26 Outubro 2024
"Há várias razões pelas quais uma unidade familiar é constituída. Raramente ocorre nas Escrituras um encontro romântico entre duas pessoas: o padrão básico, mas não universal, é a pessoa feminina não ter opção de escolha e ser passiva no processo", escreve Eduardo Ribeiro Mundim.
Eduardo Ribeiro Mundim é médico endocrinologista, formado em 1986, especialista em 1990. A partir de 2017 iniciei o acompanhamento de pessoas transgêneres através do SUS em Belo Horizonte (Hospital Eduardo de Menezes / FHEMIG) e também na clínica privada. Protestante por criação e opção consciente, presbítero discente da Igreja Presbiteriana Unida, procuro constantemente articular a fé cristã com as questões de gênero e de afetividade. A articulação se tornou, e permanece, necessária pelo contato profissional com mais de 1000 pessoas trans de 2017 até o 2023. Fruto deste trabalho foi o livro "Transgêneros e Fé Cristã", publicado em 2021, em sua segunda edição.
A defesa da família é uma justificativa frequente para o combate a qualquer possibilidade de aceitação de pessoas LGBTQIAPN+. É dito que estas, por não estarem naturalmente enquadradas dentro do referencial cis e heteronormativo, constituem uma ameaça ao padrão bíblico da família. A cisnormatividade, léxico recente, se refere ao conceito de que gênero é determinado pela genitália, que os conceitos sociológicos de masculino e feminino são consequência natural e esperada de um desenrolar embriológico geneticamente desenhado. A heteronormatividade, também recém-chegado ao vocabulário cotidiano, é o seu reflexo. As atrações afetiva e sexual são espontaneamente direcionadas ao gênero oposto como manifestação imaterial determinada por cromossomos.
“...Segundo afirmam os antropólogos mais autorizados, a instituição familiar fundada no matrimônio monogâmico e heterossexual é atestada em todas as sociedades humanas... para além de tal diversidade, encontramos um núcleo constante: a família se reduz sempre à união estável de um homem e uma mulher que se amam e projetam transmitir a vida.” [1]
Esta posição do segmento cristão católico-romano encontra eco no correspondente protestante/evangélico ocidental. Outra posição deixa o primeiro em posição solitária: “o ato conjugal torna-se imperfeito de um ponto de vista moral pela carência de um dos dois elementos essenciais da sua estrutura [o matrimônio] – doação recíproca e orientação à fecundidade – ou pela falta do amor conjugal que deve vivificar tal estrutura.” [2]
O que não é explicitado é o trajeto que subsidia tal ensino. O discurso de lideranças parte, frequentemente, do lugar da autoridade que não necessita justificar o ensino, em função da própria posição. Quando esta atitude ocorre, distorce o ensinamento bíblico, tanto do Primeiro quanto do Segundo Testamentos. Iawveh chama, pela boca de Isaías, o povo impenitente à discussão da sua impenitência, e o diácono Felipe propõe o diálogo ao etíope converso em sua caminhada para casa.
Não é intenção deste ensaio abranger todos os aspectos da questão. A proposta é analisar algumas famílias relatadas nas Escrituras e questionar em que medida são elas padrão para a sociedade ocidental moderna. Ao fazer isto, a pergunta de fundo é “qual é este modelo monogâmico e heterossexual” suposto paradigma obrigatório a toda humanidade.
O primeiro casal registrado foge, por completo, dos sonhos da juventude. Se é verdade que Adão, ao ver um ser igual a si à sua frente clama em alegria “esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!”, também é verdade que em nenhum lugar está escrito que eles se amaram. A perícope de Gn 2 é compreendida como a instituição do matrimônio como instituição sagrada, com aura de mandamento. Será a sua única compreensão possível?
A autoria da Bíblia Hebraica não usa detalhes, privilegia o centro da ação [3]. Não comenta o que não é relevante ao seu propósito. Assim sendo, é lícito supor que o relacionamento sexual entre ambos não foi determinado nem pela afeição mútua, nem pela entrega: apenas para que o mandamento fosse cumprido. O comentário “por isso, um homem abandona pai e mãe, junta-se à sua mulher, e se tornam uma só carne” (não faz sentido imaginar como sendo da mente de Adão, que não podia conhecer os conceitos de pai, mãe e abandono) é seguido pela declaração da nudez sem timidez recíproca. Uma sugestão ousada de união sexual?
E as primeiras pessoas que viveram esta instituição não o fizeram livremente – elas simplesmente não tinham escolha! Se esta perícope é a determinação da instituição matrimonial, então ela não deve ser vivida a partir do consentimento livre de ambas?
Estaria na mente de Paulo apóstolo este fato quando escreve “porém, se não podem conter-se, casem-se: é melhor casar do que abrasar-se.” (ICo 7.9) É razoável afirmar que esta frase é o cerne do ensino paulino sobre casamento.
Explicitamente todos os casais bíblicos são heteroafetivos – pelo menos esta é a interpretação padrão. Mas se a relação sexual torna duas pessoas um casal, em uma instituição por definição monogâmica, como compreender o ocorrido entre Abraão e Agar? Por determinação (?) de sua esposa infértil, consoante as leis daquele tempo, Abraão relaciona-se com Agar. Este é um modelo de família? É curioso que Sara impõe Agar a Abraão como esposa. O termo hebraico usado na conversa é ʾishah (mulher, esposa, o nome que Adão deu Eva ao vê-la), e não pilegesh (concubina).[4]
Abraão é a primeira pessoa da fé, ou das fés: judaica, cristã e muçulmana. Tem relações sexuais (o texto talvez sugira uma única) com uma mulher mais jovem, que não tem a opção de se negar. Ciente do anacronismo, a situação configura-se como abuso sexual, estupro na contemporaneidade; no seu contexto, pessoas escravizadas não se pertencem, inclusive sexualmente.
O que a história descreve? Uma esposa (incrédula?) que, dentro dos usos e costumes legais de sua época, busca descendência para si através do uso de um corpo feminino alheio tornado propriedade em função de uma cultura específica. Preocupava-se consigo, com o que era dito a seu respeito, ou tentou executar o plano divino de descendência que tardava? Abraão abusa sexualmente de uma pessoa socialmente dependente e inferior para fugir de uma querela doméstica, motivada por amargor e revolta?[5]
Onde a doação mútua? Se o propósito do casamento monogâmico e heteroafetivo é a reprodução, sem a qual não há justificativa ética para a prática sexual, e sem a qual não há família (entendida dentro do conceito restrito de pessoas que geram e as delas descendentes), existia aos olhos da Trindade verdadeiro casamento?
Rute, mulher estrangeira, de Moabe (em hebraico, “origem do pai”). Segundo os rabinos, nenhum contato deveria haver entre Israel e aquela nação. Há várias razões, ressalte-se uma: descendia da relação incestuosa de uma filha com seu pai. Segundo o relato final de Gn 19, as filhas virgens de Lot o drogam, de forma que, apesar da inconsciência, é possível a relação sexual da qual descendem as pessoas moabitas e amonitas. O verbo hebraico usado para traduzir o “deitar com” por parte das moças é mais grosseiro que a tradução – esta seria mais correta se fosse “estupro”.[6]
Rute, a moabita, vai a Judá para não deixar sua sogra viúva Noemi, desamparada e solitária (duas mulheres sem parentes masculinos estavam econômica e socialmente vulneráveis naquela época). Acontece que se alojam perto das terras de um parente distante de Noemi, proprietário de terras. Segundo os costumes da época, era dever legal desta pessoa, Boaz, casar-se com Rute. E para que este fato ocorresse, Noemi prepara sua nora em uma cena de sedução explícita. Nada de sexual ocorre, ainda que o texto esteja recheado da possibilidade.
O que importa dentro do raciocínio atual, é que não há interesse afetivo entre Rute e Boaz; há interesse econômico. O suporte buscado por ela não é de companhia para uma jornada de vida, mas segurança econômica e social. O casamento de ambos gerará, no futuro, Davi, e centenas de anos depois, Jesus de Nazaré. Não há romance, não há afeto – pelo menos no início da constituição desta família.
A família de Davi, segundo rei de Israel, não é monogâmica. E os casamentos são por razões diversas. São registradas oito esposas, e há informações mais detalhadas de apenas duas. Mical, sua primeira esposa, o amava, expunha o fato e lhe foi leal contra o próprio pai, Saul, então o rei. Mical não engravidou. Betsabá, viúva de Urias, assassinado por encomenda de Davi é, supostamente, forçada pelo rei quando ainda casada.
Contudo, a questão que a família de Davi traz são alguns dos seus vinte filhos. A autoria dos livros de Samuel e Crônicas reprova o comportamento dele como pai, já que, aparentemente, não determinava alguns limites para as ações da prole. Seu primogênito, Amon, estupra sua meia-irmã Tamar. Absalão, seu terceiro filho, vinga sua irmã matando-o. Posteriormente Amon trama a deposição do pai, temporariamente bem-sucedida, mas é morto pelas costas por Joabe, general dos exércitos do rei. E, na sua velhice, Adonias tenta impor-se como sucessor, quando, provavelmente, Salomão era o escolhido.
Davi amava seus filhos, e chorou pelas mortes de Amon, Absalão e do filho com Betsabá. Mas suas mortes foram consequências de suas inabilidades paternas e familiares. E, dificilmente, amava sete esposas – certamente houve descendência. A este fato se resume o propósito da instituição casamento?
O discurso prevalente no meio cristão ocidental é de um único modelo de família. Ele falha quando não apresenta as bases sobre as quais se postula a existência de um único tipo de família. Os exemplos foram citados no intuito de demonstrar alguns pontos.
Há várias razões pelas quais uma unidade familiar é constituída. Raramente ocorre nas Escrituras um encontro romântico entre duas pessoas: o padrão básico, mas não universal, é a pessoa feminina não ter opção de escolha e ser passiva no processo. Se a criação de Eva e sua apresentação a Adão forem o molde primordial para a instituição do matrimônio, sem nenhuma concessão ao ambiente histórico da redação e leitura do texto, não há casamento que se inicia em amor. Fica-se na expectativa de que ele se desenvolva no decorrer da convivência. Mas se o casal primevo não for nada mais que a narrativa da primeira sociedade conjugal ocorrida em um momento especialíssimo da história (eram as únicas pessoas) abre-se a compreensão da singularidade da situação que não a torna padrão para todas as demais uniões.
A dita monogamia histórica não tem base empírica nas sociedades em geral e raramente ocorre na Bíblica hebraica. Torna-se mandamento apostólico no Segundo Testamento, pelo menos para as pessoas que se candidatem à ordenação nas comunidades cristãs. Rapidamente tornar-se o padrão. Todo o período entre a queda e o início da Igreja tem a poligamia como padrão divinamente tolerado, ou, quem sabe, sancionado. Afinal, qual personagem sofreu crítica ou punição divinas em função de poligamia? Salomão foi criticado mais pelo afastamento da fé, supostamente induzido por algumas de suas mil mulheres, do que pelo número de esposas e concubinas. Natã, o profeta, condenou ferozmente Davi, que ocupava o trono do seu povo, não por suas diversas esposas, mas por adultério e assassinato.
Razões de sobrevivência também forjaram uniões. Ainda que não haja menção explícita ao desejo feminino, como há ao masculino, negar sua existência em Rute, ou afirmar, será afrontar o texto. Mas não a psicologia feminina. Não o imaginário. A sexualidade humana mudou nos milênios de nossa existência?
O reconhecimento das pessoas LGBTQIAPN+ não demole a instituição do matrimônio: se é necessário amor entre as partes, lá está; se não é possível a procriação, como não foi para Mical, lá está; se é monogamia, plenamente possível e desejável. O que é questionado é a obrigatoriedade do relacionamento hétero e a sua definição a partir da genitália. Uma questão entre quatro. Algum casamento descrito nas Escrituras foi perfeito em todos os quesitos (e não foram listados todos)?
[1] Conferir p. 437 de PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA (org.). Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. [S.L.]: Escolas Profissionais Salesianas, 2004.
[2] Conferir p. 46 de PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA (org.). Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. [S.L.]: Escolas Profissionais Salesianas, 2004.
[3] ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[4] Cf. p. 237 de ALTER, Robert. The Hebrew Bible: a translation with comentary. New York: W. W. Norton & Company, Inc, 2018. 3 v, versão Kindle.
[5] Cf. ALTER (2018).
[6] Cf. ALTER (2018, p. 266).
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Famílias bíblicas impossibilitam famílias LGBTs? Artigo de Eduardo Ribeiro Mundim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU