07 Outubro 2024
Presente em Gaza nas primeiras semanas da brutal ofensiva israelense contra a faixa, Abou Sitta foi testemunha das consequências dos ataques contra hospitais. Quase um ano depois, viajou ao Líbano para se deparar com uma realidade similar.
O cirurgião britânico-palestino Ghassan Abou Sitta operou, em toda a amplitude da palavra, durante 43 dias nos hospitais de Gaza, tornando-se uma testemunha chave das atrocidades sofridas pela população no enclave palestino. Nos encontramos com ele em um hospital em Beirute, onde ele enfrenta a crueldade de uma guerra que mergulha o País dos Cedros na mais absoluta angústia. Para ele, não há dúvida: no Líbano como em Gaza, a destruição do sistema de saúde é parte integrante da estratégia israelense. Nas últimas semanas, mais de cem socorristas libaneses morreram, e o Estado de Israel os ameaça diretamente.
A entrevista é de Laurent Perpigna Iban, publicada por El Salto, 07-10-2024.
O senhor operou por mais de um mês no início da agressão em Gaza e foi testemunha direta dos incessantes ataques do exército israelense contra o sistema de saúde. Houve uma verdadeira política de destruição?
Sim, parece óbvio. Em 12 de outubro, o exército israelense começou a ligar para os diretores dos hospitais de Gaza pedindo que evacuassem e avisando que, se alguém morresse, seria responsabilidade deles. E depois, em 17 de outubro, atacaram um hospital, iniciando toda aquela propaganda do exército israelense sobre o Hospital Shifa e todos aqueles bunkers e túneis subterrâneos. Toda a maquinaria propagandística alegando a militarização do sistema de saúde para justificar os ataques, essa foi a estratégia deles.
Destruir o sistema de saúde para expulsar as pessoas é um elemento central da estratégia militar e dessa ideia de limpeza étnica, especialmente no norte de Gaza.
E, enquanto faziam isso, atacaram três hospitais infantis no norte e os destruíram. Atacaram também o Hospital Quds, que faz parte da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino, e, por fim, sitiaram o Hospital Shifa. Foi então que ocorreu o massacre, e 400 pessoas foram encontradas em uma vala comum. A ideia de que era necessário destruir o sistema de saúde para expulsar as pessoas é, portanto, um elemento central da estratégia militar e dessa ideia de limpeza étnica, especialmente no norte de Gaza.
Além de enfraquecer um sistema de saúde já saturado, essa situação convenceu os moradores locais a abandonarem a região?
Acredito que o êxodo das pessoas do norte para o sul realmente se acelerou após o ataque ao Hospital Shifa e tudo o que o cercava. Então, como podem imaginar, para aplicar a ideia de política de terra arrasada ao estilo “Vietnã dos anos 70” em pleno século XXI, a destruição do sistema de saúde é parte integral se se quer expulsar as pessoas. Além disso, mataram 165 médicos e mais de 800 profissionais de saúde, incluindo enfermeiros, médicos e paramédicos. Até mesmo três médicos foram assassinados sob tortura. Portanto, é óbvio que o objetivo não é apenas atacar o sistema de saúde, mas destruí-lo.
Mais de uma centena de trabalhadores médicos foram assassinados no Líbano nas últimas semanas. Estamos testemunhando uma estratégia semelhante?
Pois é, não há dúvida de quão preocupante é começar a ver um padrão similar. Houve dezenas e dezenas de ataques a ambulâncias, inclusive as da Cruz Vermelha Libanesa. Portanto, não apenas às que pertencem a partidos políticos, mas até mesmo às da Cruz Vermelha. A mídia israelense começou a difundir a ideia de que o Hezbollah controla o Ministério da Saúde. O mesmo plano.
Basicamente, começam dizendo que o sistema de saúde é um alvo militar legítimo e, assim, justificam seus ataques. E essa é a nossa preocupação: os israelenses estão tentando esvaziar tudo o que está ao sul do Litani, e a destruição do sistema de saúde será parte desse plano.
Essas ameaças de Israel contra os socorristas de organizações não oficiais (Autoridade de Saúde Islâmica, Defesa Civil Libanesa...) se fizeram sentir na capacidade de resposta sanitária, com a acusação de “serem utilizadas para fins militares”?
O sistema de saúde aqui no Líbano, como sabem, sofreu quatro anos de colapso econômico, e o valor da moeda foi desvalorizado em 90%. Portanto, estamos diante de um sistema de saúde que já era muito frágil. Um terço dos médicos e enfermeiros emigraram, a capacidade de aquisição do Ministério da Saúde e sua capacidade de apoiar os hospitais são nulas. Então, como é evidente, a situação é muito precária.
O sistema médico libanês foi submetido a uma dura prova após o ataque dos “pagers”. E é uma prova que parece ter resistido. Quando começaram a atacar Dahieh, ainda estávamos trabalhando por causa do ataque dos pagers. E, no domingo, passamos o dia inteiro tirando os pacientes das camas, prevendo que essa guerra iria estourar. Portanto, o sistema de saúde já estava sobrecarregado de feridos pelos pagers.
Deve ser algo muito difícil psicologicamente para você. Sair do massacre em Gaza e chegar aqui, encontrando um país atacado por todos os lados.
Para você ter uma ideia, eu estava em Londres quando a história sobre os pagers começou a circular. E, ao meio-dia, amigos começaram a me ligar dizendo: “Escuta, isso não é algo menor nem se parece com nada que já vimos antes”. Eram milhares de pessoas gravemente feridas. Então, peguei o voo noturno de terça para quarta-feira de manhã e vim para cá. Estivemos trabalhando desde quarta-feira de manhã até sábado à noite, atendendo 50 ou 60 casos por dia, só com ferimentos por explosão no rosto, na mão, algumas pessoas nos músculos, porque é onde colocam o pagers, no bolso. Mas é importante destacar que a carga explosiva colocada no pagers poderia ser considerada insuficiente para ser letal.
Você acha que esse detalhe da carga foi intencional?
Sim, foi intencional. Não era para matar pessoas, mas para causar dano. O objetivo era feri-las e mutilá-las. É uma estratégia militar. Às vezes, é mais importante ferir as pessoas do que matá-las. Porque, se você mata, enterra e acabou. Mas, se você as fere, paralisa o sistema médico e, consequentemente, paralisa o país. Isso faz parte da guerra psicológica.
Você poderia tentar, da maneira mais humana possível, descrever o sofrimento dos palestinos?
Eu poderia tentar, talvez, levando em consideração minha experiência prévia em outros conflitos. Trabalhei em Gaza antes, nas outras guerras, em 2009, 2012, 2014 e 2021. Também no Iêmen. E na Síria. E, sendo sincero, comparando o que está acontecendo com essas experiências anteriores em Gaza e em outros conflitos, a diferença entre esta guerra e aquelas é a que separa um tsunami de uma inundação. A inundação te pega de surpresa, mas para, estabiliza-se. O tsunami te envolve completamente e não para por nada… Fomos até obrigados a fazer coisas que sabíamos que não eram as corretas do ponto de vista médico, mas, devido aos recursos, muitas vezes era a única opção disponível ou viável para prosseguir.
E também faz parte do seu trabalho, quando ocorre algo trágico ou muito complicado, lidar com a família com o máximo de tato possível, certo?
Sim, sim, é um grande desafio. Além disso, muitas das famílias eram nossos colegas. Havia colegas no hospital que tinham sido assassinados. Quando voltavam para casa, eram mortos. E tínhamos colegas cujas famílias chegavam mortas ao pronto-socorro. Imagine o cenário.
Você continua em contato com os médicos de lá? Que notícias eles te transmitem? Como está a situação?
A verdade é que está tudo muito desalentador... Para dar um exemplo relevante, a metade de todas as amputações realizadas são de membros que poderiam ter sido salvos, mas, devido à negligência e à falta de material médico, gangrenaram. Eles me dizem que, basicamente, a maioria dos feridos simplesmente morre porque não há nada para tratá-los. Falta anestesia para uma amputação. Mas também falta combustível para ligar a máquina de anestesia, para ligar o gerador do hospital... Faltam o essencial.
Para um país, sob a perspectiva dos analistas de saúde, gerenciar os feridos causados por um ano de guerra é algo muito, muito, muito difícil. Mas para a Faixa de Gaza, que nem sequer é um país... Serão necessários anos e anos e anos, até gerações, para se recuperar, para limpar o solo dos escombros, mas também das minas, para reconstruir tudo.
E os corpos dos que sobraram. Ou seja, nos deparamos com 11.000 crianças com amputações, é terrível...
Impressiona o número, sem dúvida...
11.000. Isso causa um verdadeiro impacto em uma sociedade. Muda tudo. As amputações significam que as crianças precisam de uma nova prótese a cada seis meses. Precisam de entre oito e doze cirurgias até se tornarem adultas. Sabemos por outras guerras que essa é uma jornada que dura toda a vida.
E isso sem mencionar as doenças crônicas. Elas não estão sendo tratadas agora nem serão no futuro. Serão muito mais frequentes do que antes.
Quando alguém vê a destruição que houve no Beqaa ou no sul do Líbano, ou em Dahieh... É impossível não evocar a Palestina...
Totalmente. Quando você vê que todas essas aldeias do sul estão completamente destruídas, sabe que está diante de uma limpeza étnica novamente.
O que Israel fez foi acostumar o mundo a um nível de brutalidade tal que qualquer coisa que faça no Líbano será menor do que o que está fazendo em Gaza. E assim, o mundo já não se surpreenderá. Um nível de violência terrível se normalizou.
Se Israel continuar por esse caminho no Líbano, quanto tempo você acha que levará para colapsar completamente o sistema médico libanês?
É uma pergunta de difícil resposta. Pelo que observamos, eles estão se movendo do sul para cima. Agora tentam garantir que as ambulâncias não consigam chegar ao sul. Antes era possível ir a Tiro. Agora Tiro é como uma linha de frente. Depois, será Saida. E farão o mesmo que estão fazendo em Gaza: impedir o acesso aos bombeiros, aos médicos... Ligam para os celulares deles e dizem que vão bombardear. Da última vez que estive no sul do Líbano, havia um incêndio enorme e estavam bombardeando, impedindo assim que os bombeiros chegassem...
O que isso significa? Que, em um país como o Líbano, onde há 1.300.000 deslocados e cujos hospitais estão em uma situação muito, muito complicada, o sistema ainda parece estar aguentando. Mas o futuro se apresenta verdadeiramente incerto, considerando que as coisas vão de mal a pior.
Por enquanto está funcionando, mas por quanto tempo? É impossível saber.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"No Líbano como em Gaza, assistimos à destruição do sistema de saúde". Entrevista com Ghassan Abou Sitta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU