Sodoma e Gomorra não violaram a lei da hospitalidade. Artigo de Eduardo Ribeiro Mundim

A Destruição de Sodoma e Gomorra de John Martin (Foto: Wikimedia Commons)

Mais Lidos

  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS
  • Diaconato feminino: uma questão de gênero? Artigo de Giuseppe Lorizio

    LER MAIS
  • Venezuela: Trump desferiu mais um xeque, mas não haverá xeque-mate. Artigo de Victor Alvarez

    LER MAIS

Assine a Newsletter

Receba as notícias e atualizações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em primeira mão. Junte-se a nós!

Conheça nossa Política de Privacidade.

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

21 Agosto 2024

"O uso homofóbico posterior do texto (Sodoma e Gomorra) demandou uma explicação alternativa, a quebra da lei da hospitalidade. Contudo, enfrentar o uso ideológico do texto sagrado com fins de criminalizar e satanizar as relações homoafetivas com uma explicação alternativa sem embasamento sólido não parece ser o caminho adequado.", escreve Eduardo Ribeiro Mundim.

Eduardo Ribeiro Mundim é médico endocrinologista formado em 1986, especialista em 1990. A partir de 2017 iniciou o acompanhamento de pessoas transgêneres através do SUS em Belo Horizonte (Hospital Eduardo de Menezes / FHEMIG) e também na clínica privada.

Protestante por criação e opção consciente, presbítero discente da Igreja Presbiteriana Unida, procura constantemente articular a fé cristã com as questões de gênero e de afetividade. A articulação se tornou, e permanece, necessária pelo contato profissional com mais de 900 pessoas trans de 2017 até o presente. Fruto deste trabalho foi o livro Transgêneros e fé cristã, publicado em 2021, em sua segunda edição.

Eis o artigo.

Qual foi, afinal, o pecado que as cidades da planície cometeram para serem violentamente destruídas? Uma tradição, cuidadosamente tecida, aponta que foi a concretização do desejo homoafetivo. Este ensino se tornou tão prevalente que a relação sexual entre duas pessoas masculinas passou a ser conhecida como sodomia. E, como Iahweh puniu com tal severidade o crime daquelas cidades, nada mais natural que criminalizá-la.

Interpretações alternativas ficaram esquecidas ou relegadas a segundo plano. É correto propor que a razão básica foi ideológica. Para quem se dedica ao estudo da teologia, de forma pessoal e amadora, ou pessoal e profissional, em algum momento aceitou ou rechaçou a afirmativa: interpretação de textos, inclusive os bíblicos, são ideologicamente determinados e influenciados. Entre elas, está a proposta de que aquelas cidades pecaram contra a lei da hospitalidade. Os habitantes de Sodoma não acolheram dois viajantes anônimos, que chegaram ao final do dia à cidade e não tinham onde se hospedarem. , sobrinho de Abraão, lhes oferece abrigo contra frio da noite e a insegurança da praça. Mas toda a população da cidade, incluindo seu rei, exige a entrega dos visitantes para uma suposta violência sexual. Esta atitude seria a violação da lei da hospitalidade.

Esta interpretação tem sensatez e é coerente com o contexto bíblico imediato. Logo antes, Abraão havia acolhido três viajantes anônimos com grandes desprendimento e generosidade. Seu sobrinho repete o ato, segundo seus recursos econômicos. Mas não aqueles que ele considerava seus concidadãos. E o ensino bíblico como um todo é a favor do acolhimento de todas as pessoas em situação de vulnerabilidade, e reconhece como pecado o virar as costas às pessoas necessitadas.

Contudo, há objeções que podem ser levantadas.

A destruição das cidades já estava decidida no capítulo anterior. Provavelmente por puras razões de ensino às gerações seguintes, Iahweh e dois anjos se apresentam ao patriarca e os últimos vão a Sodoma. Mas não visitam as demais (Gomorra, Admá, Zebolim e Zoar) todas igualmente destruídas. Se a visita celestial selou um veredito legal, como é possível torná-las culpadas “por procuração”? Mas não é este o foco aqui.

Onde estava escrita a lei da hospitalidade?

Aquela região não estava submetida, à época do incidente, a um governo central e unificador. Cada cidade tinha seu próprio governo e áreas de influência. Nenhuma lei era aplicável a todos os lugares.

Os mais antigos códigos legais conhecidos, de Hamurabi, Ur-Nammu, Lipit-Ishtar e Eshnunna, tinha alcance legal determinado pelos seus reinos. E Canaã não estava sob domínio político da Babilônia. É defensável propor que havia uma influência cultural da mesopotâmia sobre a região – haverá registros arqueológicos? Mas o código de Hamurabi, ainda que faça referência a viagens, tabernas e segurança de estradas, não estipula a obrigação de recepcionar viajantes, e fornecer-lhes segurança.

Corretamente pode ser pontuado que haveria uma lei oral, passada adiante como forte constituidor da cultura. Novamente cabe a pergunta: há registros de tal fato? E, sendo uma lei tão capital, qual a razão de não estar escrita? Na legislação atribuída a Moisés não consta o sagrado dever de honrar pai e mãe? Haveria dever maior? Mas está escrita.

Segundo o entendimento da nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém no 19º capítulo de Gênesis, o pecado de Sodoma era ignorar a lei da hospitalidade. Segundo esta suposta lei, quem acolhe pessoas sem abrigo torna-se responsável pela sua segurança, devendo sacrificar a si e a própria família se necessário for. Pois assim se comportou . Artigos neste sítio também adotam esta visão.

Mas Moisés não codificou essa lei centenas de anos depois. Hamurabi não a lançou no seu código. Estudiosos do ramo não a citam. Qual é, então, sua origem?

Os livros de referência procurados (Novo Dicionário da Bíblia, edições Vida Nova, 3. ed., 1979; International Standard Bible Encyclopedia, The Efesians Four Group, 2014; Instituciones del Antiguo Testamento, R. de Vaux, Editorial Heder, 1976) parecem aceitar de forma acrítica as atitudes de Abraão e Ló tem relação a viajantes como padrão da época, e não como valores que ambos tinham, e que destoavam dos ambientes onde viviam. O caráter teológico da atitudes dessas pessoas não as transformam em lei na sua época. E retroceder o comportamento de civilizações dos últimos dois mil anos em relação a viajantes em dificuldade a outra civilização mil e setecentos anos mais antiga carece de fundamentação empírica e lógica.

A destruição das cidades da planície tem um grande apelo afetivo. Afinal, o dilúvio acometeu todo o planeta, na sua compreensão mais comum. E a explicação, genérica: “O Senhor viu quão grande era a maldade do ser humano na terra e que toda inclinação dos pensamentos do seu coração era para o mal o tempo todo. Então, o Senhor se arrependeu de ter feito o ser humano sobre a terra, e isso lhe cortou o coração. O Senhor disse:― Eliminarei da face da terra o ser humano que criei — e com ele também os animais de rebanho, os animais rastejantes e as aves do céu —, pois me arrependo de havê-los feito” (Gn 6.5-7, Nova Versão Internacional). Cobrir o mundo com águas que descem dos reservatórios celestes tem menor dramaticidade (apenas chuva, evento normal, por que divinizá-la?) que fogo e enxofre que descem do céu (somente possível como juízo divino). A sagrada autoria do relato não especifica por qual, ou quais crimes, toda aquela região seria calcinada. Escritos posteriores se incumbem de informar: “Ora, este foi o pecado da sua irmã Sodoma: ela e as filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas, mas não ajudavam os pobres e necessitados. Eram altivas e cometeram práticas detestáveis diante de mim. Por isso, eu me desfiz delas, conforme você viu” (Ez 16.49-50, Nova Versão Internacional).

O uso homofóbico posterior do texto demandou uma explicação alternativa, a quebra da lei da hospitalidade. Contudo, enfrentar o uso ideológico do texto sagrado com fins de criminalizar e satanizar as relações homoafetivas com uma explicação alternativa sem embasamento sólido não parece ser o caminho adequado.

Leia mais