26 Outubro 2024
"A transformação do ser humano em “homem pulsional” representa um grande desafio que exige uma resposta coletiva e consciente. Somente por meio da valorização da cultura, da análise e da crítica é que podemos esperar construir uma sociedade mais reflexiva, informada e consciente".
O artigo é de Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, professor no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Bari, Itália, em artigo publicado por Settimana News, 30-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Hoje, nos deparamos com um desafio histórico: entender e enfrentar a transformação do ser humano no que podemos definir como “homem pulsional”[1]. Esse corpo vivo é a sede das paixões, é um corpo com o qual somos lançados na existência e que nos remete à nossa finitude por meio das pulsões que o habitam. Como dizia Freud (1923), “o eu não é senhor em sua própria casa”.
O homem pulsional é caracterizado pela predominância das pulsões e dos impulsos imediatos sobre a reflexão e a análise crítica. Os impulsos são aquelas forças internas que levam o indivíduo a agir sem passar por um processo de ponderação e avaliação racional. Isso significa que, para o homem pulsional, as decisões e as ações são guiadas principalmente pelas emoções, pelos desejos imediatos e pelas necessidades instantâneas. Para o homem pulsional, não é necessário pensar, questionar-se ou desenvolver aquele extraordinário dom humano que é a análise e a crítica. Essa tendência representa um afastamento da cultura, entendida como o conjunto de conhecimentos, práticas e hábitos que nos permitem compreender o mundo de forma aprofundada e consciente.
O pensamento crítico, que requer tempo, empenho e um certo grau de distanciamento emocional, é substituído por respostas impulsivas e reações instintivas. A reflexão, que implica a capacidade de considerar diferentes perspectivas e avaliar as consequências a longo prazo das ações, é deixada de lado. Isso pode levar a uma sociedade em que as decisões são tomadas com base em gratificações imediatas, sem considerar os efeitos a longo prazo ou as implicações éticas.
A cultura, em um sentido amplo, inclui não apenas os conhecimentos intelectuais, mas também as capacidades artísticas, as tradições, os valores e as normas sociais que definem uma comunidade. Quando o homem pulsional se torna a norma, esses componentes culturais correm o risco de serem desvalorizados.
A arte, a literatura, a filosofia e a ciência, que requerem tempo, paciência e uma abordagem reflexiva, podem ser vistas como inúteis ou supérfluas.
Além disso, a falta de análise crítica pode levar a um empobrecimento do debate público. Sem a capacidade de analisar e compreender profundamente os problemas, o discurso público pode se tornar superficial e polarizado, dominado por slogans e reações emotivas em vez de argumentos fundamentados e baseados em fatos. Para enfrentar essa transformação, é preciso reconhecer a importância do pensamento crítico e da cultura em nossa sociedade. Deve-se promover uma educação que incentive a análise, a reflexão e a compreensão aprofundada. As instituições de ensino, as mídias e as organizações culturais têm um papel fundamental a desempenhar para combater a tendência ao homem pulsional.
A educação desempenha um papel fundamental para contrastar a tendência ao homem pulsional. Ensinar o pensamento crítico, a reflexão e a análise nas escolas e universidades pode ajudar os indivíduos a desenvolverem as competências necessárias para resistir aos impulsos e tomar decisões informadas.
A transformação do ser humano em “homem pulsional” representa um grande desafio que exige uma resposta coletiva e consciente. Somente por meio da valorização da cultura, da análise e da crítica é que podemos esperar construir uma sociedade mais reflexiva, informada e consciente. Não se trata apenas de uma questão de educação, mas de uma visão do futuro e de um empenho por um mundo no qual a humanidade possa expressar plenamente seu potencial intelectual e criativo.
O homem pulsional é o produto de uma série de fatores culturais, tecnológicos e sociais que moldaram o comportamento humano de maneiras profundamente novas. A cultura do consumismo, dominante nas sociedades modernas, promove a ideia de que o bem-estar e a felicidade podem ser alcançados por meio da compra e do consumo imediato de bens e serviços. Isso leva os indivíduos a buscar gratificações instantâneas e a preferir as experiências que oferecem satisfações rápidas, em vez daquelas que exigem esforço e tempo para serem apreciadas.
As mídias e a indústria do entretenimento muitas vezes apresentam padrões de comportamento baseados em reações impulsivas e emotivas. Celebridades e figuras públicas, amplamente seguidas nas redes sociais, muitas vezes exemplificam estilos de vida que privilegiam o imediatismo e a superficialidade, influenciando o comportamento das pessoas comuns.
A difusão de smartphones e o acesso constante à Internet mudaram radicalmente a maneira como as pessoas interagem com o mundo. A onipresença dos dispositivos móveis facilita um fluxo contínuo de estímulos e informações, que não deixa espaço para a reflexão e a elaboração aprofundada. As notificações push, as mensagens instantâneas e os aplicativos criados para captar a atenção tornam difícil para as pessoas se desconectar e separar um tempo para pensar.
As redes sociais desempenham um papel central na formação do homem pulsional. Plataformas como Facebook, Instagram e Twitter são projetadas para oferecer gratificações instantâneas por meio de curtidas, comentários e compartilhamentos. Esse mecanismo de feedback rápido alimenta a busca de aprovação instantânea e o comportamento impulsivo, reduzindo a capacidade dos indivíduos de refletir e avaliar criticamente as informações.
O ritmo frenético da vida moderna, com suas pressões sociais e de trabalho, contribui para a prevalência dos impulsos e das emoções imediatas. As pessoas são muitas vezes obrigadas a tomar decisões rápidas e a reagir prontamente às situações, reduzindo a possibilidade de analisar criticamente as circunstâncias. Essa velocidade e urgência perpétuas promovem um comportamento impulsivo e reativo.
A prevalência dos impulsos e das emoções imediatos limita a capacidade dos indivíduos de pensar criticamente e tomar decisões informadas. Sem uma reflexão adequada, as pessoas podem se tornar mais suscetíveis a manipulações e desinformações, com consequências negativas para a democracia e o debate público. As relações interpessoais podem se tornar mais superficiais e menos satisfatórios quando são baseados em interações impulsivas e momentâneas. A falta de profundidade e empenho pode levar a uma sensação de vazio e insatisfação, afetando negativamente o bem-estar emocional das pessoas.
Estar ciente dos mecanismos de gratificação imediata e de seus efeitos no nosso comportamento é o primeiro passo para exercer mais controle sobre nossos impulsos. Para superar o homem pulsional e suas consequências negativas, é essencial recuperar a virtude do domínio de si[2], que envolve o controle das emoções, dos impulsos e dos desejos para atingir metas a longo prazo.
Essa virtude é fundamental para o desenvolvimento de uma vida equilibrada e significativa, capaz de resistir às pressões da gratificação imediata e promover o bem-estar pessoal e coletivo.
O domínio de si, ou autocontrole, é a capacidade de gerir as próprias emoções, os impulsos e os desejos para atingir metas a longo prazo. Essa virtude é essencial para o sucesso pessoal e profissional, para a construção de relações sólidas e para a manutenção da saúde mental e física. O autocontrole permite resistir às tentações imediatas e fazer escolhas ponderadas e bem informadas.
O conceito de autocontrole tem raízes profundas na filosofia antiga e na psicologia moderna. Na psicologia moderna, o domínio de si é estudado como um componente crucial da inteligência emocional e da resiliência.
A recuperação da virtude do domínio de si é essencial para superar o homem pulsional e suas consequências negativas. Por meio da conscientização, da gestão do tempo, da resistência às tentações e do desenvolvimento da inteligência emocional, é possível exercer maior controle sobre as emoções, os impulsos e os desejos. Isso não apenas melhora o bem-estar pessoal e as relações interpessoais, mas também contribui para o sucesso profissional e para a saúde física e mental. Em um mundo dominado pela gratificação imediata, o autocontrole é um recurso precioso para viver uma vida equilibrada, significativa e realizada.
A filosofia antiga nos oferece lições valiosas sobre o valor da temperança e do autocontrole. Essas virtudes nos ensinam a importância de viver em equilíbrio, resistindo às tentações imediatas em busca de um bem maior[3].
Para compreender plenamente a importância do domínio de si, precisamos distinguir entre pulsões imediatas e desejo consciente. As pulsões são reações automáticas e, muitas vezes, irracionais aos estímulos, enquanto o desejo consciente é uma força mais profunda e reflexiva que nos impele a objetivos de longo prazo e significativos. Cultivar o desejo consciente significa treinar a mente e o coração para reconhecer e buscar o que é realmente importante e duradouro, em vez de ceder a tentações efêmeras.
As pulsões imediatas são respostas automáticas e muitas vezes irracionais a estímulos externos ou internos. As pulsões são caracterizadas por sua natureza impulsiva, muitas vezes levando a decisões precipitadas e comportamentos que podem não estar alinhados com nossos valores ou objetivos de longo prazo.
Ao contrário, o desejo consciente representa uma força mais profunda e reflexiva. É uma aspiração que nasce de nosso eu interior e está ligada a valores e objetivos significativos. O desejo consciente nos leva a buscar escolhas que refletem o que consideramos realmente importante, como a melhoria pessoal, as relações significativas ou a contribuição para a comunidade. Esse tipo de desejo requer um processo de reflexão, avaliação e discernimento, o que nos permite fazer escolhas mais ponderadas e sustentáveis.
Cultivar o desejo consciente implica treinar a mente e o coração para reconhecer e buscar objetivos que estejam alinhados com nossa verdadeira essência e aspirações. Trata-se de desenvolver uma ética do desejo. A ética do desejo visa a nos guiar para uma vida em que nossos desejos sejam orientados por princípios éticos e valores profundos, e não por pulsões imediatas e descontroladas.
A adoção de uma ética do desejo traz inúmeros benefícios. Primeiro, contribui para uma maior coerência entre os valores e as ações pessoais, criando um senso de integridade pessoal. Em segundo lugar, promove o bem-estar individual e coletivo, pois os desejos orientados eticamente tendem a gerar resultados positivos tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. Por fim, ajuda a construir uma sociedade mais justa e equilibrada, na qual as ações dos indivíduos são guiadas por valores compartilhados.
O desenvolvimento de uma ética do desejo é um percurso de crescimento pessoal e coletivo que requer comprometimento e reflexão contínua. Orientar os desejos por meio de princípios éticos e valores profundos não apenas melhora a qualidade de vida, mas também contribui para criar um mundo mais justo e humano. Em uma época dominada por pulsões imediatas e gratificações efêmeras, redescobrir a importância do desejo consciente e ético representa um caminho para uma vida mais significativa e satisfatória.
Compreender a natureza de nossos desejos é o primeiro passo para desenvolver uma ética do desejo. A distinção entre pulsões imediatas e desejos conscientes nos permite orientar as nossas vidas para o que é realmente importante e duradouro.
A educação desempenha um papel crucial no cultivo do autocontrole. As escolas e as famílias devem ensinar aos jovens a importância dessas virtudes e fornecer ferramentas para desenvolvê-las. Programas educacionais que incorporem mindfulness, consciência emocional e gestão do estresse podem construir uma base sólida para a autodisciplina. Em nível cultural, redescobrir e promover valores que enfatizem o domínio de si é fundamental para enfrentar os desafios contemporâneos relacionados ao imediatismo e ao frenesi da vida moderna. Essas práticas não apenas melhoram o bem-estar individual, mas também contribuem para uma sociedade mais coesa e reflexiva.
Um conceito fundamental que precisa ser recuperado para contrastar o homem pulsional é o do ascetismo espiritual. O ascetismo não é simplesmente uma série de privações ou restrições; é uma jornada consciente rumo ao crescimento pessoal e espiritual. Essa prática envolve um empenho ativo para transcender a sedução dos bens materiais e dos desejos superficiais para se aproximar de uma dimensão mais profunda da existência. Por meio da autodisciplina, os indivíduos podem se libertar dos grilhões das gratificações imediatas e descobrir uma nova liberdade interior.
Além disso, o ascetismo espiritual promove uma conexão mais profunda com o transcendente. O ascetismo espiritual oferece ferramentas poderosas para cultivar desejos éticos, ajudando os indivíduos a esclarecer seus desejos mais profundos e a desenvolver a força interior necessários para buscá-los. Essa conexão não apenas enriquece a vida espiritual do indivíduo, mas também proporciona um senso de pertencimento e de significado. Por meio da prática ascética, nos aproximamos de uma realidade maior, o que pode contribuir para uma sensação de paz interior e equilíbrio.
Em suma, o ascetismo espiritual desponta como um antídoto eficaz contra o homem pulsional, promovendo um percurso de autodisciplina e purificação. As práticas ascéticas, como o jejum, a oração e a meditação, não apenas desenvolvem uma maior resistência às tentações, mas também levam a um maior crescimento pessoal e espiritual. Redescobrir e valorizar o ascetismo no contexto contemporâneo oferece uma oportunidade de criar uma vida mais equilibrada, consciente e significativa, na qual o domínio de si se torna um recurso valioso para o bem-estar e a realização.
A época do homem pulsional apresenta desafios significativos, mas também oportunidades para uma profunda renovação ética e espiritual. Recuperar a virtude do domínio de si e redescobrir o valor do ascetismo espiritual é essencial para superar as consequências negativas da queda ética e do déficit espiritual. Por meio de um empenho coletivo e individual para uma maior conscientização ética e espiritual, podemos construir uma sociedade mais equilibrada, justa e humana.
A educação desempenha um papel fundamental na formação de desejos éticos. Ao ensinar valores como empatia, justiça e responsabilidade, podemos orientar os jovens a desenvolver desejos que contribuam para o bem comum e a realização pessoal. As práticas educacionais devem incluir a reflexão crítica e a autoanálise para ajudar os indivíduos a reconhecer e avaliar seus desejos.
O ascetismo espiritual pode fornecer ferramentas poderosas para cultivar desejos éticos. Práticas como a meditação e a oração podem ajudar a esclarecer os nossos desejos mais profundos e desenvolver a força interior necessária para buscá-los. O ascetismo nos ensina a sacrificar os desejos imediatos e superficiais para alcançar objetivos mais elevados e significativos. Em uma época de gratificações imediatas e desejos superficiais, o ascetismo espiritual representa um caminho para uma vida mais significativa, orientada por valores éticos e aspirações elevadas.
Em nível social, devemos promover uma cultura que valorize o desejo ético. Isso implica a criação de ambientes nos quais as pessoas sejam incentivadas a buscar seus desejos mais elevados e a contribuir para o bem comum. As instituições, desde os sistemas educacionais até as organizações comunitárias, podem desempenhar um papel fundamental nesse processo.
É essencial promover uma cultura que valorize o desejo ético. Isso implica a criação de ambientes nos quais as pessoas sejam incentivadas a buscar seus desejos mais elevados e a contribuir para o bem comum. As instituições, desde os sistemas educacionais até as organizações comunitárias, desempenham um papel fundamental nesse processo.
[1] Cf. V. Andreoli, La gioia di vivere, Rizzoli, Milão 2002. Nesse livro, Vittorino Andreoli explora o conceito de “homem pulsional”, analisando como a sociedade moderna e a tecnologia influenciam o comportamento humano por meio da gratificação imediata.
[2] Cf. Baumeister R. F. - Tierney, J. Willpower: Forza di volontà: Il potere del controllo, Ponte alle Grazie, Milão 2012.
[3] Cf. P. Hadot, Esercizi spirituali e filosofia antica, Einaudi, Turim 2006.
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Para além do homem pulsional. Artigo de Domenico Marrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU