"Assim começa a mística da oração de Inácio, isto é, a forma como ele rezava. Ele deixava o seu olhar da imaginação ocupado, centrado no relato sem desviá-lo da cena e sem se preocupar o que ele tinha que fazer com o que via. Assim Inácio segue em cada momento da oração, hora após hora e dia após dia, durante os 10 meses que passa em Manresa. Todo o itinerário de sua conversão ele é fiel e perseverante nesta forma de rezar. O essencial da oração de Inácio é deixar-se envolver pelo olhar da imaginação para ver".
O artigo é do Pe. Miguel Antônio Schroeder, SJ, mestre em Teologia Espiritual, orientador dos Exercícios Espirituais no Centro de Espiritualidade Cristo Rei - CECREI, São Leopoldo, RS.
Por que esta aproximação é importante? Porque os Exercícios de Santo Inácio nascem desta forma de rezar de Inácio que o conduz pelo caminho da sua conversão.
Existem muitas maneiras de rezar. Onde um coração se abre para Deus e acolhe a sua presença é uma forma de rezar. A oração é a forma da criatura voltar-se e deixar-se encontrar com o seu Criador. A oração é um impulso da criatura deixar-se atrair por seu Criador. Inácio, na anotação décima quinta, propõe que o “Criador e Senhor se comunique à sua alma devota, abrasando-a em seu amor e louvor e dispondo-a para o caminho em que melhor poderá servi-lo depois” e conclui dizendo: “deixe o Criador agir diretamente com a criatura, e a criatura com seu Criador e Senhor” (EE 15). Por isso a forma como Inácio rezava marca o estilo de oração que o conduziu pelo caminho de sua conversão.
No primeiro preâmbulo do primeiro exercício da Primeira Semana Inácio diz: “O primeiro preâmbulo é composição, vendo o lugar. Aqui se deve notar que na contemplação ou meditação de coisa visível, como contemplar a Cristo Nosso Senhor, que é visível, a composição consistirá em ver com os olhos da imaginação o lugar corpóreo, onde se encontra o quero contemplar. Digo o lugar corpóreo, tal como um templo ou monte, onde se encontra Jesus Cristo ou Nossa Senhora, consoante o que quero contemplar” (EE 47).
Portanto, trata-se de ver com os olhos da imaginação. Inácio usa este potencial criativo da imaginação, para centrar o foco na cena evangélica, deixando ela criar e dinamizar o encontro com o cenário a ser contemplado. É um olhar ativo, curioso em quer ver mais. É um olhar investigativo. Acrescenta a nota que “a ‘composição’ quer colocar o exercitante numa situação ‘existencial’, penetrando, através das imagens, na realidade divina; introduzindo-o, por meio do experimental visível, ao mundo sobrenatural, invisível. É preciso que o exercitante, durante a oração inteira, se conserve nesta ‘ambientação’ existencial, profunda, e que faça todas as suas reflexões dentro desta vivência global” (EE 47 nota 2).
Para entrar na cena evangélica Inácio propõem 3 pontos:
1º ponto: “Ver as pessoas, umas após outras” (EE 106);
2º ponto: “Ouvir o que falam as pessoas sobre a face da terra” (EE 107);
3º ponto: “Olhar depois o que fazem as pessoas sobre a face da terra” (EE 108).
Acrescenta a nota que diz: “Não é necessário que guardemos estrita separação entre a pessoa, suas palavras e atos. Na realidade, contemplação deve ser algo muito orgânico, vivo e pessoal (EE 106 nota 1).
Partindo deste pressuposto de que a experiência de Inácio nasce desta forma de rezar podemos concluir de que nós jesuítas somos exímios orientadores dos Exercícios Espirituais em seguir a dinâmica interna dos EE, isto é: Princípio e Fundamento, 1ª Semana, 2ª Semana, 3ª Semana, 4ª Semana e Contemplação para alcançar o Amor. Mas estamos bem distantes do modo de orar de Inácio, porque não entramos na mística da dinâmica dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Em que consiste esta mística? Ela aparece quando distinguimos a nossa forma de rezar, preocupado em ocupar o tempo e colher frutos da oração, portanto fazer, com a forma de rezar de Inácio em suas 7 horas de oração diária cuja dinâmica consiste em ver através das imagens que a Palavra de Deus apresenta.
Enquanto Inácio estava ocupado com a Palavra de Deus olhando, esta ia trabalhando como a mão do oleiro em seu interior. Assim ele passa a sua hora de oração sem preocupação com o que ele tem que fazer depois. Simplesmente vive a presença da cena evangélica. O ouvir de Inácio na oração não significa necessariamente ouvir vozes, mas é algo muito mais profundo, isto é, ficar olhando para a cena sem se desviar dela durante toda a oração. É deixar o olhar da imaginação ocupado com o movimento da cena evangélica.
Durante a ocupação do olhar da imaginação com a cena bíblica este mesmo olhar se vai envolvendo e interiorizando tudo o que ele vê. O conteúdo da oração é o que este olhar capta, interioriza, mobiliza e que por sua vez fica gravado, registrado no interior da pessoa que contempla. Esta é a dinâmica que dinamiza o encontro sem a pessoa perceber. A dinâmica da ação acontece pelo olhar, pelo ver e não pelo fazer. Talvez aqui encontramos uma resposta à pergunta do Pe. Geral, Arturo Sosa, em sua visita ao Brasil após sua eleição: ‘Por que nós jesuítas fazendo os Exercícios Espirituais todos os anos eles mudam tão pouco ou quase nada?’ (Encontro realizado em São Leopoldo, CECREI, 28/10/2017).
A nossa cultura de oração consiste em fazer, ocupar-se com a Palavra de Deus e preocupado pelos resultados. Saímos da horta com a enxada nas costas e vamos para a nossa oração com a mesma enxada nas costas para continuar o trabalho. O lugar do fazer é no trabalho e a oração é o lugar do ver, sentir e saborear (cf. EE 2). Então nos Exercícios Espirituais o grande desafio é como passar do fazer para o ver. Aqui encontramos o cerne da mística da oração de Inácio de Loyola. Esta é para mim a nova cultura de oração que precisamos criar se quisermos ser coerentes com a Espiritualidade Inaciana dos Exercícios. Sei que isto não dá para ensinar aos outros, porque depende do olhar de cada pessoa. Só a pessoa pode deixar-se ocupar e envolver com o cenário de cada passagem bíblica. O olhar da imaginação que se fixa na cena evangélica começa a se envolver e trabalhar gratuitamente. O movimento captado pelo olhar na ação da cena evangélica é que põe em movimento a pessoa que contempla. É pelo olhar da imaginação que o conteúdo da cena vai sendo internalizada e gravada internamente. Uma vez internalizada ela continua trabalhando independente ao meu querer. O importante é ficar olhando sem outra preocupação.
No Evangelho de João encontramos a expressão que o mesmo João coloca na boca de Jesus para expressar esta diferença entre o trabalho e a oração. Diz: “O Filho não pode fazer nada por sua própria conta; Ele faz apenas o que vê o Pai fazer. O que o Pai faz, o Filho também faz” (Jo 5,19). O que Jesus vê o Pai fazer, no Monte a sós com o Pai, Ele também o faz no trabalho em sua missão, anunciando o Reino de Deus. O Pai é o protótipo da ação de Jesus no trabalho. Isto significa que o que Jesus vê o Pai fazer na oração, Ele o faz igualmente em sua missão.
O primeiro treinamento deste olhar na vida de Inácio o encontramos já em Loyola, quando convalescente de sua perna quebrada, pede livros: “Como era muito dado a ler livros mundanos e falsos, que costumam chamar de cavalarias, sentindo-se bem, pediu lhe arranjassem alguns deles para passar o tempo. Mas naquela casa não se encontrou nenhum dos que costumava ler. Deram-lhe uma Vita Christi e um livro da Vida dos Santos em vernáculo” (Aut. 5).
“Lendo a vida de Nosso Senhor e dos Santos, parava a pensar, raciocinando consigo: ‘E se eu realizasse isto que fez S. Francisco? E isso que fez S. Domingos?’” (Aut. 7). “Todo o seu discorrer era falar consigo: ‘S. Domingos fez isto, pois eu hei de fazê-lo! S. Francisco fez isto; pois eu hei de fazê-lo’” (Aut. 7b). Já ao fim dos 7 meses em Loyola e já com a perna curada saiu de casa e pôs-se a caminho para Manresa. “Quando, pois, se recordava de praticar alguma penitência que praticaram os Santos, propunha realizar a mesma e ainda mais” (Aut. 14).
Inácio enquanto lê os livros da Vita Christi e a Vida dos Santos os seus olhos captam o que vê os santos fazerem e isto leva-o a despertar impulsos interiores a também querer imitar e fazer o via os santos fazerem. Esta primeira faze é ainda uma forma de voluntarismo, isto é, o que via os outros fazerem também lhe deram desejo e vontade de fazer.
Quando Inácio chega a Manresa o seu desejo e determinação é ocupar o seu dia com 7 horas de oração diária (cf. Aut. 23). Como era a oração de Inácio pela qual aparece a sua mística que o transforma interiormente? Muito simples. Ele escolhia um texto bíblico e começava a lê-lo lentamente. Enquanto vai lendo ele observava quem eram as pessoas que ali apareciam e ficava olhando, com os olhos da imaginação, o que via acontecer no relato. Assim ficava se deixando envolver e ocupar durante toda sua oração com a cena evangélica.
Assim começa a mística da oração de Inácio, isto é, a forma como ele rezava. Ele deixava o seu olhar da imaginação ocupado, centrado no relato sem desviá-lo da cena e sem se preocupar o que ele tinha que fazer com o que via. Assim Inácio segue em cada momento da oração, hora após hora e dia após dia, durante os 10 meses que passa em Manresa. Todo o itinerário de sua conversão ele é fiel e perseverante nesta forma de rezar. O essencial da oração de Inácio é deixar-se envolver pelo olhar da imaginação para ver. No fim de seus 10 meses de conversão ele, fazendo a memória do seu caminho, vão se abrindo aos poucos os olhos e ele percebe que, mesmo ele tendo sofrido e vivido todo este caminho da sua conversão, “Deus o tratava como um mestre-escola trata a um menino que ensina” (Aut. 27b). Nesta expressão Inácio nos dá a entender que na verdade ele deixava Deus rezar nele pela Palavra de Deus que o ocupava em cada oração.
Esta descoberta por Inácio é tão forte para ele que conclui que não pode guardar esta experiência para si, mas quer ajudar também a outras pessoas a viverem a sua experiência de Deus. Assim surgem os Exercícios Espirituais com o fim apostólico de ajudar a outras pessoas. Por isto a importância de aprender a rezar como Inácio rezava.
O relato do Oleiro em Jeremias nos pode ajudar a compreender como acontece o processo desta experiência da oração. A imagem do oleiro é um protótipo daquilo que também ocorre na oração de Inácio. Diz o texto: “Palavra que Javé dirigiu a Jeremias: ‘Levante-se e desça até a casa do oleiro; aí eu comunicarei minha palavra a você’. Desci até a casa do oleiro e o encontrei fazendo um objeto no torno. O objeto que ele estava fazendo se deformou, mas ele aproveitou o barro e fez outro objeto, conforme lhe pareceu melhor. Então veio a mim a palavra de Javé: Por acaso será que não posso fazer com vocês, ó casa de Israel, da mesma forma como agiu este oleiro? Oráculo de Javé. Como o barro nas mãos do oleiro, assim estão vocês em minhas mãos, ó casa de Israel” (Jer 18,1-6).
Jeremias escuta a ordem do Senhor: Levante-se e desça a casa do oleiro pois lá quero fazer ouvir a minha voz. Jeremias desce até a casa do oleiro para ouvir o Senhor, mas quando chega a casa do oleiro está tudo em silêncio. Jeremias centra o foco do seu olhar na imagem do oleiro trabalhando no torno e apenas fica olhando. Os seus olhos captam o movimento das mãos do oleiro e fica se deixando envolver pelo movimento da ação do oleiro. Quando Jeremias menos espera nasce dentro dele a voz: ‘Estás vendo este oleiro, pois assim como o barro está nas mãos do oleiro, assim tu estás em minhas mãos’. Jeremias entendeu que o Senhor o havia chamado para ser profeta.
Jeremias vai contemplando com seus olhos da imaginação como o oleiro vai trabalhando o barro com suas mãos e vai imprimindo no barro que está sendo trabalhado a imagem que ele deixa fluir do seu coração. Assim a Palavra de Deus, que Inácio contemplava em cada oração vem a ser a mão do oleiro que vai imprimindo nele a imagem original que o Criador tinha dele no seu coração desde a criação. Esta imagem original do coração do Criador é que trabalha nele até que tudo esteja conforme a esta imagem original. Este é o efeito do olhar contemplativo, isto é, não é a pessoa que vai dizer como ela quer ser, mas é a imagem, captada pelo olhar da imaginação da Palavra de Deus, que vai trabalhando e deixando o Criador fluir sua imagem que Ele tem no seu coração desde a origem da criação. Através do olhar contemplativo o Criador vai reconstituindo tudo o que não estiver de acordo com esta imagem original. O movimento da Palavra de Deus é a mão do oleiro que trabalha, envolve, mobiliza internamente e vai transformando. É um processo curador e regenerativo da imagem da pessoa segundo o que ela foi pensada a ser em sua vida. É a Palavra de Deus que foi regenerando Inácio ao longo do itinerário de sua conversão. É dom e graça e não mérito pessoal seu.
O caminho da conversão de Inácio passa por três etapas:
1. “Até este tempo sempre perseverava quase num mesmo estado interior, com igualdade grande de alegria, sem ter conhecimento algum de problemas interiores espirituais” (Aut. 20).
2. Inácio foi acometido por uma tentação enquanto rezava: “Como poderás sofrer tal vida nos setenta anos que hás de viver?” Mas a isto respondeu também interiormente com grande energia: Ó miserável! podes-me tu prometer uma hora de vida? Assim venceu a tentação e ficou quieto” (Aut. 20). “Mas logo depois dessa tentação, começou a sofrer grandes variedades em sua alma” (Aut.21).
3. “Com isto quis o Senhor que despertasse como de um sonho” (Aut. 25b). Aqui termina a segunda etapa, das trevas interiores e começa a etapa das luzes. Mesmo nas dificuldades que passa em sua oração ele perseverava e era fiel às suas 7 horas de oração diária. Este é o segredo para uma experiência humana de Deus, isto é, a fidelidade.
A pedagogia de Deus no encontro com a pessoa é começar na periferia, envolvendo aos poucos, sem chamar muita atenção. A dinâmica é de uma espiral que vai adentrando aos poucos até chegar ao centro. Passa pelos bloqueios, que Inácio chamava de pecados da vida passada. Hoje, com a ajuda das ciências humanas, podemos considerar os bloqueios, traumas, apegos da vida passada. São os afetos desordenados de que Inácio fala nos Exercícios Espirituais. Todos eles precisam ser vencidos. A força que atua é a luz da Palavra de Deus com a qual Inácio se ocupa em cada momento de oração. Ela é a mão do oleiro que vai trabalhando, soltando, mobilizando e transformando até configurá-la com a imagem original que Deus tem da pessoa no seu coração: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26). Este é o caminho terapêutico de cura dos afetos desordenados da pessoa de sua vida passada. É a força da imagem captada que transforma como a mão do oleiro transforma o barro em uma obra de arte. Portanto, a Palavra de Deus vai começando a tocar pela periferia e vai adentrando, passando pelos bloqueios, traumas, apegos, trevas, etc. até tocar o centro onde a pessoa é luz por excelência, assim como ela foi pensada pelo Criador.
Assim podemos compreender a definição que Inácio dá dos Exercícios Espirituais no livro dos Exercícios: “Exercícios Espirituais para vencer a si mesmo e ordenar sua vida, sem determinar-se por afeição alguma desordenada” (EE 21). Portanto, os Exercícios são treinamento de superação, sair de si, soltar, que acontece com o movimento e a força da Palavra de Deus. Ordenar sua vida vem da configuração com a imagem original que o Criador tem no seu coração de cada pessoa. Esta configuração vem pelo trabalho da Palavra de Deus que ocupa, envolve e mobiliza a pessoa internamente em cada momento da oração. Este caminho pode ser longo e penoso. Exige muita determinação, dedicação, perseverança e fidelidade na oração. A oração, como um deixar-se ocupar com a Palavra de Deus, envolve uma dinâmica de conhecer a pessoa de Jesus: “Felipe disse a Jesus: Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta para nós. Jesus respondeu: Faz tanto tempo que estou no meio de vocês, e você ainda não me conhece, Felipe? Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,8-9). Somente o deixar-se abrir os olhos por Jesus, isto é, deixar-se centrar nele é que podemos fazer a experiência de reconhecer Jesus. “Jesus sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e abençoou, depois partiu e deu a eles. Nisso os olhos dos discípulos se abriram, e eles reconheceram Jesus… Então um disse ao outro: Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,30-32). A verdadeira missão dos discípulos nasce a partir do que viram e experimentaram com Jesus ressuscitado.
Concluindo esta reflexão da dinâmica interna dos Exercícios Espirituais, sinto que o grande desafio que se coloca é: como passar de uma cultura do fazer para uma cultura do ver. A experiência de Inácio mostra que a ação de Deus opera nele pelo ver. Um primeiro obstáculo a encarar para entrar na dinâmica do ver são a cobrança dos resultados. Entrando na dinâmica do ver a impressão é que não estou fazendo nada. Não estou fazendo nada produzindo, mas estou deixando o olhar da imaginação trabalhando. Este capta e interioriza, dinamizando o interior da pessoa. Este dinamismo interno vai configurando a imagem pessoal de cada pessoa com a imagem original que o Criador tem de cada um em seu coração. No final de cada oração Inácio apontava algo do que viu em sua oração contemplativa.
Loyola, Inácio. Autobiografia de Santo Inácio de Loyola. Ed. Loyola, SP, 1974
Loyola, Inácio. Exercícios Espirituais. Porto Alegre, Cecrei, 1966
Sagradas Escrituras. Edição Pastoral, SP, Paulus, 1990