Eleições de 2024 trazem vitória do centrão, uma esquerda em reconstrução e o bolsonarismo enfraquecido. Algumas análises

Entrevistados refletem sobre como as forças do centrão, da direita e da esquerda emergem deste pleito e de que forma é possível prever as eleições de 2026 a partir do cenário atual

Por: André Cardoso e Patricia Fachin | 28 Outubro 2024

As eleições municipais de 2024 terminaram neste último domingo, 27 de outubro, e o cenário que deixam Brasil afora é complexo. Há derrotas e vitórias tanto na extrema-direita quanto na esquerda, com ascensões de políticos jovens em ambos os espectros. Segundo Melilo Dinis, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, os dois lados não entenderam a cabeça do eleitorado, “que carrega novas pautas e novos hábitos, mas que mantém, como tradição brasileira, um olhar conservador na política em termos de valores, trazendo possibilidades para o que chamo de 'centro ampliado', com grupos fisiológicos que se somam ao universo tradicional da política, independentemente do partido político de plantão. O mundo do trabalho, as classes, as religiões, as organizações e a política exigem um outro olhar”, finaliza.

Com essa dificuldade, o “centrão” sai como vencedor deste pleito. Para o Manoel Moraes, em entrevista concedida por WhatsApp ao IHU, é preciso entender que a vitória deste centrão é diferente da vitória do bolsonarismo. “Não está claro se essa vitória representa o vigor do movimento de extrema-direita. Há um crescimento do centrão que teve a vantagem de vários mecanismos, como o aumento dos recursos do fundo partidário, do fundo eleitoral e a própria gestão das prefeituras, que faz a diferença no chamado Brasil profundo. Ainda é cedo para saber se temos a manutenção daquilo que foi a ascensão de Bolsonaro. Arriscaria dizer que hoje a direita está dividida e, portanto, a vitória do centrão não é a vitória da frente que representa Bolsonaro. Mas certamente há um crescimento do pensamento conservador, que não necessariamente é ligado a Bolsonaro”, diz.

Em meio a esse crescimento de uma direita desconectada de Bolsonaro que surge a figura de Pablo Marçal, por exemplo. Entretanto, segundo José Geraldo de Sousa Junior, também em entrevista concedida por e-mail ao IHU, é preciso moderar a importância dada a este personagem. “Nos anos 1960 Umberto Eco já chamava a atenção para o fenômeno que descreve a incubadora dos marçais: ‘As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel’”.

No campo da esquerda, Manoel Moraes destaca três figuras: o prefeito reeleito de Recife, João Campos (PSB), carismático e com uma liderança que “tomou conta das perspectivas de futuro não só do PSB, mas também do centro democrático”; Natália Bonavides, porque ela representa “o fortalecimento de uma agenda que ressignifica a perspectiva de luta de classes, de reformas de base e a estruturação do movimento social”; e Guilherme Boulos, por sua ida ao segundo turno, o que já qualifica sua condução política no futuro.

As principais lideranças dos dois lados, Lula no campo da esquerda e Bolsonaro no campo da extrema-direita, saem destas eleições em diferentes tamanhos. Para José Geraldo de Sousa Junior, o atual presidente não foi tão afetado pelo pleito por já ter um lugar carismático entre os brasileiros e na cena política. “Ele recepciona adesão maior do que aquela que é cativa da esquerda (partidos de esquerda) e tem reconhecimento pela projeção nacional e internacional de seu protagonismo que o faz destinatária da confiança de eleitores conservadores e até de direita”. Já Bolsonaro, pontua, sai menor por perder para a direita mais moderada como em Goiânia, Minas e até em São Paulo. “O discurso de Nunes hipotecando gratidão e submissão à liderança do governador Tarcísio de Freitas, sinaliza para um bolsonarismo sem Bolsonaro”.

Confira as entrevistas.

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil) 

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal  AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília  UnB, onde leciona desde 1985 e foi reitor de 2008 a 2012. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. É autor de, entre outros, Sociedade democrática (Universidade de Brasília, 2007), O direito achado na rua: concepção e prática (Lumen Juris, 2015) e Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos (Editora D'Plácido, 2016).

Confira a entrevista. 

IHU – Qual foi a marca do segundo turno das eleições? Poderia destacar três pontos que chamaram sua atenção neste pleito?

José Geraldo de Sousa Junior – No segundo turno manteve-se a tendência de voto conservador já configurada no primeiro. Não houve praticamente reversão das posições estabelecidas na primeira volta. Em São Paulo, Boulos praticamente ficou no patamar do primeiro turno. Mas isso não é uma surpresa. O voto no Brasil é oficialista. Entre O Capital de Marx e a encíclica Rerum Novarum, o eleitor prefere o Diário Oficial (Benedito Valadares?). Afinal, é nele que são publicadas as nomeações e registradas as distribuições orçamentárias secretas ou não e a aplicação de emendas e dos fundos públicos de campanha. Por isso, o eleitor reelege prefeitos que dispõem de máquina. Mas as eleições mostraram que o voto conservador não sufraga a extrema-direita, mas a direita moderada que sabe negociar, dispor-se a participar de frentes programáticas e de participar de alianças programáticas.

IHU – Como avalia o resultado do segundo turno das eleições em São Paulo, Natal e Fortaleza? Que fatores determinaram a eleição nestes municípios?

José Geraldo de Sousa Junior – Em São Paulo, a meu ver, foi um exercício para a disputa política de 2026. Um movimento de posicionamento de projetos, pessoais e partidários que buscam se qualificar para a disputa nacional, tanto programaticamente quanto organicamente.

Em Fortaleza venceu o PT, o que não significa uma demonstração de hegemonia ideológico-partidária. Há todo um aprendizado a extrair das nuanças entre perfis de candidaturas, programações partidárias e estratégias de exercício da política.

Em Natal, apesar de minha torcida, com muita expectativa que alimentei pela novidade trazida pela atuação de Natália Bonavides, que conheço e acompanho desde o tempo de estudante engajada na assessoria jurídica popular. Ela volta ao mandato de deputada federal mas bastante potencializada para representar um outro modo de praticar a política.

IHU – Mesmo com a derrota da esquerda nas principais capitais e municípios do Brasil, houve um aumento considerável de vereadores negros, LGBTQIA+ e demais grupos associados à esquerda. Como é possível explicar esse aumento frente aos resultados da centro-direita nas prefeituras?

José Geraldo de Sousa Junior – Aponto para algumas dessas possibilidades em artigo no qual abordo esse tema e que foi publicado aqui no IHU.

O impulso para a avaliação que desenvolvo nesse artigo vem do debate muito esclarecedor que pude entreter no espaço Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB – Padre Thierry Linard. Este grupo, do qual faço parte, é formado por membros da Conferência, assessores, professores das universidades católicas e por peritos convidados, sob a coordenação de Dom Francisco Lima Soares, bispo de Carolina (MA). O documento de maio, levado aos bispos em seus conselhos, foi “Eleições Municipais de 2024: entre a política nacional e agenda local”.

A análise levada a cabo partiu da consideração de que os estudos sobre eleições municipais cresceram nos anos recentes, têm procurado lançar luz sobre suas especificidades e apontam questões que devem ser acompanhadas neste ano, como: o desempenho dos partidos políticos e das candidatas mulheres; o aumento dos não votos (brancos, nulos e abstenção), e a repercussão das eleições municipais no plano nacional; a importância dos programas de governo na eleição para prefeitura; determinantes da sub-representação política dos não brancos; violência política eleitoral; determinantes na reeleição de prefeitos. 

Mas, a despeito disso, cada eleição tem uma história própria. Isto significa ficar atento ao desenrolar do processo eleitoral em curso, aos pontos da agenda municipal, ao perfil dos atores políticos emergentes, aos contornos da comunicação política, ao processo de decisão do voto da juventude, entre outros aspectos.

IHU – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a sociedade brasileira e a subjetividade dos eleitores?

José Geraldo de Sousa Junior – Em continuidade com o que dizia na questão anterior, ainda no diapasão da análise de conjuntura oferecida aos bispos, as eleições municipais também são relevantes por estimular a participação social, contribuindo para valorização da democracia brasileira, tão criticada nos últimos anos, e para formação de uma cidadania política, que começa em nível local.

Existem dificuldades para acompanhar questões decididas em Brasília ou na capital do estado, lugar em que normalmente ficam localizados o Executivo e o Legislativo estadual. Mas quando o processo decisório acontece no âmbito municipal, existem condições mais propícias para participação dos cidadãos e cidadãs, e das associações comunitárias. Em outras palavras, “a melhor maneira de ensinar a democracia é nos municípios. É nele que o trabalho prático e o resultado de uma eleição têm a melhor visibilidade”. A cultura política democrática pode e deve ser exercitada no âmbito local. 

IHU – Pablo Marçal parece ter sido, embora nem tenha ido para o segundo turno, o grande personagem destas eleições. Como explicar o fascínio de parte da população com esse discurso empreendedor de "faça você mesmo"? Esse "fenômeno Marçal" pode ter reverberações no futuro?

José Geraldo de Sousa Junior – Nem tanta relevância assim a um personagem, entre o caricato, o malicioso e o arrivismo. Marçal é uma supuração num organismo social infectado por contágios bem diagnosticados. Nos anos 1960, Umberto Eco já chamava a atenção para o fenômeno que descreve a incubadora dos marçais: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.

Não é um fator apenas de ignorância o que se passa nos dias de hoje. Claro que os ignorantes de hoje se manifestam abertamente e sem pudores nas redes sociais, na medida em que elas possibilitaram a união dessas pessoas sob o guarda-chuva de valores aleatórios – geralmente preconceitos ou uma raiva visceral contra alguma coisa, corrente política ou grupo de pessoas. A confiança adquirida com curtidas de quem pensa igual levou essas pessoas a desfiar opiniões sem pé nem cabeça temperadas de um vácuo cultural nunca visto antes.

Marçal é um efeito e uma demonstração desse fenômeno. Ele se vale de uma legião de seguidores que produzem os cortes para ele, estimula competições e premia com valores em dinheiro os criadores dos vídeos com maior engajamento. Empresário, influenciador e autodenominado ex-coach, Marçal alcançou mais de 12 milhões de seguidores no Instagram. Ele se destaca no chamado segmento de infoprodutos, ou seja, produtos vendidos no formato digital, com alguma informação ou conhecimento específico. Ele pratica a tática de negócios em sua pré-campanha. Aposta nos cortes, vídeos curtos que prendem a atenção e que rapidamente viralizam nas redes, nos quais ele geralmente aparece com alguma fala controversa ou inusitada. Marçal arregimenta um contingente de seguidores que produzem os cortes para ele, financeirizando o seu engajamento.

Minha colega na Faculdade de Direito da UnB, professora Fernanda Lage, especialista nos temas eleitorais e nas novas aplicações digitais, incluindo IA, me explicou que as redes sociais se tornaram o novo espaço de consumo de conteúdo, de encontro e de debate. E daí, diz ela, vêm desafios que se apresentam para o exercício da democracia no mundo digital. O que acontece quando o dono de uma plataforma digital possui capital superior ao PIB de um país inteiro?, ela questiona; ou, qual é o resultado da monetização da política? Para ela, existem bens que o dinheiro não deveria comprar. Existem bens e práticas sociais que podem ser prejudicados ou ser corrompidos se envolverem alguma transação com dinheiro.

Marçal é um exemplo dessa disposição aética nos negócios e na política como negócio. Porque, no cenário eleitoral, não é eticamente correta a prática de pagar pessoas para que compartilhem conteúdo político a favor de um determinado candidato em detrimento de outro. No contexto da economia de plataforma, tudo se transforma em gamificação e em rankeamento. Mas a economia também precisa ser política, como propôs um de seus fundadores e para tal ela deve guiar-se por sentimentos morais" (Adam Smith).

Marçal não é o único mas precisa ser visto na dimensão do perigo que ele principalmente representa. Recorro à matéria publicada aqui no IHU, expondo a difusão de uma teologia fundamentada em versículos bíblicos aleatórios, desprovida de hermenêutica e de exegese, que promove espiritualidades deturpadas, alheias às necessidades dos empobrecidos, mas que consegue mobilizar milhões de brasileiros. Essa é a Teologia Coaching, um desdobramento da Teologia da Prosperidade.

A matéria adverte para a “instrumentalização da fé pela política e abre espaço para o surgimento de figuras como Tiago Brunet e Pablo Marçal", que “tentam estabelecer um novo modelo de vida cristã, que é aquele vivido essencialmente longe da comunidade religiosa; sem a leitura e interpretação do texto sagrado, portanto vazio de hermenêutica”.

Num mundo impactado pela Inteligência Artificial, é preciso que a política recuperada para o bem comum, reencantada, como orienta o Papa Francisco, esteja atenta a que, com os padrões e o desenvolvimento corretos, a IA deva ser usada para apoiar a democracia e a justiça. Minha colega Fernanda Lage indica algumas áreas onde isso pode ocorrer: 1) checagem de fatos; 2) criação de um índice de confiabilidade das publicações virtuais; 3) detecção de técnicas de deep fake; 4) coleta eficiente de informações relevantes; 5) divulgação de dados verdadeiros e de interesse público; 6) transparência nos dados governamentais; 7) aperfeiçoamento dos mecanismos de consulta popular; 8) aperfeiçoamento da tecnologia do voto; e 9) reunião de informações e comparação de propostas dos candidatos nos pleitos eleitorais. Ou seja, as pessoas que estão em posição de poder, seja ele estatal ou privado, e que tenham acesso aos recursos da IA, é que serão decisivas para saber se ela fará parte do aperfeiçoamento democrático ou se contribuirá para a deterioração das instituições e do poder popular.

IHU – A política brasileira vem se complexificando e novos personagens vêm surgindo. No entanto, a polarização entre lulismo e bolsonarismo ainda é bastante evidente. Como saem Lula e Bolsonaro destas eleições? Existe um vencedor entre os dois?

José Geraldo de Sousa Junior – Esquerda e direita, colocadas em posição de antagonismo nessas eleições, não se ajustam ao desenho das performances das candidaturas.

Não me parece que Lula será afetado em seu lugar carismático como sujeito singular na cena política. Ele recepciona adesão maior do que aquela que é cativa da esquerda (partidos de esquerda) e tem reconhecimento pela projeção nacional e internacional de seu protagonismo que o faz destinatária da confiança de eleitores conservadores e até de direita. Sabe se mover no emaranhado das emoções próprias das grandes disputas e sabe construir mediações de governança mesmo entre forças antagônicas, no estilo de frentes amplas que foram experimentadas nas várias narrativas que se enunciaram no processo eleitoral.

Bolsonaro sai bem menor do que a sua autopercepção de envergadura. Ele perdeu até para a direita que se expressa por projetos distintos do seu, como em Goiânia, Minas e até em São Paulo. O discurso de Nunes, hipotecando gratidão e submissão à liderança do governador Tarcísio de Freitas, sinaliza para um bolsonarismo sem Bolsonaro.

Conforme salientamos na Análise de Conjuntura oferecida aos bispos, o que importa é avaliar se a(s) polarização(ões) contribuem ou trazem resultados negativos para a política. São muitas as polarizações. Algumas primárias e simplistas, conforme categorizamos naquela análise. Mas a polarização que mais convoca a politização é exatamente a que foi dissimulada nas eleições.

Eu mencionei isso em meu artigo sobre as novidades que as eleições trouxeram. Aludi a manifestação do professor Antonio Carlos A. Lobão, da PUC Campinas. Numa reunião do Grupo, logo após o resultado do primeiro turno, ele chamou a atenção para questões que não se explicam pelo uso de máquina, de fundos, de emendas ou da avaliação impressionista de prefeitos que tenham sido reeleitos. Para o que ele considera “uma hiperpolitização por parte da direita, com um trabalho político, com uma mobilização da direita, com atividades da direita, com um projeto político”, resultante de esvaziamento do político criado pelo discurso da esquerda. Para ele, o embate traz a percepção de que “a esquerda não tem mais projeto. A única defesa da esquerda é conservadora: banco central, orçamento, equilíbrio fiscal, STF etc. Deixamos de ter uma ação de massa para ter uma ação de alianças. Nem sequer a Igreja está nas periferias. A Teologia da Libertação foi substituída pela Teologia da Prosperidade. As novas classes médias dos governos Lula viraram instrumentos e espaços da nova direita. Taxação dos ricos, taxas de juro etc. Não politizamos nada. Não conseguimos defender mais nada, não saímos mais para as ruas. A desculpa da Lava-Jato não serve mais para o tema da criminalização da política. Não sabemos usar as redes sociais” (o que se revelou no efeito Pablo Marçal).

IHU – O que explica os números cada vez maiores de abstenção em diversas cidades do Brasil? Há necessidade de haver uma mudança no sistema eleitoral?

José Geraldo de Sousa Junior – São milhões de pessoas que deixam de votar. Embora o percentual esteja mais ou menos estabilizado. Conforme dados do TSE, a abstenção no primeiro turno das eleições municipais de 2024 esteve em 21,71%. A porcentagem de eleitores que não compareceram foi maior que nas eleições municipais de 2016 (17,58%). Porém, menor que em 2020 (23,15%), eleição realizada em meio ao período agudo da pandemia de Covid-19.

Há muitos estudos e até pesquisas que analisam os motivos da abstenção, possível de aferição num sistema em que o voto é obrigatório e a abstenção tem consequências onerosas (multas, restrições de direitos). Algumas pesquisas mostram que existe uma distribuição sem variações entre faixas de renda, escolaridade ou preferências políticas na relação de 80%/20% que sempre votaram e já deixaram de votar, respectivamente. Nessas pesquisas, mais comumente as razões apontadas para não votar são viagens, desinteresse, zona eleitoral distante de casa, trabalho, cuidados com crianças e idosos, razões ou obstáculos burocráticos. Certamente há um percentual inserido numa disposição obscura, não declarada de reais motivos para não votar.

O certo é que o fenômeno da abstenção no Brasil tem muitas causas, que se combinam e se recombinam para o agravar. Nesta semana (25/10), a Rádio UFMG Educativa (link da matéria), divulgou uma grande reportagem sobre o voto de pessoas em situação de rua. Fui um dos entrevistados procurando pôr em relevo algumas dessas multicausas, a partir da dificuldade de inclusão numa sociedade tão desigual, da participação e do voto de segmentos para os quais a inserção de cidadania pressupõe políticas públicas e disposição emancipatória para engajá-los no processo. Não só a população de rua, mas presos, analfabetos, indígenas.

Nesse contexto, mudanças no sistema eleitoral devem priorizar as condições de exercício pleno da cidadania, com maior participação democrática. Contudo, quase na contramão do que menciono como novidades já identificadas no processo, as iniciativas regulamentadoras são centradas no formalismo e no modelo concentrador das estruturas funcionais fechadas para essas novidades. A preocupação é com o financiamento público, portanto, a criação de um fundo público para financiar campanhas eleitorais seja acompanhada de alteração no sistema eleitoral, prazos para desincompatibilização na disputa de cargos eletivos, cláusula de desempenho para o funcionamento parlamentar dos partidos, doações, proibição de coligações para eleições proporcionais. Muito pouco, quase nada, referências a mecanismos de democracia direta (mandatos coletivos). 

IHU – Que projeções podem ser feitas para as eleições presidenciais de 2026 com base no resultado das eleições municipais deste ano?

José Geraldo de Sousa Junior – Os resultados trazem alento para a velha política, de articulação vertical e de aparelhamento de máquinas e de fundos. Impactará imediatamente nas movimentações para fortalecer posições que assegurem o controle desses lugares estratégicos para a armação de alianças e negociações que lhe permitem e são a sua consequência. O presidente tem sinalizado a aliados a intenção de fazer uma reforma ministerial. Reforma que seja definida com base na força partidária e na lealdade mostrada nas eleições municipais, de forma a reorganizar a esplanada com vistas a privilegiar quem tende a estar no palanque dele à reeleição. As negociações sobre o comando das Casas Legislativas têm movimentado os partidos e serão moduladas pelo resultado das eleições.

Mas é preciso considerar o despertar das consciências e da importância de se repensar o modo de fazer política. Ainda no meu artigo sobre o que as eleições trazem de novidades, lembrei que na sua forma matizada pelo tomismo, é desse modo que o cristianismo concebe a política, pensada como “a forma mais sublime de viver a caridade", um ensinamento manifestado desde o papa Pio XI e reforçado depois pelo Concílio Vaticano II, pelo papa Paulo VI, pois que busca romper “com a mentalidade de que política é coisa ruim, com a qual o cristão não pode estar engajado; pelo contrário, deve encontrar no ambiente político a sua vocação e o serviço ao povo de Deus”. O Papa Francisco ao atualizar essa noção, tal como já o fizera na exortação Evangelii Gaudium, nº 205, “A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum”, a distingue porque ela escuta a realidade, que está a serviço dos pobres, que se preocupa com os desempregados e sabe muito bem como pode ser triste um domingo quando a segunda-feira é um dia a mais sem poder ir trabalhar. (Confira a íntegra da mensagem aqui).

Lembro esse enfoque porque o embate confessional está no centro da disputa ética do agir político. De certo modo, um de seus aspectos mais interpelantes é o que deriva da resposta conservadora que Nelson Rockfeller, indicou em 1969, no relatório sobre o estado da Aliança para o Progresso e a política dos EUA na América Latina que lhe fora encomendado pelo recém-eleito e empossado presidente dos EUA, Richard Nixon. Nelson Rockefeller uma liderança do Partido Republicano de Nixon e, na época, governador do estado de Nova York (no fim da Segunda Guerra Mundial serviu no Departamento de Estado como o líder da divisão responsável pelas relações latino-americanas), traçou diretrizes para calçar a intervenção do imperialismo, em novos moldes de guerra, guerra às drogas, guerra ao terrorismo e guerra contra a Teologia da Libertação (conferir aqui). Sabemos como opera essa lógica, que não se apoia em invasões militares, em golpes armados, mas que combina uma articulação jurídico-judiciária (sistemas de segurança) e religiosa (teologia da prosperidade, teologia do domínio, neopentecostalismo), incluindo a formação e ideologização de quadros desses sistemas. Eis aí um âmbito nevrálgico para repensar e reorientar a ação política que não fica restringida ao enquadramento partidário tradicional. Basta ver as pesquisas e análises sobre a incidência religiosa no contexto do processo eleitoral e de incidência no processo democrático não só representativo mas também participativo.

IHU – Deseja acrescentar algo?

José Geraldo de Sousa Junior – Reafirmar os conceitos que apresentei no meu artigo sobre as novidades das eleições em 2024. A política não se reduz ao sufrágio e tem um lugar no comunitário-participativo.

Tal como enunciamos na Análise de Conjuntura do Grupo que assessora a CNBB, as eleições municipais podem contribuir para redefinir a agenda pública, para o processo de renovação de lideranças políticas e para estimular a cidadania ativa. Elas são parte do esteio da democracia. Há algumas premissas que indicam esta possibilidade, apesar de haver muito desencantamento com a “política”. O voto é livre, soberano e fundamental para o processo político. No Brasil, o sistema eleitoral é eficiente, seguro e a urna eletrônica evita as pressões sobre os eleitores. 

Diante das funções dos eleitos, como os vereadores, de formular leis de abrangência municipal, bem como deliberar sobre as que forem propostas por outros vereadores, pelo Poder Executivo ou diretamente pelos cidadãos, além de elaborar o orçamento anual da cidade e fiscalizar a legitimidade das ações do Poder Executivo, muitas vezes somos surpreendidos na etapa da campanha com falsas promessas. Por exemplo, a gestão e a implementação de políticas públicas não compete ao Poder Legislativo, mas ao Poder Executivo.

Assim, o eleitor sempre deve desconfiar de candidatos a vereador que prometam realizar grandes obras. Outras “promessas” comuns de candidatos a vereador em período eleitoral referem-se às questões de segurança pública da cidade. Existe a Guarda Civil nos municípios e até se pode pensar em estruturar políticas preventivas, mas um vereador não poderá, por exemplo, aumentar o policiamento militar ou o efetivo da Polícia Civil. E, sobretudo, considerar que o vazio político do discurso de campanha reclama que se caracterize a distinção entre projetos para que o sentido de conservação possa ser desvelado em face da fidedignidade da promessa ativa para as demandas de transformação que o social manifesta e reivindica.

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Melilo Dinis (Foto: Reprodução Repam)

Melilo Dinis é graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino. Foi agente da Pastoral da Juventude e da Pastoral Universitária. Diretor do Instituto Brasileiro de Direito e Controle da Administração Pública – IBDCAP, em Brasília-DF. Atua em movimentos sociais e foi integrante da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília. Produz análises de conjuntura política e social para entidades, movimentos, grupos de interesse e integra o Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB. É assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica e diretor Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).

Confira a entrevista. 

IHU – Qual foi a marca do segundo turno das eleições? Poderia destacar três pontos que chamaram sua atenção neste pleito? 

Melilo Dinis – A disputa em 51 cidades de segundo turno, com cerca de 33 milhões de votos em disputa (22% do eleitorado nacional), reproduziu a marca geral das eleições municipais de 2024. A democracia acontece, mais profundamente, no chão das cidades. Não que haja um distanciamento clínico entre as dimensões nacionais e locais da política. Tudo está conectado, mesmo que as relações eleitorais se deem, cada uma, de uma forma distinta.

Entretanto, destaco alguns aspectos próprios da segunda etapa das eleições. Houve redução no número das disputas de segundo turno. Em 2012, as disputas de segundo turno ocorreram em 50 das 83 cidades com mais de 200 mil eleitores, à época. Cerca de 60%. Em 2016, em 57 dos 95 (62%). Em 2020, foram 57 dos 95 municípios (60%). Em 2024, eleitores de 51 das 103 cidades (49,5%) retornaram às urnas no último domingo. Cresceu a alienação eleitoral, que é a soma de votos não válidos (brancos e nulos) e a abstenção (não comparecimento do eleitor), resultado da ausência de candidatos proporcionais (no caso das municipais, os candidatos ao cargo de vereador) e de um desânimo com os próprios candidatos, além de poucas disputas mais acirradas até o final (como Fortaleza e Manaus). 

Destaco três pontos específicos sobre o conjunto das eleições de 2024. O primeiro é o funcionamento do sistema eleitoral, da urna eletrônica e de sua segurança. Não creio mais que alguém possa duvidar da qualidade da nossa democracia formal, seja na votação, seja na apuração dos votos. O desempenho das instituições eleitorais foi excepcional. As desinformações que marcaram as eleições nacionais de 2018 e 2022 não resistem mais a nenhuma análise séria sobre o modelo da Justiça Eleitoral. 

O segundo ponto é a quantidade de recursos públicos colocados à disposição dos candidatos. Cerca de 6 bilhões de reais (4,9 bilhões do fundo eleitoral e 1,2 bilhão do fundo partidário para 2024) estiveram submetidos ao controle partidário e este modelo, me parece, tem muitos problemas. Defendi o fim do financiamento empresarial das eleições. Entretanto, o que temos agora é uma excrescência. Os partidos políticos, pequenas empresas, com grandes negócios, se lambuzaram. Casos escandalosos de corrupção eleitoral e de caixa 2 também chamaram a atenção nas eleições e estão sob investigação. Nesse contexto de “siga o dinheiro”, as emendas parlamentares foram decisivas em muitos dos municípios. Houve, ainda, um uso abusivo dos recursos eleitorais, numa distribuição excludente que não incluiu corretamente os grupos minorizados e sub-representados, além das minorias de nossa sociedade. Vamos ter que retomar este debate o quanto antes. 

O terceiro ponto foi a explosão da violência política. De janeiro a outubro de 2024, houve 525 casos de violência política; o número é mais que o triplo do mesmo período da eleição municipal passada. Houve 76 assassinatos políticos em 2024. O levantamento é do Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Giel/Unirio). Nesse contexto, o crescimento da presença do narcocrime, das milícias e de facções na política, faz parte de um crescimento que preocupa. Suas táticas incluíram, por exemplo, a coerção de eleitores e candidatos opositores por meio de ameaças ou violência, assassinatos, restrição de campanhas em áreas controladas, acordos financeiros com autoridades locais por meio de propinas, financiamento de campanhas com dinheiro ilícito, desvio de recursos públicos, ocupação de cargos públicos por criminosos, falsidade ideológica, uso de empresas de fachada e fraudes em licitações, compra de votos, lavagem de dinheiro em campanhas e influência em políticas públicas e projetos de leis que favoreciam seus interesses estratégicos. Em 2024, tais táticas foram denunciadas e investigadas em vários estados, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Amapá, Amazonas, Acre e Rio Grande do Sul.

IHU – Como avalia o resultado do segundo turno das eleições em São Paulo, Natal e Fortaleza? Que fatores determinaram a eleição nestes municípios? 

Melilo Dinis – Foram três cidades com disputas muito acirradas no segundo turno. Nas duas cidades do nordeste, com resultados diferentes, ficou evidente a disputa acirrada com destaque do voto conservador em uma região tradicionalmente mais próxima dos candidatos de esquerda, é uma realidade cada vez mais consolidada. Aliás, somente em Fortaleza e em Recife os candidatos do campo da esquerda foram vitoriosos nas capitais nordestinas. 

Natal. A capital potiguar teve uma disputa até o fim entre Paulinho Freire (União Brasil) e Natália Bonavides (PT), com a vitória do candidato mais à direita (53,34% a 44,66% dos votos válidos). Ele apostou no tema da mobilidade urbana, a aliança com partidos como o PL e uma imagem de empresário que se dedica à política para promover uma espécie de liberalismo. Já a candidata derrotada, Natália, disputou com o apoio de Lula e da governadora do estado, Fátima Bezerra, sofreu ameaças de morte na reta final do segundo turno, mas não conseguiu superar a sua rejeição e a grande abstenção eleitoral (26%).

Fortaleza. A capital cearense teve uma campanha de segundo turno entre Evandro Leitão (PT) e André Fernandes (PL), talvez o candidato, das três capitais, mais identificado com o bolsonarismo. Quem levou, contudo, foi o petista recém-convertido Evandro (14 anos como quadro do PDT, que se filiou ao PT apenas em 2023), numa disputa decidida no detalhe e com pouca diferença dos votos válidos (50,38% versus 49,62%). A vitória em Fortaleza foi o gol de honra do PT nas capitais de todo o país. Resultado de muito investimento, uma militância que comprou a candidatura de uma cidade que, apesar da força mais conservadora, optou por um político experiente e com muita tradição na política local. 

São Paulo. Na maior e mais complexa cidade da América do Sul, Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, ganhou de Guilherme Boulos (PSOL) em uma eleição com muitas polêmicas, num resultado que confirmou o conjunto de pesquisas (59,35% a 40,65% dos votos válidos). Nunes jogou parado, com a máquina da prefeitura nas mãos e um conjunto de apoios que tiveram no governador, Tarcísio de Freitas (Republicanos) o seu melhor ativo. Com mais duas semanas de campanha, Boulos poderia ter vencido. Mas faltou tempo suficiente para reverter a sua rejeição, além de consolidar uma tendência de crescimento que os números finais apresentaram nas urnas. De toda forma, Boulos consolida-se como uma das grandes lideranças das esquerdas, apesar do resultado e com muitas disputas adiante. Destaco a abstenção de 31,54% dos eleitores ou 2.940.360 da capital paulista, o que foi acima do esperado.

IHU – Quais lideranças saem fortalecidas deste pleito? 

Melilo Dinis – Há destaques. Quero destacar dois que estão no espaço aberto das disputas eleitorais. 

João Campos, do PSB de Pernambuco, que ganhou no primeiro número com números excepcionais (78,11%) dos votos válidos é um deles. De uma família tradicionalíssima da política brasileira, bisneto de Miguel Arraes e filho de Eduardo Campos, o engenheiro civil de 30 anos conseguiu uma chapa com o apoio da Federação composta pelo PT, PV e o PCdoB, além do União Brasil, Republicanos, MDB, Solidariedade, Avante, Democracia Cristã, Agir e PMB. Ele tem muito tempo e vai poder afiar sua política na esfera das eleições até uma provável disputa presidencial.

Eduardo Paes é outro. Com 54 anos e no PSD de Kassab, foi reeleito com 60,47% dos votos válidos. Derrotou o candidato de Bolsonaro, com a apoio de Lula (que manteve longe da campanha), com o apoio de vários partidos (Podemos, PRD, Democracia Cristã, Agir, Solidariedade, Avante, PSB, PDT e a Federação composta pelo PT, PV e o PCdoB), na sua quarta eleição para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. É uma cidade em que as disputas eleitorais estão envolvidas por muitas divisões, a presença de facções criminosas, complexos espaços de controle por parte de um poder paralelo, aguda desigualdade social e muitos problemas históricos e estruturais. Entretanto, com um perfil conciliador, capaz de dialogar com os vários pedaços deste mosaico no Rio, Paes teve um desempenho que o destacou e que o coloca como liderança na política brasileira após estas eleições municipais.

Contudo, há outro que não disputou como candidato. Gilberto Kassab, uma mistura de bagre ensaboado com camaleão, no comando de seu PSD, foi o maior vitorioso destas eleições municipais. Antes mesmo de sua formação partidária, em 2010, eu apontava para a ocupação do espaço político brasileiro por um condomínio de caciques que seria o centro do centrão. É um grupo com presença no governo Lula (3 Ministérios) e no governo de Tarcísio de Freitas, em São Paulo. O controle da burocracia partidária, a definição de candidatos para as eleições, os resultados e importância do PSD no Congresso Nacional dão ainda maior relevância ao papel de Kassab. Mas ele jogou nos bastidores.

IHU – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a sociedade brasileira e a subjetividade dos eleitores? 

Melilo Dinis – Na atual conjuntura eleitoral brasileira, nas eleições majoritárias, o eleitor se transformou em “rejeitor”. Vota-se muito menos pelas opções decorrentes da escolha, da adesão de um projeto ou de uma candidatura e muito mais para evitar que aquele a quem se rejeita seja eleito. É uma quadra de tentar eleger o menos pior, o que menos afeta o “rejeitor”! A sociedade brasileira vem num processo de mudanças e que tem exigido, dos explicadores e dos políticos, um grau maior de conhecimento e de compromisso com a realidade. Mudou, por exemplo, a figura e o papel das mulheres na política. Metade dos lares brasileiros, conforme os dados da semana passada, divulgados pelo IBGE, são liderados por mulheres, muitas delas são mães solo, que assumem as responsabilidades pelos seus lares. O que isto muda no voto ainda vai ser tema de muitos debates, mas certamente muda. O digital assumiu um papel, na velocidade das informações, na quantidade e qualidade dos valores subjetivos, que ainda não se conseguiu entender completamente.

O fato é que estas mudanças são parte de uma sociedade brasileira cada vez mais plural, heterogênea e diversa, mas com tensões que se consolidam em relação à dimensão da vida política. Especialmente nas eleições municipais, em que se apresentam questões concretas, o maior desafio é saber em quais prioridades o eleitor aposta para eleger. Claro, que isso muda a partir de cada cidade. Mas, se fizermos um exercício a partir do país, dos resultados nacionais, as eleições rascunharam um país diferente do que se pensava antes delas. A extrema-direita não demonstrou a força que se projetava e se dividiu. As esquerdas não cresceram o que imaginavam. Ambas não entenderam a cabeça do eleitor, que carrega novas pautas e novos hábitos. Mas que mantêm, como tradição brasileira, um olhar conservador na política em termos de valores, trazendo possibilidades para o que chamo de “centro ampliado”, com grupos fisiológicos que se somam ao universo tradicional da política, independentemente do partido político de plantão. O mundo do trabalho, as classes, as religiões, as organizações e a política exigem um outro olhar. Para complicar, temos comunidades sem comunicação e comunicação sem comunidades. Daí a dificuldade de descrever o eleitorado brasileiro como um conjunto com tendências únicas, especialmente em eleições municipais.

IHU – A política brasileira vem se complexificando e novos personagens vêm surgindo. No entanto, a polarização entre lulismo e bolsonarismo ainda é bastante evidente. Como saem Lula e Bolsonaro destas eleições? Existe um vencedor entre os dois? 

Melilo Dinis – Lula e Bolsonaro são duas referências da política brasileira. Há movimentos em torno deles. O “Lulismo” e o “Bolsonarismo” são movimentações distintas dos agrupamentos partidários, claro, com as diferenças de organicidades e organizações de cada um. Não é possível colocar os dois na mesma descrição. Lula é fundador do Partido dos Trabalhadores e sempre esteve ligado a ele de forma umbilical. Bolsonaro é um desses políticos que muda de partido como muda de roupa, e sua presença no Partido Liberal de Valdemar Costa Neto é específico e oportuníssimo. 

Os dois saíram das eleições municipais com as ambiguidades de uma disputa em que ambos atuaram de forma distinta. Lula quase não se envolveu nos municípios. Seu partido fez um movimento de recuo para apostar em frentes partidárias e acabou por crescer em termos de cidades com liderança no executivo e reduzir em termos de votos gerais. Como Presidente da República em um governo de frente amplíssima, não poderia sacudir muito as bases dos partidos que formam o governo e que tem suas contradições. Jair Bolsonaro dedicou-se a espalhar divisão e ajudar a rachar a extrema-direita, em um movimento de proteção de seus espaços pessoais, mesmo sabendo que não possui o controle partidário desejado sobre o PL e sobre os diversos campos deste campo mais reacionário. Com a sua inelegibilidade e com a sua inabilidade, ele não conseguiu uma ordem unida nos principais municípios, além de ter atacado as bases de seus aliados, como fez com Ronaldo Caiado em Goiânia. Lula e Bolsonaro não ganharam nem perderam de uma forma total, ao meu modo de ver. Eles ganharam e perderam! 

Podemos discutir os números pelos números. Mas estamos em uma quadra muito complexa e quanto mais precisos os números, mais podem ser objeto de um discurso superficial. Então, penso que o essencial é avaliar a tendências que saem das urnas. Lula e Bolsonaro continuarão como os grandes líderes de seus movimentos nos próximos anos. Mas não são exclusivos na política nacional. Muitos novos atores estão na órbita desses planetas, ao mesmo tempo em que constroem seus caminhos eleitorais. Há também uma questão geracional. No PT, figuras como Fernando Haddad e Rui Costa, por exemplo, ainda vão disputar muitas eleições. A famiglia Bolsonaro ainda vai permanecer por muito tempo na política, dada a sequência de opções do patriarca por seus descendentes. Há, todavia, um conjunto de outros personagens da política que prometem muito, e não se pode apostar apenas nos políticos mais conhecidos. O que penso é que em condições normais, esta dupla (Lula e Bolsonaro) irá dominar os debates, numa forma de polarização afetiva, que é diferente da polarização política. Mas creio que virão muitos novos nomes no horizonte da política nacional que participarão do amplo espectro brasileiro nas próximas décadas.

IHU – Pablo Marçal parece ter sido, embora nem tenha ido para o segundo turno em São Paulo, o grande personagem destas eleições. Como explicar a fascinação de parte da população com esse discurso empreendedor de "faça você mesmo"? Esse "fenômeno Marçal" pode ter reverberações no futuro? 

Melilo Dinis – O neoliberalismo atravessou em nosso imaginário a figura do empreendedor. Nesta imagem mítica, cabe o motorista do aplicativo e o corretor da bolsa de valores, o vendedor de produtos cosméticos, o lojista e o profissional liberal tradicional. O empreendedor é o sujeito do desempenho – mais rápido e eficiente – que substitui o sujeito da obediência, como Byung-Chul Han definiu (HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017). Suas condições de possibilidade são a disciplina, a interdição e a repressão modernas, cujo corolário forma o sujeito obediente, temerário e angustiado diante da possibilidade de transgressão. Além de indivíduos esgotados pelos sofrimentos psíquicos da nossa época, que são, aos olhos de Han, especialmente a síndrome de burnout e a depressão, ele adota posturas mais conservadoras, dominado por um excesso de positividade contido no mundo do empreendimento que não o permite discutir temas públicos e coletivos, exceto para não atrapalhar a sua caminhada rumo ao “sucesso”, seja lá o que isto simboliza. A política e a esfera pública são obstáculos, ao invés de espaços de solução dos problemas sociais.

Pablo Marçal vem deste universo. Mas ele é mais que isto. Ele consegue associar a teologia do “coaching” à da prosperidade e à do domínio, por meio de uma gramática religiosa, transformando-a por dentro, com uma habilidade no digital que o potencializa exponencialmente. Ele chegará em 2026 como um dos atores do campo da política, especialmente se for candidato. Ele consegue, com movimentos arriscados e frequentes, marcar uma geração de eleitores, que, ao lado de apostar em suas manobras de prestidigitador, se encontra na mesma página do circo das redes (anti)sociais. Seu narcisismo irresponsável é uma característica que vai iludir muita gente antes que o Brasil se canse dele ou ele se canse do personagem.

IHU – O que explica os números cada vez maiores de abstenção em diversas cidades do Brasil? Há necessidade de haver uma mudança no sistema eleitoral?

Melilo Dinis – A abstenção tem como principal elemento a falta de confiança na política. Eu sou muito suspeito neste debate sobre a abstenção. Critico a ilusão do voto obrigatório no Brasil. Eu defendo o voto facultativo, contra a opinião de meus mestres e amigos na política. Não tenho problema em ter esta opinião. O sistema eleitoral, para mim, deveria ter o voto facultativo. A razão: transformar os partidos políticos em devedores dos eleitores e não em credores do voto. Eu defendo ainda o modelo do voto distrital simples. E outros temas mais, todos divergentes de parte dos analistas políticos. Penso que uma reforma política exige um maior debate sobre a reforma da política. São dimensões diferentes. A reforma da política tem a ver com a promoção de uma política melhor, comprometida com o bem comum, capaz de transcender populismos e liberalismos simplistas e promover a caridade social. A política melhor propõe uma abordagem que valorize a geração de trabalho e renda, a inclusão social, a diversidade e a caridade social como elementos fundamentais na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva, socioambientalmente equilibrada, fraterna e voltada para o bem de todos, como tão bem expressou o Papa Francisco (Fratelli Tutti).

IHU – Como a vitória do Centrão, que conquistou mais de 50% dos municípios do país, pode forçar uma nova configuração nas eleições presidenciais de 2026? Que projeções podem ser feitas para o próximo pleito?

Melilo Dinis – O Centrão é a soma de agrupamentos políticos que, entre esquerda e direita, fica com o Diário Oficial e as emendas parlamentares, independentemente de quem está no poder. No Brasil, é uma presença que vem desde o início da redemocratização, mas atingiu maior controle do parlamento a partir de 2019. E aumentou a sua influência nas decisões do Executivo e tenta disputar com o Poder Judiciário, em especial com o STF, o controle das decisões judiciais. Vivemos um modelo misto de presidencialismo de coalizão e de presidencialismo de colisão, com pitadas de parlamentarismo orçamentário em permanente movimento de idas e vindas. Pensando em 2026, ainda correrá muita água por debaixo desta ponte. O Centrão adoraria um Presidente da República do seu time. Mas se não sair, quem vencer, a partir de 2027 saberá a força deste grupo, que domina o meio de campo com uma capacidade excepcional de determinar os resultados. Creio que o Centrão tem como principal objetivo em 2026 dominar nas eleições majoritárias a composição do Senado Federal. São eleições para dois senadores por Estado e o Centrão quer ter maioria absoluta dos senadores, como já tem na Câmara dos Deputados. Este domínio irá determinar em muito a governabilidade e a governança a partir de 2027. Para os cargos em disputa no executivo nacional, a questão será a definição de quem estará na disputa contra Lula, que em condições normais de temperatura e pressão, será candidato à reeleição. Mas diferente de 2022, quando foi o candidato mais capacitado para vencer Bolsonaro, em 2026 disputará com um enorme telhado de vidro, mesmo que a economia siga sendo sua melhor realização, como foi nestes dois primeiros anos.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Melilo Dinis – Acrescento alguns apontamentos laterais sobre as eleições municipais. Os estudos sobre eleições municipais cresceram nos anos recentes. Eles têm procurado lançar luz sobre suas especificidades, e apontam questões deste ano, tais como: o desempenho dos partidos políticos e das candidatas mulheres; o aumento dos não votos (brancos, nulos e abstenção), e a repercussão das eleições municipais no plano nacional; a importância dos programas de governo na eleição para prefeitura; determinantes da sub-representação política dos não brancos; violência política eleitoral; determinantes na reeleição de prefeitos; o papel das redes sociais e da propaganda política etc. Parece-me que ainda vamos debater muito, pois quanto mais aprofundarmos alguns dessas questões, melhor. 

A despeito disso, cada eleição tem uma história própria. O que significa ficar atento ao desenrolar da vida após o processo eleitoral, aos pontos da vida municipal, ao perfil dos atores políticos emergentes, aos contornos da comunicação política, ao processo de diálogo com os cidadãos, muito mais que apenas eleitores, entre outros aspectos. A qualidade da democracia é a participação política, que é muito mais que a última eleição ou a próxima. 

Penso que, para além das teorias, todas muito importantes, vale a pena acompanhar a realidade das cidades e da política. É ali que está a democracia, neste chão cotidiano em que vivemos e exercemos a cidadania (que explico como o direito a ter direitos, como Hannah Arendt, mas também o dever a ter deveres). Este é o preço que nos faz dar o mesmo olhar aos nossos quintais e às praças públicas. Sem isso, não alcançamos os nossos sonhos e dificilmente encontramos a solução dos nossos monumentais desafios sociais. Redefinir a agenda pública, renovar as lideranças políticas e estimular a cidadania ativa são parte essencial do processo de fortalecer o esteio da democracia. E controlar o poder, aliás um dos elementos fundamentais da vida democrática.

 

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Manoel Moraes (Foto: Reprodução Unicap)

Manoel Moraes é advogado e cientista político. Atualmente, leciona na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Titular da Cátedra UNESCO/UNICAP de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara e coordenador geral do Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec).

Confira a entrevista.

IHU – Qual foi a marca do segundo turno das eleições? Poderia destacar três pontos que chamaram sua atenção neste pleito? 

Manoel Moraes – O que marcou as eleições municipais de 2024 foi, em primeiro lugar, a democracia. Isto é, o fortalecimento do estado democrático de direito: as instituições funcionaram e os candidatos participaram das atividades e debates. Tivemos, em tese, eleições tranquilas, em que as instituições saíram fortalecidas. 

O segundo aspecto importante é o fortalecimento e crescimento, no âmbito das câmaras municipais, de grupos de minorias: um aumento da representação LGBTQI+, de transexuais, da representatividade negra e da participação das mulheres na política. Temos sinais de crescimento desses grupos que representam a diversidade dentro do parlamento brasileiro. 

O terceiro aspecto, negativo, é a constatação de que permanece uma certa polarização no Brasil. Um grupo, a partir da esquerda e do centro democrático, tem conseguido vitórias importantes no campo das cidades, mas também há a presença de setores reacionários que não defendem a democracia. A presença de Lula e de Bolsonaro, embora esteja incidindo nas decisões do eleitor, não foi determinante nas decisões de alguns eleitores. Isso mostra que novas lideranças estão assumindo o protagonismo local, mas também que as eleições municipais não foram pautadas pela agenda nacional.

IHU – Quais lideranças saem fortalecidas deste pleito?

Manoel Moraes – Sai fortalecida uma nova geração de políticos que tem diversas matrizes. No campo da esquerda ou do centro democrático, a figura de João Campos, no Nordeste [Recife], com uma vitória extremamente surpreendente, com um carisma contagiante e uma liderança que tomou conta das perspectivas de futuro não só do PSB, mas também do centro democrático. A figura de Boulos também sai fortalecida, tendo em vista que ele conduziu uma importante ida para o segundo turno em São Paulo, o que pode representar uma nova perspectiva para o município. Sua condução já o qualifica para uma condução política no futuro. 

Do ponto de vista da extrema-direita, Marçal também se consolida dentro de uma perspectiva da direita mais conservadora. Existe agora uma disputa no conservadorismo, no legado dessa militância à direita, que não tem mais somente a figura de Bolsonaro como condutor do seu projeto. Existe agora essa nova polarização interna e esse é um fato novo dessas eleições.

IHU – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a sociedade brasileira e a subjetividade dos eleitores? 

Manoel Moraes – As eleições trazem um retrato bastante conservador. O eleitor brasileiro sai das urnas traçando um pensamento muito conservador sobre o Estado, os partidos e a agenda moral. As pautas identitárias não foram tão relevantes e, de certa forma, a esquerda ainda não conseguiu conduzir um discurso que pudesse furar a sua bolha. Isso ficou muito claro. A direita conseguiu não só manter seu eleitorado, com a sua representatividade no campo municipal, como o ampliou. Isso é resultado da paralisia de certas agendas do governo federal, em função do parlamentarismo orçamentário. Quer dizer, o governo federal está totalmente sequestrado em relação ao orçamento e isso engessa as políticas nacionais. A eleição também demonstra uma necessidade de transformação do diálogo, da forma e da maneira com que a esquerda precisa se comunicar. Não se trata só de ocupar as redes sociais, mas em produzir sentidos no discurso afirmativo acerca de determinadas agendas. 

A hipótese é que a sociedade brasileira sempre foi conservadora e mantém um passo coerente dessa história. O país passou por um processo de inclusão social e econômico, mas não do ponto de vista político. A sociedade ainda é muito alheia à questão das eleições, dos partidos, à participação em sindicatos e movimentos sociais. Isso faz com que haja um hiato entre a agenda progressista e a realidade da base social, que ainda é muito pautada pela agenda religiosa, patrimonial, a defesa da propriedade privada, que são as velhas sombras que ilustram determinados discursos que ainda assombram o eleitor brasileiro. 

IHU – Que projeções podem ser feitas para as eleições presidenciais de 2026 com base no resultado das eleições municipais deste ano?

Manoel Moraes – As eleições municipais não são determinantes para a eleição de 2026. São duas eleições diferentes. Uma, como a municipal, tem uma pauta local, a outra, uma pauta nacional, mas que também pode ter rebatimento na conjuntura econômica internacional.

A eleição de 2024 não foi plebiscitária do governo Lula, mas representa um patamar de acúmulo de forças. Estão desenhados no xadrez político os jogadores que vão jogar 2026. Isso é um fato. Esses jogadores, a partir de agora, vão elaborar suas estratégias, construir seus planos de trabalho, principalmente no próximo ano, para que possam ganhar força em 2026. Novos quadros políticos surgiram, tanto na perspectiva da esquerda quanto na perspectiva da centro-direita, e eles vão produzir alianças que irão consolidar ou não a pauta que será vitoriosa em 2026. 

IHU – Que análise faz do resultado eleitoral nos municípios do Norte e Nordeste? 

Manoel Moraes – Norte e Nordeste deixaram de ser uma hegemonia da esquerda. Houve um crescimento da centro-direita no Norte e Nordeste e isso representa uma mudança do que aconteceu nas últimas eleições em relação à centro-esquerda democrática. A nova configuração do Nordeste também representa um esforço de candidaturas de muitos militares, policiais e agentes ligados às forças públicas. Também representa o crescimento da presença do discurso religioso, fundamentalista e conservador. Ao mesmo tempo, houve uma redução da bancada evangélica, seja nas câmaras municipais, seja nas prefeituras. Essa redução pode se dar em função de um desgaste dessas lideranças religiosas. O resultado das eleições precisa ser amadurecido para que possamos redesenhar o quadro político-eleitoral e o perfil do eleitorado brasileiro. 

Em grande parte, as eleições foram pautadas por um processo midiático nas redes sociais, que se fortaleceram como instrumento de fazer campanha e dar visibilidade aos candidatos. Hoje, o candidato bem-sucedido não é aquele que se coloca com uma capacidade discursiva a partir da sua pauta eleitoral. É mais do que isso, ele precisa ser um influencer.

IHU – Como avalia o resultado do segundo turno das eleições em São Paulo, Natal e Fortaleza? Que fatores determinaram a eleição nestes municípios? 

Manoel Moraes – O segundo turno nas cidades de São Paulo, Natal e Fortaleza tem, naturalmente, características próprias. Em São Paulo, o crescimento importante de Boulos trouxe uma polarização com Marçal entre dois projetos: um projeto de desenvolvimento sustentável, na perspectiva de um planejamento participativo, e uma visão mais instrumental e de gestão liberal, pautada por Nunes. Essas duas propostas foram apresentadas para o eleitor e certamente vão representar a participação desses dois candidatos na agenda futura do país, principalmente no caso de Nunes, que contou com a presença do governador de São Paulo. Tarcísio foi a liderança que, desde o início, deu sustentação política ao projeto de Nunes. O governador foi a figura decisiva na eleição de Nunes. 

A eleição de Fortaleza foi a mais acirrada, com discursos pautados na agenda moral e pessoal. Não avançou em projetos. Em Natal, Bonavides traz, em sua candidatura, um discurso feminista e uma perspectiva de esquerda para o PT que avança na possibilidade de uma vitória importante que não só traz a figura da mulher, mas de uma correlação de forças de uma agenda que compreende a pauta do socialismo como sendo um elemento estruturante para o discurso da esquerda. Quer dizer, é uma esquerda que pauta o discurso das minorias, da agenda dos direitos humanos e avança numa perspectiva democrática. É a possibilidade, junto com Vinícius Castello, em Olinda, de serem novos quadros que vão avançar na agenda do feminismo e na questão racial. 

Nesses municípios, os candidatos que cresceram e foram capazes de fazer uma comunicação mais afirmativa estabeleceram estratégias pautadas em uma rede social muito importante no sentido de que tiveram a capacidade de furar a bolha e avançar em outros grupos. Essa capacidade de transcender o seu lugar marca uma nova forma de fazer política eleitoral.

IHU – A ascensão da Natália Bonavides traz novos ares a um quadro bastante envelhecido do PT, com lideranças e nomes que não empolgam a população em geral. Como avaliar a campanha e o surgimento dela? É possível que ela possa alçar voos ainda mais altos em nível nacional?

Manoel Moraes – A ascensão de Natália Bonavides é algo extremamente positivo porque representa para o PT o fortalecimento de uma agenda que ressignifica a perspectiva de luta de classes, de reformas de base e a estruturação do movimento social. Não dá para analisar se ela se tornará uma liderança expressiva no PT. Existem muitas variáveis para que isso aconteça. Mas certamente essa eleição faz surgir um conjunto de novos atores e atrizes que certamente vão estar no surgimento da construção dialógica porque, como em todo partido e movimento social, as renovações vão acontecendo e o processo eleitoral contribui para essa renovação. 

IHU – Como a vitória do Centrão, que conquistou mais de 50% dos municípios do país, pode forçar uma nova configuração nas eleições presidenciais de 2026? 

Manoel Moraes – O centrão mostra sua vitalidade. É preciso separar a vitória do centrão do bolsonarismo. Não está claro se essa vitória representa o vigor do movimento de extrema-direita. Há um crescimento do centrão que teve a vantagem de vários mecanismos, como o aumento dos recursos do fundo partidário, do fundo eleitoral e a própria gestão das prefeituras, que faz a diferença no chamado Brasil profundo. Ainda é cedo para saber se temos a manutenção daquilo que foi a ascensão de Bolsonaro. Arriscaria dizer que hoje a direita está dividida e, portanto, a vitória do centrão não é a vitória da frente que representa Bolsonaro. Mas certamente há um crescimento do pensamento conservador, que não necessariamente é ligado a Bolsonaro. 

IHU – A política brasileira vem se complexificando e novos personagens vêm surgindo. No entanto, a polarização entre lulismo e bolsonarismo ainda é bastante evidente. Como saem Lula e Bolsonaro destas eleições? Existe um vencedor entre os dois?

Manoel Moraes – Como disse na resposta anterior, as eleições não foram pautadas por um caráter plebiscitário. Inclusive, isso ajudou muito o próprio Lula porque nem ele nem o governo federal estavam sendo avaliados. O PT tomou uma diretriz de não disputar os municípios com a mesma força que disputa o cenário nacional. Ao contrário, o PT fez várias composições em que não é cabeça de chapa. Isso prova que o partido optou por uma lógica mais de retaguarda no cenário municipal, para fazer alianças capazes de impulsionar uma aliança maior, que é a chamada Frente Ampla, em 2026. 

Já o campo do centrão é o da sobrevivência. Observamos o fim e a redução do PSDB, que foi um partido importante recentemente, mas sai bastante fragilizado, e um aumento exponencial do PSD. O crescimento desses partidos que foram inseridos na nova eleição mostrou o crescimento de forma vigorosa a partir de várias prefeituras e a redução de partidos tradicionais, como o MDB, PSDB. Não podemos deixar de reconhecer que o crescimento do PT aconteceu, mas ainda está longe do momento em que o PT conseguiu sua representação maior de prefeituras.

IHU – Pablo Marçal parece ter sido, embora nem tenha ido para o segundo turno em São Paulo, o grande personagem destas eleições. Como explicar a fascinação de parte da população com esse discurso empreendedor de "faça você mesmo"? Esse "fenômeno Marçal" pode ter reverberações no futuro?

Manoel Moraes – Marçal representa uma ameaça real ao bolsonarismo raiz porque ele atua dentro do terreno simbólico do protestantismo de resultados. A ideia do empreendedorismo produz a ideia de prosperidade que conecta à ideia de sucesso. Isso é muito caro para esse movimento. Por outro lado, é preciso ver que a presença e crescimento de candidaturas mais à esquerda, também com discursos mais claros e objetivos acerca da agenda da esquerda, conseguiu expressiva votação. 

Precisamos pensar se o período eleitoral foi suficiente para que o efetivo debate de ideias tenha acontecido. O que me parece é que as campanhas tangenciaram a superficialidade e grande parte do que poderia ser o debate eleitoral de ideias e projetos sobre os municípios ficou em segundo plano. 

Houve um crescimento de um tipo de performance bastante agressivo, que criou no eleitor uma certa vinculação com a ideia de sucesso a partir do pragmatismo. Ou seja, vale tudo para chegar ao poder. Esse tipo de situação é muito ruim para o país. 

Nesta eleição, houve um avanço das garantias das instituições, mas, enquanto qualidade do debate político, houve um crescimento tímido do que poderia ter sido feito em termos de debates mais programáticos. Essa situação precisa ser revertida a longo prazo. É preciso que as pessoas percebam os partidos como agências de politização da sociedade e as candidaturas precisam refletir esses projetos. O que acontece no Brasil é que existe muita personalização e populismo. As pessoas votam não no partido, mas nas expressões públicas desses projetos. Isso é ruim porque gera figuras carismáticas e não figuras efetivamente representativas da sociedade enquanto qualidade política de um projeto produzido coletivamente por um partido ou uma frente ou uma federação. 

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