Igreja e Estado: da sodomia à criminalização da LGBTfobia

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11 Junho 2019

"Muitas vezes não é fácil para a pessoa homossexual assumir a sua condição, pois os preconceitos são duradouros e as mentalidades só mudam lentamente, inclusive nas comunidades e nas famílias católicas. Estas famílias são chamadas a acolher toda a pessoa como filha de Deus, qualquer que seja a sua situação. E numa união durável entre pessoas do mesmo sexo, para além do aspecto meramente sexual, a Igreja estima o valor da solidariedade, da ligação sincera, da atenção e do cuidado com o outro", escreve Luís Corrêa Lima, padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio, pesquisador sobre gênero e diversidade sexual, e faz acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.

Eis o artigo.

A compreensão sobre a homossexualidade e as outras variações da sexualidade têm evoluído aos poucos.

O Supremo Tribunal Federal está em vias de criminalizar a homofobia  e a transfobia, a fim de proteger a população LGBT. Já há maioria de votos para isto. Os juízes deste Tribunal entendem que, havendo omissão do Poder Legislativo neste tema, homofobia e transfobia devem ser enquadradas na Lei do Racismo. Como a legislação oferece proteção pela lei penal a grupos sociais vulneráveis, como crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiência, mulheres e consumidores, deve-se proteger também os LGBT. Se o Congresso não atuou, é legítimo que o Supremo atue para fazer valer o que está previsto na Constituição, que não autoriza tolerar o sofrimento imposto pela discriminação.

Há um percurso histórico interessante até esta criminalização, que remete ao tempo da união entre Igreja Católica e Estado no Brasil colonial e imperial. A homossexualidade já foi considerada comportamento desviante e crime, e ainda é em muitos países. Depois foi descriminalizada. Agora, vive-se uma terceira fase em que condutas contra LGBT passam a ser punidas ou consideradas crimes.

Leis civis e eclesiásticas trataram as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo como sodomia, um crime horrendo que provoca tanto a ira de Deus a ponto de supostamente causar tempestades, terremotos, pestes e fomes que destruíram cidades inteiras. O termo sodomia se refere ao relato bíblico de Sodoma e Gomorra, cidades cujos habitantes recusaram a hospitalidade aos que visitavam o patriarca , a ponto de tentarem violentá-los sexualmente. Tal pecado clamou aos céus e resultou no castigo divino destruidor (Gn 19). Esta tentativa de violência nada tem a ver com amor ou com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas do mesmo sexo, mas séculos depois tal relato bíblico passou a ser interpretado deste modo.

Com o advento do Iluminismo, a prática sexual exercida sem violência ou indecência pública não devia cair sob o domínio da lei. Teve início uma crescente descriminalização da sodomia. No século XIX, o termo sodomia foi substituído por homossexualidade, trazendo a questão do âmbito religioso e moral para o âmbito médico. O que até então era visto como abominação passa a ser considerado doença. Mas a partir dos anos 1970, começa a despatologização da homossexualidade. A Igreja, por sua vez, mesmo sem aprovar a conduta homossexual, afirma em carta pastoral aos bispos, de 1986, que toda violência física ou verbal contra pessoas homossexuais é deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifique. Isto não é pouco.

Em 2008, a ONU debateu uma proposta de descriminalização da homossexualidade em todo mundo. Nações ocidentais se posicionaram a favor; e nações islâmicas, contra. A delegação da Santa Sé manifestou-se pela condenação de todas as formas de violência contra pessoas homossexuais. E urgiu as nações a tomarem as medidas necessárias para pôr fim a todas as penas criminais contra elas. Para a Igreja, os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados delito pela autoridade civil. Portanto, não são uma ameaça para a humanidade.

Com relação ao tema da criminalização da homofobia, há um interessante pronunciamento dos bispos franceses, de 2012, que tratou deste assunto, entre outros. Os bispos repudiam a homofobia e felicitam a evolução do direito na França, que hoje condena toda discriminação e incitação ao ódio em razão da orientação sexual. Reconhecem que muitas vezes não é fácil para a pessoa homossexual assumir a sua condição, pois os preconceitos são duradouros e as mentalidades só mudam lentamente, inclusive nas comunidades e nas famílias católicas. Estas famílias são chamadas a acolher toda a pessoa como filha de Deus, qualquer que seja a sua situação. E numa união durável entre pessoas do mesmo sexo, para além do aspecto meramente sexual, a Igreja estima o valor da solidariedade, da ligação sincera, da atenção e do cuidado com o outro.

Igreja e Estado evoluem, mesmo sem estarem unidos como no passado. Quando o Catecismo da Igreja Católica completou 25 anos, o papa Francisco afirmou: “Não se pode conservar a doutrina sem fazê-la progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável, sem humilhar a ação do Espírito Santo”. Fé e direito podem trilhar caminhos promissores para o bem da pessoa humana e para a proteção dos vulneráveis. 

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