03 Janeiro 2024
"O centurião sem nome – embora haja quem o chame de Gaius, a partir de outra fonte – que foi a Jesus para curar o homem que amava (seu servo, seu amante ou seu parceiro) está lá desde o início, em um Evangelho onde o que não existe é uma condenação explícita de Jesus à diversidade sexual. Algo que, durante séculos, grande parte da Igreja deu como certo".
O comentário é de Carlos Primo, jornalista espanhol, em artigo publicado por El País, 23-12-2023.
As disputas teológicas, ao longo dos séculos, frequentemente têm como alvo uma palavra, uma nuance, uma dúvida filológica que, amplificada pelo olhar religioso, pode adquirir dimensões extraordinárias. Uma das mais recorrentes alude a um episódio da vida de Jesus narrado nos Evangelhos de Mateus e Lucas. É um relato muito conhecido: na tradução comumente usada, quando Jesus está em Cafarnaum, ele recebe a solicitação de um centurião romano para realizar um milagre e curar seu "servo", que está gravemente doente. Quando Jesus se dirige à casa do centurião, este sai ao seu encontro e diz que não é necessário que entre em sua casa, considerada impura, mas que sabe que apenas com sua palavra pode realizar o milagre. De fato, quando o centurião volta para sua residência, encontra o enfermo instantaneamente curado. Este é um episódio tão popular que, na celebração católica da Eucaristia, milhões de fiéis recitam uma variação de suas palavras antes da comunhão: "Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo". O relato, contado de maneira semelhante por Mateus e Lucas, oferece múltiplas interpretações. Geralmente, além de verificar a capacidade milagrosa de Jesus, é comumente usado como imagem para ilustrar a força da fé, capaz de desejar que o milagre da cura seja realizado à distância, apenas com a palavra. Isso leva Jesus a dizer: "Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tanta fé" – palavras com as quais conclui o episódio.
Até aqui, a versão mais difundida. No entanto, há anos, de tempos em tempos, surge uma polêmica entre diferentes setores da Igreja por causa de uma discussão filológica. O enfermo era verdadeiramente um "servo" do centurião? Vários teólogos e especialistas em Bíblia alertaram que o termo grego que aparece no texto de Mateus para designá-lo, pais, não se refere, no linguajar militar da época, a um servo simplesmente – doulos, termo utilizado por Lucas – mas a alguém que estabelece uma relação afetiva e sexual com seu amo. Um amante ou parceiro homossexual, embora em desigualdade de condições, dada a diferença social entre ambos. Se assim for, esse relato seria a única referência direta ao fenômeno da homossexualidade no Evangelho, embora a maioria das traduções tenha omitido essa interpretação em favor de "filho" (que é duvidoso, pois aos centuriões era proibido ter descendência e família) ou "servo" simplesmente (mas "muito querido por ele", segundo palavras de Lucas que sugerem uma relação além da servidão).
A relação de parceiros entre o centurião e seu servo não decorre de uma interpretação excêntrica, mas é bastante difundida. É comum encontrá-la em livros e artigos que abordam o catolicismo do ponto de vista LGBTI. Até mesmo existe uma associação católica LGBTI argentina chamada El Centurión, que remete a essa leitura. Este ano, sua influência ultrapassou os limites desses círculos. O livro Evangelho 2023, guia de leituras bíblicas de acordo com o calendário litúrgico publicado anualmente pela editora San Pablo, uma das mais antigas e respeitadas no cenário editorial católico, inclui essa interpretação nos comentários que acompanham este trecho, que é a leitura do Evangelho da primeira segunda-feira do Advento. O responsável pelos comentários, Xabier Pikaza, é um teólogo veterano com vasta experiência, numerosas publicações e que também foi professor de Teologia na Universidade de Salamanca por três décadas, até 2003. Pikaza também é uma das vozes que, no contexto espanhol, se pronunciaram claramente a favor da integração do coletivo LGBTI na Igreja. Sua interpretação dos versículos de Mateus está alinhada com essa ideia. Segundo o comentário que ele escreveu, o centurião é "um homem duro, profissional da guerra, homem ferido, porque seu servo/amante está doente; homem odiado por muitos nacionalistas judeus e desprezado por outros mais legalistas, por sua possível conduta homossexual. Para vir como vem, ele teve que 'superar' (abandonar) seu orgulho militar e sua possível humilhação sexual, suplicando a Jesus que o ajude". Se em outros casos, diz Pikaza, Jesus ousa romper a fronteira invisível que impedia a aproximação aos leprosos, "aqui ele atende à dor do soldado de conduta 'irregular', mostrando-se disposto a entrar em sua casa-quartel, mesmo sendo impura. Não o sataniza, nem o expulsa, mas o cura para que ele possa curar seu servo/amante".
No guia litúrgico de 2023 não foi a primeira vez que Pikaza se aproximou deste episódio. Em um artigo publicado em 2015 em seu blog no portal especializado Religión Digital, ele analisou detalhadamente as implicações deste fragmento, uma antiga polêmica que, apesar de tudo, continua sendo uma ferida aberta em certos setores eclesiásticos. Em 18 de dezembro passado, o Papa tomou uma decisão sem precedentes ao autorizar as bênçãos a casais homossexuais que, embora estejam longe de ser equiparados ao casamento – e nisso o Vaticano é taxativo, – mostram uma evolução e uma abertura em relação à posição oficial anterior da Igreja, que sustentava que não poderia "bênção do pecado". No entanto, semanas antes do anúncio, após a publicação da inclusão do comentário de Pikaza no guia de leitura, alguns círculos convocaram em redes sociais um boicote à editora San Pablo e Paulinas por dar espaço ao que consideram interpretações heréticas (uma das mais combativas chega a catalogar como "tremenda heresia") do Novo Testamento. A resposta do círculo de Pikaza veio na forma de um artigo que defende o trabalho acadêmico e intelectual do teólogo contra os argumentos de seus detratores e denuncia a campanha empreendida por meios conservadores.
O misterioso centurião, figura cujo nome nem mesmo conhecemos com certeza, traz novamente à tona um debate vivo e ainda não resolvido. Poderiam parecer discussões bizantinas, mas fazem parte do fenômeno que Frédéric Martel descreveu em sua influente pesquisa "Sodoma", segundo a qual todas as referências à homossexualidade são ferozmente atacadas dentro da Igreja Católica numa tentativa de negar e ocultar a presença secular da homossexualidade em suas próprias estruturas de poder. No entanto, nos últimos anos, diversas vozes, especialmente no âmbito anglo-saxão, têm reivindicado a necessidade de construir pontes entre a Igreja Católica e a comunidade LGBTI. Em seu artigo de 2015, Pikaza citou teólogos como Halvor Moxnes ou John Boswell, que pesquisaram em dois influentes livros nos anos 90 (Bodas de semelhança" e Cristianismo, tolerância social e homossexualidade) a aceitação de relações e uniões homossexuais na igreja cristã primitiva, antes do século XIV. Nos tempos atuais, o teólogo James Alison, autor do fundamental Uma fé além do ressentimento (2003, traduzido para o espanhol pela editora Herder), defendeu a possibilidade de ler a Bíblia sob uma perspectiva gay e lembrou um detalhe que frequentemente é esquecido: que o que não consta nos Evangelhos é uma condenação direta de Jesus às pessoas LGBTI, que foram perseguidas, punidas e maltratadas pela Igreja por séculos.
Outro defensor da abertura é o jesuíta americano James Martin, próximo ao Papa Francisco, e cujo ensaio sobre o tema, Building a Bridge: How the Catholic Church and the LGBT Community Can Enter Into a Relationship of Respect, Compassion, and Sensitivity, tornou-se um pequeno sucesso de vendas. Publicado pela Harper Collins em 2018, sua tradução para o espanhol, pela editora Mensajero, já está em sua terceira edição. Nesse livro, curiosamente, o centurião aparece, não como homossexual, mas como símbolo e quase parábola. "Já ouvi essa interpretação, e é muito interessante que o centurião, pelo menos em Mateus, não use a palavra doulos, que é quase sempre usada nos Evangelhos para definir um servo ou escravo", explica Martin ao ICON.
"Como Xabier Pikaza observa, o termo usado é pais, que significa rapaz ou jovem. Certamente, o centurião deve ter muito afeto por seu servo; caso contrário, ele não teria incomodado Jesus para curá-lo. Mas os dois eram amantes? É por isso que o centurião diz que não é 'digno' de que Jesus entre em sua casa, como foi sugerido? Não sou especialista em grego, mas a maioria dos estudiosos do Novo Testamento diz que essa interpretação não está comprovada". Apesar de sua relutância em aceitar essa leitura, Martin, responsável pelo portal católico LGBTI Outreach, sugere uma interpretação próxima.
"Mas mesmo que pais significasse apenas 'servo', este relato mostra Jesus se dirigindo a alguém totalmente fora do ambiente judaico. Em outras palavras, é provável que o centurião não fosse monoteísta e, certamente, não era judeu. Mas, em vez de expulsá-lo chamando-o de 'pagão' ou 'pecador', Jesus o trata com muito respeito, elogia sua fé e lhe faz um grande favor. É uma mostra precoce de como Jesus trata as pessoas marginalizadas e, portanto, signifique o que pais signifique, mostra como devemos tratar todos que consideramos 'o outro', incluindo as pessoas LGBTI".
O gesto de abertura da Igreja aos casais LGBTI permite vislumbrar que parte do Vaticano pensa como Martin. Em uma Igreja afligida por lutas internas e correntes teológicas em conflito, acuada pelo escândalo dos abusos sexuais e por suas próprias contradições, algo tão simples quanto um relato repetido mil vezes pode desencadear toda uma tempestade midiática. O centurião sem nome – embora haja quem o chame de Gaius, a partir de outra fonte – que foi a Jesus para curar o homem que amava (seu servo, seu amante ou seu parceiro) está lá desde o início, em um Evangelho onde o que não existe é uma condenação explícita de Jesus à diversidade sexual. Algo que, durante séculos, grande parte da Igreja deu como certo.
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O centurião homossexual (?) do Evangelho sobre o qual os teólogos não concordam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU