05 Janeiro 2024
"A questão teológica e pastoral trazida à igreja é como compreender um fenômeno que as Escrituras não abordam em nenhum momento. Como manter a compreensão da binaridade de gêneros quando o conceito de gênero não é trabalhado por Elas. As dezenas de pessoas inspiradas que nela colaboraram usaram o aparato cultural de suas épocas e em nenhum momento reescreveram conceitos como sexo, gênero, orientação afetiva", escreve Eduardo Ribeiro Mundim, médico endocrinologista formado em 1986, especialista em 1990. A partir de 2017 iniciou o acompanhamento de pessoas transgêneres através do SUS em Belo Horizonte (Hospital Eduardo de Menezes / FHEMIG) e também na clínica privada. Protestante por criação e opção consciente, presbítero discente da Igreja Presbiteriana Unida, procura constantemente articular a fé cristã com as questões de gênero e de afetividade. A articulação se tornou, e permanece, necessária pelo contato profissional com mais de 900 pessoas trans de 2017 até o presente. Fruto deste trabalho foi o livro "Transgêneros e Fé Cristã", publicado em 2021, já esgotado.
Jesus ouviu de dois discípulos, aparentemente na etapa final do Seu ministério, se era Seu desejo destruir com fogo o povoado samaritano que Lhe recusou hospedagem (Lc 9.51-56). Alguns manuscritos acrescentam que esta proposta teria precedentes, já que o profeta Elias o havia feito, ainda que por razões diferentes (II Rs 1). Na terminologia moderna, os filhos de Zebedeu viam uma base bíblica para sua proposta; ela era divinamente endossada. Implicitamente, já que a atitude daquela vila samaritana envolvia o tema da hospedagem, talvez estivesse na memória a destruição de Sodoma e Gomorra – se for fato que um dos seus pecados fora a falta de abrigo ao viajante.
Mas está posto que o poder de retribuir com violência o pecado cometido seria, na visão daqueles dois apóstolos, o padrão divino de resposta. E não sem razão. O ambiente cultural da época era esse. O ensino dos escribas e fariseus punia o adultério com pedradas até a morte, assim como a blasfêmia. Roma, enquanto potência dominante, não tolerava sedição, e não tinha pudores em usar a letalidade como instrumento de repressão e domínio – fato que os judeus contemporâneos a Jesus experienciavam. Morte já se fazia presente no parto, pela alta taxa de mortalidade materna e infantil, assim como aquela da primeira infância.
Qual a novidade da mensagem de Jesus? Vida. Diferente de outras possibilidades religiosas daquele entroncamento de múltiplas confissões, o ministério dEle se alicerçava na sua promoção, mesmo que custasse a de quem o exercia. A defesa da vida era a tônica do seu ministério, na prática e na palavra. Os Evangelhos relatam 55 episódios de cura: 33 em versões compartilhadas e 12 relatos únicos. O conjunto representa perto de 12% do total de versículos deles. Se formassem uma obra à parte, seria provavelmente o quinto maior livro do Segundo Testamento, rivalizando em tamanho com a epístola aos romanos.
Sendo Jesus a comunicação definitiva da Trindade com a humanidade, insubstituível, segundo a epístola aos hebreus (Hb 1.1-4), deveria ser a chave hermenêutica definitiva. Toda a aliança com a descendência abraâmica, descrita e narrada no Primeiro Testamento, tem sua compreensão a partir da Encarnação. A compreensão da Pessoa divina, da Trindade, e do relacionamento com a espécie humana, recebe o filtro de Jesus de Nazaré, o Cristo. E o mesmo vale para o restante do Segundo Testamento.
Qual a imagem do Deus Trino que habita os corações e mentes? O Deus no Primeiro ou do Segundo Testamentos? O dos cinco primeiros livros, ou O dos profetas?
Talvez a resposta dependa do contexto da pergunta. Se realizada por uma pessoa heteroafetiva, branca, classe média teria uma resposta diferente se a autoria fosse homoafetiva, preta, classe E do IBGE? E se a pessoa for transgênera, e não cisgênera?
Orientação afetiva e percepção de gênero são temas recorrentes na contemporaneidade, e habitam o social e o político. Consequentemente, não poderiam deixar de habitar o religioso. O escândalo é o último ser provocado pelos primeiros, quando, idealmente, o movimento deveria ser contrário. Mas nada há de novo debaixo do sol. No primeiro século da era cristã, a escravidão não foi discutida enquanto instituição, sua prática não foi explicitamente reconsiderada. A primeira leitura das cartas pastorais, incluindo a direcionada a Filemon, não traz novidades políticas – apenas religiosas. No ambiente da igreja não há pessoas que sejam senhoras de outras, ou que estejam submetidas ao senhorio de outras. Mas esta novidade compete com uma sociedade economicamente dependente do trabalho de pessoas escravizadas e que percebe esta instituição de forma natural. O cristianismo é numericamente pequeno, ainda que crescente, mas compete com uma ideologia escravocrata com justificativas sociais, econômicas e filosóficas, em uma centúria onde não houve revolta de pessoas escravizadas.
Foram necessários quase dois mil anos para a instituição da escravidão ser, majoritariamente, considerada contrária ao Evangelho e banida. Agora temos a questão LGBTQIAPN+ a desafiar a teologia: como a Trindade a encara? Como a cristandade deve, então, encará-la?
O ditado popular afirma ser possível deduzir a pessoa que se é através dos seus relacionamentos. Sendo correto, a analogia que pode ser aplicada seria conhecer a pessoa através da divindade por ela cultuada. E a questão é porque o Deus cristão abomina a escravidão e também as pessoas LGBTQIAPN+? Por que seria diferente?
Abordar completamente o tema não é o objetivo deste trabalho. Mas introduzir a discussão a partir de uma pergunta: qual a relação da humanidade para com o pecado e como ela macula a visão da Trindade e, consequentemente, do segmento LGBTQIAPN+.
As pessoas antagonistas à fé cristã a acusam de ser um sistema baseado na culpa, não muito diferente de outros sistemas. As igrejas litúrgicas, como a católica romana e as protestantes históricas, em suas ordens de culto, trazem uma dupla marca: culpa e redenção, em equilíbrio às vezes delicado, às vezes rompido na direção da primeira. Mas culpa é um termo técnico da área do direito. Culpa implica não obediência espontânea a uma lei. Se lei e moral estiverem permanentemente concordes entre si, a pessoa culpada é imoral. Consequentemente exilada do convívio com as inocentes e morais.
Todos os textos bíblicos foram escritos em sociedades rigidamente hierarquizadas, onde poderes político e religioso se fundem na pessoa que se assenta no trono. Israel, no curto período dos hasmoneus, tem os dois poderes encarnados em uma só pessoa. Até então era uma exceção na maior parte de sua história, o que não significa ausência de opção política de profetas e sacerdotes. Os livros de Samuel, Reis e Crônicas o demonstram. Os relatos da criação e queda da humanidade são escritos neste contexto histórico. O pecado é visto como consequência da desobediência pelo orgulho, presunção, ambição e sentimentos semelhantes. E a reação divina é violenta.
A autoria sagrada dos textos não lhes atribuiu títulos e subtítulos, nem a conhecida divisão em capítulos e versículos. Aqueles ficam por conta da editora – e talvez seja universal o título para o terceiro capítulo do Gênesis de “a queda”. Termo ausente no texto, assim como várias informações úteis para sua maior compreensão. A redação não nomeou as emoções de nenhuma das personagens. A serpente é descrita como “o mais astuto de todos os animais” mas suas intenções não são explicitadas, nem adjetivadas. A ação da mulher não é qualificada, apenas a descrição da lógica: o fruto é fisicamente nutridor, palatável e recompensador além da aparência. A transformação da capacidade de ver a realidade, “perceberam que estavam nus”, carece de atributos emocionais: surpresa, espanto, culpa, fascínio, medo… Qual deles quem narrou o fato usaria? Novamente a tarefa fica na conta de quem o lê. Igualmente a reação de Yahweh Elohim não traz Suas emoções. Raiva? Fúria? Decepção? Frustração? Horror? Ódio? Pena? Desespero? Solidariedade?
Corretamente pode ser apontado que à teologia sistemática importam dados que deem forma à revelação daquilo que a ciência não tem como conhecer. Nesta perícope é a existência de uma ruptura incurável entre Criador e criatura, a explicação da Sua ocultação aos seus olhos, a origem da eterna percepção de falta descrita pela psicanálise. Mas a sistemática não é um corpo legislativo, é uma informação sistematizada de revelações que busca instruir mentes, e também corações. As emoções fazem parte da humanidade assim como a contração cardíaca ou a digestão dos alimentos. Os textos sagrados não descrevem emoções, mas quem os interpreta as busca, consciente ou inconscientemente. O título “a queda da humanidade” não é descritivo, é valorativo. Não narro o fato, o qualifica. E o texto não o faz diretamente. A qualificação está na mente de quem o lê e interpreta.
Estas questões têm implicação hermenêutica. O que Yahweh Elohim fala a cada uma das três personagens é uma narrativa, ou informação, das consequências dos atos praticados ou a imposição de uma penalidade por um crime? Há uma área comum as duas possibilidades, mas aquelas exclusivas de cada uma são maiores que a compartilhada. A primeira opção é análoga a informação médica de que determinado processo em curso no corpo levará a tais consequências, e nada pode ser realizado para impedir. A segunda é uma declaração de ruptura da ordem que tem que ser punida para impedir nova transgressão. Ou, pensando no contexto da redação (seja a data qual for), restaurar a honra de quem legisla danificada pela ação criminosa. Acrescentando o comentado anteriormente, a população vivia no reino por favor do trono, de quem emanavam as leis que lhe interessavam. Infração a elas era ofensa direta a quem ocupava o trono e o castigo do crime a compensava.
Compreender Gênesis 3 como castigo é tão plausível quanto compreendê-lo como um corpo enfermo. Compreender Yahwev Elohim como Magistrado é tão coerente quanto como Quem Cura. Mas a hermenêutica seguirá rumos completamente diferentes a partir da analogia adotada.
Mas quando o assunto é a população LGBTQIAPN+, e o foco é a transgênera, a hermenêutica de Gênesis 3 é desviada para o magistrado pela força de outra passagem: Gênesis 18 e 19.
A compreensão da destruição de Sodoma e Gomorra tem uma longa e intricada história 3. A bíblia hebraica aponta, como motivo para a catástrofe, a idolatria e a injustiça social contra o imigrante Ló e sua família, bem como arrogância e apostasia; os Evangelhos de Mateus e Lucas, em consonância com textos apócrifos, a hostilidade; a carta de Judas e a segunda de Pedro, a luxúria. Josefo, historiador judaico, as acusa de exclusão, deportação, xenofobia. Clemente, um dos pais da igreja, a imoralidade sexual, em especial adultério e pederastia. Orígenes, outro dos pais, as via como locais de abundante injustiça e falta de hospitalidade. Somente a partir do século IV a sugestão de Filo ganhou corpo progressivamente em direção às relações homoafetivas. Inicialmente vistas como “não naturais”, agrupadas sob o termo “sodomia” quaisquer relações sexuais que não fossem penianas / vaginais.
A homofobia internalizada e socialmente estruturada nos últimos dois mil anos reforça, via Gênesis 19, a visão da Trindade como Juiz e Carrasco. A afirmativa joanina que define Deus como ágape é substituída pela justiça. A possibilidade desta ser satisfeita pelo amor é descartada, pela sua consequente universalidade. Assim hierarquiza atributos divinos, com o amor subordinado à justiça. O que influencia toda hermenêutica bíblica.
Pecado é definido como ato de rebeldia. Sodoma e Gomorra são o ápice da capacidade criminosa da humanidade. Ambas optaram pelo pecado. Assim como quem pratica a “sodomia”. Este é o resumo de quem defende a exclusão da comunidade de fiéis de todo o segmento LGBTQIAPN+, principalmente pessoas trans. Para a população em geral, todo este segmento pode ser resumido em duas palavras: gays e lésbicas. Todas as outras letras seriam “desculpas e variantes do mesmo fenômeno”.
Ainda que a compreensão científica sobre a transgeneridade, e todo o espectro LGBT, esteja longe de fornecer todas as respostas necessárias, muitas questões estão bem estabelecidas. Ninguém escolhe ter uma diferente diferenciação sexual (a única que tem explicações biológicas e genéticas, mais conhecida como intersexo), nem ser homoafetiva, nem ser transgênera. Não há explicação genética, hormonal, biológica, social, psicológica, psicanalítica capaz de descrever o processo em todas as pessoas transgêneras. A ciência médica não é construída sobre eventos únicos, mas sobre os generalizáveis e válidos para todas as pessoas, em todas as localizações geográficas, em todas as culturas. Narrar como uma pessoa se tornou homoafetiva não generaliza o processo, nem o torna reversível.
Igualmente não é possível afirmar a transgeneridade, ou qualquer outra expressão de gênero ou orientação afetiva, como doença. Conceito, inclusive, mutável ao longo do tempo e de caráter filosófico e ideológico. Não sendo doença, não há razão para se buscar cura ou restauração de funções biológicas. Pessoas trans fazem doutorado nas mais diversas áreas, têm ou não os mesmos problemas de saúde que as pessoas cisgêneras (todas aquelas que não são trans) e, se não forem assassinadas, a mesma expectativa média de vida da população em geral1.
Segundo Letícia Lanz, mulher trans, “transgênero não quer dizer um gay (ou lésbica ou bi)...mas um termo ‘guarda-chuva’, que reúne debaixo de si todas as identidades gênero- divergentes, ou seja, identidades que, de alguma forma e em algum grau, descumprem, violam, ferem e/ou afrontam o dispositivo binário de gênero.” Ou seja, toda identidade de gênero que desafia o aparato cultural, filosófico, social e legal que define gênero através da genitália, sendo apenas dois possíveis (visão cisgênera), é uma identidade transgênera. Detalhando o conceito, “são chamados de transgêneros indivíduos que de muitas e variadas formas se sentem não conformes, constrangidos, desconfortáveis e/ou ‘desajustados‘ dentro da categoria de gênero – homem ou mulher – que receberam originalmente ao nascer. Por isso mesmo, essas pessoas são ‘obrigadas a transgredir‘ as normas do gênero no qual foram enquadradas a fim de expressarem a identidade de gênero com a qual se identificam e na qual se reconhecem.”
A questão teológica e pastoral trazida à igreja é como compreender um fenômeno que as Escrituras não abordam em nenhum momento. Como manter a compreensão da binaridade de gêneros quando o conceito de gênero não é trabalhado por Elas. As dezenas de pessoas inspiradas que nela colaboraram usaram o aparato cultural de suas épocas e em nenhum momento reescreveram conceitos como sexo, gênero, orientação afetiva.
A transfobia internalizada, que deita raízes em uma abjeção não percebida e muito menos assumida, atribui às Escrituras posturas que Lhe são estranhas, lendo toda manifestação de sexualidade distinta do padrão heteroafetivo e cisgênero como sodomia e abominação pela ótica do Cristo. Aplica uma hermenêutica viciada e irrefletida sobre Gênesis 19, com ecos de uma divindade vingativa em Gênesis 3 e condicionando toda a compreensão dos textos paulinos que abordam questões de gênero.
Pecado deixa de ser um fato social, intrínseco aos seres humanos e suas construções sociais, inescapável, impossível de exilar, para se tornar única e exclusivamente uma opção conscientemente determinada. Se alguma mácula há no pertencimento ao segmento LGBTQIAPN+, e este autor compreende que não há nenhuma, esta se coloca além da possibilidade de escolha. Ser pessoa transgênera é destino – ou resultado da ação soberana de Deus, se assumirmos que Ele atua no microgerenciamento do universo. A única escolha possível é aceitar o fardo de sê-lo – fardo imposto pela cultura heterocisnormativa, não pela biologia, psicologia ou sociologia.
Como apontam diversos levantamentos, a morte precoce é o destino das pessoas transgêneras que são tolhidas e impedidas de serem cidadãs de pleno direito. Doença e morte antecipada são consequências de um antievangelho.
GRANT, Jaime ; MOTTET, Lisa A.; TANIS, Justin; HARRISON, Jack; HERMAN, Jody L.; KEISLING, Mara. Injustice at Every Turn: a report of the national transgender discrimination survey. A Report of the National Transgender Discrimination Survey. 2011. National Center for Transgender Equality and National Gay and Lesbian Task Force. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2020.
LANZ, Leticia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. 342 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Sociologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 21 jan. 2020.
LINGS, K. Renato. Love lost in translation: homosexuality and the bible. Edição Eletrônica: Trafford Publishing, 2013.
MUNDIM, Eduardo Ribeiro. Transgêneros e Fé Cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 260 p.
STAMBAUGH, John E.; BALCH, David L.. O novo testamento em seu ambiente social. Edição Eletrônica: Paulus, 1996.
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Fogo, enxofre e pessoas trans. Artigo de Eduardo Ribeiro Mundim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU