22 Dezembro 2023
No relato do Evangelho de Lucas, certamente vejo Maria, mas também vejo Myriam, a judia criada na tradição, destinada a se casar com um homem da casa de Davi, ela mesma da estirpe de Davi, pouco amada ou até mesmo ignorada pelos textos judaicos pelo significado fundante do cristianismo que sua história assume, mas nunca renegada por ser judia.
A opinião é da historiadora italiana Anna Foa, professora da Universidade La Sapienza, em Roma. O artigo foi publicado em L’Osservatore Romano, 19-12-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No relato do Evangelho de Lucas, está um dos momentos mais exaltantes da história de Maria. O anjo Gabriel anuncia a Maria que ela conceberá um filho que “será chamado Filho do Altíssimo”.
Os artistas têm-se entregado ao longo dos séculos a esse encontro entre Maria e o anjo. E suas Anunciações são ecos da mudança do significado que esse anúncio destinado a dar vida ao cristianismo assumiria na mudança dos tempos.
No relato do Evangelho de Lucas, certamente vejo Maria, mas também vejo Myriam, a judia criada na tradição, destinada a se casar com um homem da casa de Davi, ela mesma da estirpe de Davi, pouco amada ou até mesmo ignorada pelos textos judaicos pelo significado fundante do cristianismo que sua história assume, mas nunca renegada por ser judia.
E, desse relato, fico particularmente impressionada com o estupor: o estupor pelo destino que lhe é anunciado, que me lembra de Sara e de sua risada quando no Gênesis lhe é anunciado, aos 90 anos de idade, o nascimento de Isaac.
E lembro-me de ter lido nos textos de um grande estudioso, Daniel Boyarin, que o Evangelho de Lucas não estava alheio, nesse relato, aos antigos midrashim que narravam o futuro nascimento do Messias.
Mas o que é esse estupor? O estupor de conceber sem “ter conhecido homem”, o de ser a escolhida de Deus, o da – recorrendo ainda a Lucas nas palavras extraordinariamente poderosas do Magnificat –profecia de que seu filho estará destinado a derrubar “os poderosos de seus tronos”?
E, ao não encontrar resposta na minha alma de não crente, gosto de encontrá-la nas imagens dos pintores que deram vida com figuras e cores àquele estupor, até transformá-lo em susto, em fuga: como na Anunciação de Recanati de Lorenzo Lotto, em que o susto de Maria é multiplicado pelo do gato, que também foge do anjo.
Mas, para voltar aos motivos mais especificamente judaicos que esse texto evoca em mim, não havendo pintores judeus antes do século XX que pudessem representar a visão judaica da Anunciação, recorro às Anunciações de Chagall, que também preferia esse tema ao da Crucificação: não há susto nas suas Anunciações, mas sim grandes ramos de flores, e o anjo e Maria se assemelham aos namoradinhos que povoam seus quadros.
Pergunto-me o porquê dessa harmonia com que os olhos de um pintor judeu, que também sabia pintar os dois mundos e seu confronto, para além de seu encontro, viam o anúncio de Deus a Maria, à Myriam dos judeus. E me pergunto se não era porque, naquele anúncio, o pintor judeu via, de fora, a esperança, enquanto, de dentro, ao longo dos séculos, a iconografia católica também capturava ali o terror e o tremor de promessas tão difíceis de se realizarem no mundo.
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O estupor do destino anunciado a Maria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU