26 Outubro 2024
Se quisermos ajudar o ser humano de hoje, devemos ter a coragem de permanecer dentro da realidade viva, de oferecer uma abordagem “quente” da realidade na qual o conhecimento possível se torne “real”. Nela, os construtos mentais são fruto da convergência entre instinto, emoções e razão, por serem produzidos dentro da vida efetiva.
O artigo é de Gilberto Borghi, teólogo leigo, filósofo e psicopedagogo clínico italiano, publicado por Vino Nuovo, 23-10-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um longo artigo, dividido em duas partes, de Domenico Marrone, que apareceu nestes dias em Settimana News e repercutiu em Vino Nuovo, coloca finalmente no centro de uma reflexão séria uma das questões culturais que marcam, para o bem ou para o mal, a diferença entre a cultura atual, que costumamos chamar de pós-moderna, e a moderna que nos precedeu: a relação entre pulsão e capacidade crítica do ser humano.
Marrone, referindo-se a V. Andreoli, define a condição antropológica atual como a do ser humano pulsional, em que os impulsos instintivos, imediatos e descontrolados assumiram o controle, na existência real das pessoas, em comparação com a capacidade reflexiva, o controle racional e a elaboração lenta. Sua análise é compartilhável na tentativa de assinalar um problema antropológico enorme, com todas as suas consequências sociais, culturais e até pessoais. Contudo, creio que trata de uma análise parcial, pelo menos por três motivos.
O primeiro diz respeito à falta de uma reflexão adequada sobre aquele mundo “médio” entre impulsos e racionalidade, feito de emoções, que desempenha um papel muito importante no equilíbrio efetivo da pessoa concreta. Tal análise teria permitido explicar onde se apoia e de onde nasce o “desejo consciente”, que Marrone acredita ser a solução possível para a condição atual, especificando melhor sua identidade e limites.
O segundo diz respeito à falta de atenção aos efeitos antropológicos produzidos pela mudança de época que vivemos, que explicam o nascimento do chamado “ser humano pulsional”, indo à raiz das motivações trazidas por Marrone. E, considerando que esses efeitos são estruturais e não apenas situacionais, torna-se inevitável uma crítica à solução que requer uma retomada da racionalidade, capaz de “gerir” os impulsos, o chamado “autodomínio”.
O terceiro é a convicção subterrânea de Marrone de que na vida humana a materialidade e a profundidade são claramente opostas e irreconciliáveis, levantando a hipótese ainda de uma “lacuna” irremediável entre a dimensão corpórea e a dimensão interior, impedindo, assim, que a raiz efetiva do desejo possa ser utilizável para fazê-lo florescer e crescer.
Uma rápida análise histórica permite-nos mostrar como essas críticas são justificáveis e, no fim, permite-nos dizer que a análise de Marrone corre o risco de permanecer dentro da lógica que ele mesmo quer criticar.
Os gregos já nos tinham dito que o ser humano tem três “cérebros”. Platão, no livro IV da República, indica claramente que a alma humana é constituída por logon (racionalidade), tzumos (sentimentos) e epitzumia (instintos). Plotino, na segunda e terceira parte das Enéadas, os traduz como nous (espírito), psique (alma) e hylè (matéria), em que a alma é pensada como uma conexão entre as outras duas, mas já assumiu uma coloração mais racional do que os “sentimentos” de Platão e em que a dimensão emotiva e perceptiva é atribuída mais à matéria do que à alma. Tal posição avançou, depois, dentro da teologia medieval, sem modificações substanciais.
A retomada de Aristóteles, especialmente na versão de Tomás de Aquino, desloca ainda mais esse equilíbrio ao dar maior peso à racionalidade, que também deve se tornar capaz de “dominar” a matéria, a ponto de direcionar seus sentimentos à verdade apreendida apenas racionalmente. Tal abordagem que é codificada na separação que Descartes faz entre res cogitans (aquilo que pensa e mede as coisas) e res extensa (aquilo que não pensa e é mensurável), com a ocultação plena da terceira dimensão, a das emoções e dos sentimentos, relegada dentro da res extensa.
A modernidade posterior, filha de Descartes, levou ao extremo o delírio de onipotência da razão desvinculada de sua base “corpóreo-perceptiva”, a ponto de pensar que poderia ser capaz até de fundar o ser humano, a realidade e a verdade, chegando a construir os grandes sistemas “onicompreensivos” da filosofia entre o fim do século XVIII e a primeira metade do século XIX, divisíveis em duas direções.
Uma é a da racionalidade voluntarista que vem de Kant, que produziu existências em que a razão pedia para se impor à instintualidade, com base não no desejo, mas na verdade racional capaz de mover a vontade: "dura lex, sed lex”, zerando de fato o valor cognoscitivo e julgador do sentimento, ainda que o próprio Kant tente fazer uma tentativa de recuperação, mas ineficaz, com a crítica do julgamento.
A outra é a do ímpeto racionalizado que vem de Nietzsche, em que a razão se põe a serviço do impulso, dando racionalidade a todos os seus efeitos devastadores, nos campos de concentração e nos gulags por exemplo, que, embora organizados de um modo muito racional, são dominados, em vez disso, pelas emoções e sentimentos de ódio e de rejeição.
A partir daí, no segundo pós-guerra do século XX, esse delírio racional gradualmente implodiu devido à aterrorizante exibição que deu de si mesmo, produzindo o descrédito da racionalidade “fundacional”. Assim, depois dos anos 1980, a chegada de novas condições antropológicas geradas pela web e pela globalização esvaziou rapidamente a supremacia da razão, a ponto de fazer morrer as ideologias e de deixar espaço para os resultados que vemos hoje: a lacuna total entre uma racionalidade computacional (a lógica que preside o mundo virtual), que galopa rapidamente rumo ao chamado “pós-humano”, e a instintualidade primordial, que, liberta da forma ideológica, foi imediatamente sequestrada pelos mecanismos de mercado, que manipula o mundo emocional dos indivíduos para seus próprios objetivos econômicos.
Os efeitos dramáticos disso foram dois. Entretanto, a fragmentação antropológica leva o ser humano pós-moderno a se sentir “separado” em casa, cabeça, coração e corpo (racionalidade, emotividade e instintos), impossibilitando o retorno ao equilíbrio da modernidade, em que a racionalidade dominava ou era dominada pelo instinto, simplesmente porque hoje cada uma segue estradas próprias. É por isso que hoje entra em cena “o ser humano pulsional”, porque os canais internos que podem permitir reconectar as pulsões ao restante do humano estão cortados. Portanto, a simples referência a um “autodomínio”, isto é, em que o componente racional “guia” o desejo e o torna consciente, parece ser uma solução utópica.
O segundo efeito é a inversão da percepção do espaço-tempo: da condição natural em que o espaço é percebido como algo real (posso medi-lo diretamente) e o tempo como algo virtual (só posso medi-lo indiretamente como movimento no espaço: relógio, ampulheta, sol), hoje prevalece uma percepção virtual do espaço e uma percepção real do tempo. Espaço virtual significa que, quando se tem uma forte experiência da web, morar na Itália, nos Estados Unidos ou na Argentina faz pouca diferença para a construção do próprio equilíbrio existencial. O tempo real, por outro lado, significa que vale apenas o presente, enquanto o passado e o futuro são esvaziados de seu valor de memória e de imaginação, tornando efetivamente estéril o projeto existencial das pessoas. Por isso, aqui também o apelo a uma “ascese” entendida como progressivo autodesenvolvimento rumo ao desejo ético tem um espaço efetivo muito limitado.
A perspectiva de Marrone afirma ser “essencial recuperar a virtude do autodomínio, que envolve o controle das próprias emoções, impulsos e desejos para alcançar objetivos de longo prazo”. Mas isso, além de parecer um caminho inviável, assemelha-se demais ao pedido de autofundação da razão, típico de uma modernidade irrecuperável. Em que se apoia o desejo para poder nascer e crescer? Marrone não diz.
Mas parece necessário admitir, em sua lógica, apenas duas possibilidades. Ou que o desejo é um dado natural e viaja e cresce por conta própria, sem relação com a cultura, o que é claramente impossível. Ou que é a verdade apreendida racionalmente que fundamenta o desejo bom. Mas, desse modo, ele partilha com a pós-modernidade a impossibilidade de conjugar de novo radicalmente a racionalidade e as pulsões, porque, enquanto a pós-modernidade as mantém separadas, Marrone levanta a hipótese de que estas últimas devem se submeter à primeira.
Essa forma de ver o ser humano ignora completamente as aquisições das neurociências atuais, que nos indicam claramente que existe uma reciprocidade insolúvel entre pulsões e racionalidade, e que existe também um controle não racional e consciente sobre elas, que continua funcionando, por baixo e independentemente da nossa racionalidade.
A. Damásio demonstrou em seus estudos que o conhecimento puramente racional não existe. O ser humano pensa sempre por inteiro, a partir do próprio corpo. As habilidades racionais, de julgamento e de escolha voluntária devem-se sempre a uma conexão, mais ou menos equilibrada, dos três cérebros gregos. Esquecer-se de um significa não conseguir viver de forma verdadeiramente “humana”. Continuar levantando a hipótese de que materialidade e profundidade são incompatíveis não ajuda na solução, porque o ser humano, queira ou não, é e continua sendo sempre um “inteiro”.
O pensamento crítico invocado por Marrone “requer tempo, empenho e uma certa dose de distanciamento emocional”. Mas em que se pode ampliar uma capacidade crítica que deve se “esfriar” em relação à arena real das relações vivas e pulsantes? Se não pode se basear em seu próprio “sentir”, restam apenas duas possibilidades: a influência cultural, que hoje tende a ser um poderoso ácido que corrói o humano, ou a lógica pura, que, como vimos, gera monstros, porque acaba readmitindo pela janela, e portanto sem controle, aquele mundo emocional posta para fora da porta.
Pensar em reequilibrar a situação antropológica atual, colocando novamente nos trilhos a capacidade crítica da modernidade, não é uma solução, mas mantém o problema.
Concordo, no entanto, com Marrone sobre o fato de que o desejo é o elemento-chave que pode nos oferecer uma solução, mas deve ser relido em um contexto diferente que pode dar uma definição mais completa dele, em que suas raízes profundas sejam trazidas à tona, para que a dinâmica existencial do ser humano seja mais completa. O ponto de partida são as necessidades humanas, entendidas como carências físicas, psicológicas, relacionais e existenciais, que precisam ser suficientemente satisfeitas para nos permitirem nos libertar parcialmente de sua necessidade, como nos ensinou A. Maslow em sua pirâmide.
O nascimento dos desejos depende do resultado mais ou menos bom dessa passagem; desejos que não são um dado natural, mas o resultado da possibilidade de dar uma resposta existencial a uma necessidade que está no topo da pirâmide: o da autorrealização, permitindo assim o nascimento do “sentido” da própria vida.
Esse fato implica que, muito antes do apelo ao autodomínio e à ascese, hoje devemos trabalhar para a solução das necessidades reais. Porque estamos dentro de um mercado que, em vez disso, gera necessidades induzidas e borra a fronteira entre estas e as reais, sem realmente as resolver.
E aqui reside um ponto fundamental que me diferencia de Marrone: a possibilidade de recuperar uma unidade de fundo do ser humano e sua projeção construtiva ao longo do tempo não habitam mais na racionalidade, mas na corporeidade. O trabalho educativo essencial hoje é ajudar as pessoas a voltarem ao próprio corpo real, aquele que ainda “lhes fala” antes e depois da farra de inputs externos, e que ainda é capaz de assinalar onde realmente estão as próprias necessidades reais e onde estão as máscaras induzidas que as escondem e falsificam.
Essa operação ainda possibilita fazer nascer o desejo, mas a partir de baixo, do amadurecimento da escuta de si mesmo, evitando ser presa das emoções. E permite reconhecer que existe uma notável diferença entre emoções e desejos: a emoção não é intencional, é de curta duração e muito intensa, possível até mesmo fora da vida real; o desejo, por sua vez, é sempre intencional, de duração mais estável e menos intensa, possível apenas ao nos projetarmos no futuro da vida real. Isso permite alcançar uma sutura antropológica e sair das malhas do tempo real. Nesse estado de coisas, não é a racionalidade quem manda, nem mesmo a instintividade. Quem comanda é a percepção do desejo que produz uma escala de valores das coisas e provoca a escolha, enquanto a racionalidade não decide, mas organiza tal escolha, que é sustentada pelos impulsos instintivos. J. H. Newman já havia compreendido isso e o havia descrito como a dinâmica efetiva daquilo que a Bíblia chama de “coração” do ser humano.
Na maioria dos casos da vida, de fato, as escolhas que importam não são fruto de uma reflexão ponderada, mas da escuta de si na situação real, daquilo que se comunica nas nossas emoções a partir das profundezas da corporeidade e, em sua apresentação à nossa mente como um desejo, que nos diz qual direção deveremos tomar naquela situação. Isso não é possível se não voltarmos a nos ouvir, a partir do corpo. Mas também não é possível se continuarmos pedindo ao ser humano que aborde a realidade de uma forma “fria”, produzindo apenas um conhecimento “nocional”, nascido teoricamente. Esse tipo de abordagem não se sustenta mais hoje, porque as noções por si sós não são capazes de modificar a percepção emotiva e de canalizar os impulsos instintivos para dar origem a um desejo. A fragmentação interrompeu esse caminho.
É claro que esse equilíbrio saudável é, hoje, muito delicado e frágil, embora ainda seja essencial na vida humana real. E então, se quisermos ajudar o ser humano de hoje, devemos ter a coragem de permanecer dentro da realidade viva, de oferecer uma abordagem “quente” da realidade na qual o conhecimento possível se torne “real”. Nela, os construtos mentais são fruto da convergência entre instinto, emoções e razão, por serem produzidos dentro da vida efetiva.
E aqui encontra espaço a direção oferecida pela perspectiva psicológica da Gestalt, especialmente na versão de G. Salonia: no aqui e agora da relação viva com o outro, pode-se trabalhar para costurar novamente as partes do ser humano em uma unidade que se torne equilíbrio e o autocontrole, sem o domínio da razão, abrindo espaço não apenas para o impulso imediato, mas também para como ele pode se tornar um desejo projetável no futuro, quando reconectado ao restante da pessoa humana.
O espaço da reflexão e o tempo da avaliação, então, de nada servem se forem direcionados para uma análise dissociada, na qual os instintos e as emoções são percebidos como um problema ou um obstáculo. Tornam-se produtivos se, pelo contrário, forem o modo de assumir instintos e emoções vividos na vida, para que eles cheguem à tomada de consciência, deixando que o processo produza por conta própria e globalmente um desejo como base da escolha a ser feita.
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Qual desejo é possível para além do “ser humano pulsional”? Artigo de Gilberto Borghi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU