viesse para que pudesse me trazer a unção dos enfermos e a comunhão, porque desta vez não vou escapar, sabe”. Tudo isso entre um xingamento contra um médico e uma descompostura a outra paciente; ela não havia perdido o brio, nem mesmo agora que estava nas últimas. “Genio y figura hasta la sepultura”, dizemos na Argentina.
Mas ela se foi bem, como “os publicanos e as meretrizes” que “entram adiante nós no reino de Deus” (Mt 21,31). E eu tive grande afeto por ela. Mesmo agora, no dia de sua morte, não me esqueço de rezar por ela.
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Aquela humanidade que encontrei entre as prostitutas. Artigo de Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU