"Milei aplica a doutrina neoliberal do choque com uma virulência jamais vista".
O comentário é de Claudio Katz, professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular). O artigo é publicado por A Terra é Redonda, 17-01-2024. A tradução é de Fernando Lima das Neves.
Nas primeiras semanas de governo, Javier Milei transpareceu o atropelo descomunal que pretende estabelecer. Nenhuma denominação exagera essa ofensiva. É um “plano de guerra contra a classe trabalhadora”, uma “motosserra contra os despossuídos” e uma “contrarreforma integral da sociedade argentina”. Aplica a doutrina neoliberal do choque com uma virulência jamais vista. Martinez de Hoz, Rodrigazo, Menem ou Macri são antecedentes tímidos da brutalidade em curso.
Javier Milei espera concluir em um ano a cirurgia da despesa pública que o FMI propôs realizar ao longo de cinco anos. Proclama a conveniência do sofrimento e prevê um colapso ainda maior da renda popular antes de conseguir a prometida recuperação econômica. Omite que esses sofrimentos não se estenderão ao punhado de poderosos que sua administração enriquece. Esconde também a natureza desnecessária e premeditada dos danos que está causando a toda a população.
O libertário apresenta sua marreta como a única solução possível para conter uma catástrofe econômica iminente. Mas fundamenta este diagnóstico com números absurdos. Inventa uma hiperinflação de 15.000%, déficits gêmeos de 17% do PIB e alerta para o aumento do preço do litro de leite de 400 para 60 mil pesos. Exagera insanamente os desequilíbrios da herança recebida para dissimular a atrocidade de suas medidas.
Em poucos dias, desmentiu todas as mensagens da campanha eleitoral. Seus decretos penalizam o grosso da população e não um punhado de políticos. Já substituiu as menções à “casta” por todo o Estado como destinatário dos cortes. Agora, confessa que sua tesoura se estenderá ao setor privado, mas omite que os grandes grupos capitalistas estão isentos deste ajuste.
Com a história de evitar uma hiperinflação futura, Javier Milei gera uma superinflação imediata. Começou com uma mega desvalorização de 100% que aumentou o custo de vida para 25-30% ao mês. Remediar o perigo desse flagelo com mais inflação é o primeiro absurdo de seu programa.
Os preços dos alimentos voltaram a subir acima da média, ameaçando a sobrevivência dos setores mais pobres. Javier Milei intensifica essa degradação, anulando todos os obstáculos legais à selvageria do mercado (lei de abastecimento e das gôndolas). Eliminou as restrições à exportação de carne, a fim de fixar o preço deste alimento em sua cotização internacional impagável.
Já se prevê um salto dramático na pobreza, que, no primeiro trimestre de 2024, afetaria 55-60% da população. A compensação irrelevante dos cortes nos planos sociais resultará em situações de subnutrição.
Os aposentados são, outra vez, o segmento mais afetado. Javier Milei esquivou-se da concessão dos bônus, que aliviam periodicamente os que recebem salário mínimo. Além disso, prepara outra alteração da fórmula de mobilidade para castigar o setor mais vulnerável da sociedade. O objetivo dessa crueldade é recriar o falido regime das AFJP (aposentadoria privada), alegando insuficiência de fundos na Seguridade Social. Omite que bastaria repor as contribuições patronais (eliminadas pelo menemismo e não repostas por seus sucessores) para equilibrar esse sistema.
A prioridade de Javier Milei é precarizar o trabalho, aproveitando a demolição dos custos laborais impostos pela inflação. Com este objetivo, promove uma reforma trabalhista que pulveriza as indenizações, elimina a ultra-atividade dos acordos e extende os períodos de avaliação.
A classe média será atropelada com aumentos de tarifas que duplicarão o preço dos transportes na AMBA [Área Metropolitana de Buenos Aires]. Sem se afastar do princípio do nivelamento por baixo, Javier Milei argumenta que, no resto do país, estas despesas são mais elevadas. Também reforça a campanha das empresas de medicina pré-paga para apropriarem-se da nata do mercado. Seu decreto vai permitir-lhes capturar os membros das obras sociais com rendas mais elevadas, para expulsar os mais pobres para o inferno dos hospitais públicos sem recursos. Estas empresas preparam seu novo negócio com aumentos nas tarifas de 40 ou 50%.
A foice para os funcionários públicos passa pelo congelamento dos salários em pleno dilúvio inflacionário. Está em curso a demissão de trabalhadores contratados e a subsequente purga em inúmeros organismos. Também avança a destruição da estrutura científica, levando o CONICET a sobreviver com seis meses de orçamento.
O libertário promove esta sangria ao macular o trabalho estatal e ao encorajar uma confrontação com os assalariados do setor privado formal. Com este objetivo, autorizará, para este segmento, a vigência das negociações paritárias de curto prazo com cláusulas gatilho, que proíbe no setor público.
Javier Milei pretende consolidar a demolição do nível de vida popular, com uma recessão que gere altas taxas de desemprego. Espera dissuadir a resistência social com essa massa de desempregados. Menem recorreu a esta receita e seu emulador a recria, paralisando as obras públicas e reduzindo as transferências às províncias. Este vendaval provocaria também a quebra massiva de pequenas empresas em favor dos grupos nacionais concentrados, que o libertário favorece anulando a lei das gôndolas. As empresas estrangeiras são recompensadas com a eliminação da Ley de Compre Argentino.
O ocupante da Casa Rosada supõe que, com este trator de esteira, a economia encontrará um ponto de inflexão quando a depressão pulverizar o consumo interno. Prevê que, neste momento, a estabilidade monetária induzirá um ciclo de reativação, gerido pelos poderosos que sobreviverem ao colapso do resto. Mas não pondera a possibilidade de uma estagflação duradoura devido aos desequilíbrios introduzidos por seu ajuste.
Se, por exemplo, a arrecadação diminuir juntamente com o declínio do nível de atividade mais do que os cortes no gasto público, a economia ficará presa num círculo vicioso de regressões sucessivas. A inflação também pode corroer a desvalorização e forçar outro ajuste da taxa de câmbio em pouco tempo, com um consequente novo aumento dos preços.
Estas eventualidades são conhecidas, mas omitidas pelo grosso das classes dominantes. Todas as suas frações apoiam a investida feroz do novo presidente. Comemoram a fenomenal transferência regressiva da renda imposta pela remarcação dos preços.
Javier Milei não esconde seu apelo para reforçar a primazia econômica de um grupo de empresas. O eixo de seu mega decreto são as alterações no Código Civil e Comercial, que concedem a estas empresas a última palavra em qualquer controvérsia jurídica. Para estabilizar um modelo neoliberal semelhante ao que prevalece no Chile, Colômbia ou Peru, favorece o predomínio fulminante do grande capital.
O libertário já pré-estabeleceu os vencedores de sua partida. Concebe as privatizações à medida dessas empresas, convertendo as empresas públicas em sociedades anônimas. Cada capítulo de seu mega decreto favorece um grupo pré-determinado.
A anulação da lei das gôndolas é para os Supermercados Coto, as mudanças nos clubes de futebol são para Mauricio Macri, a remodelação do açúcar para Blaquier, a desregulamentação financeira para Galperín, o desmembramento da YPF para Rocca e o descontrole dos alimentos para Arcor, Danone e Molinos.
Também põe fim às regras sobre os aluguéis, a pedido da Câmara Imobiliária, Airbnb e Booking, e avança com a demolição das obras sociais a favor da Osde, Swiss Medical, Galeno e Omint. A revogação da Lei de Terras é um presente para Joe Lewis e Luciano Benetton, e as modificações do regime farmacêutico amoldam-se à Farmacity. A desregulamentação dos satélites foi explicitamente concebida sob medida para a Starlink.
Nos grandes negócios não resolvidos do extrativismo mineiro, o libertário fará lobby para seus candidatos através da retirada do financiamento das províncias. Há também uma longa lista de empresas sem compradores que serão divididas ou fechadas (ferrovias, Aerolíneas, YCF, mídia pública). Também já se vislumbram os conflitos entre os apropriadores das empresas mais cobiçadas (fundos abutres versus Techint pela YPF).
O capital financeiro tem total preeminência num gabinete abençoado pelo FMI. Os bancos festejam a desregulamentação dos cartões de crédito e a eliminação do limite máximo dos juros de mora pagos por seus clientes.
Este protagonismo financeiro foi explicitado pela emissão de um novo título para pagar a dívida do Estado com os importadores. Esse título (Bopreal) pretende ressarcir as empresas que adquiriram bens no exterior, sem contar com as divisas que Massa se recusou a lhes entregar devido à ausência forçada de reservas. Para remediar este não pagamento, os campeões da austeridade fiscal voltam a endividar o Estado com um bônus de 30 bilhões de dólares, negociados em moeda estrangeira e com um alto rendimento.
Mas o passivo alegado para justificar esta nova dívida pública não está documentado e sua dimensão é um enigma. Os importadores proclamam diferentes somas para compensar transações muito duvidosas. É evidente que o montante está inflacionado e inclui todo tipo de fraudes (autoempréstimos com as empresas matrizes, superfaturamento de preços de transferência). Ao simples pedido dos capitalistas, o Estado assume mais uma vez um compromisso que será pago por toda a população. Embora a estatização destas dívidas privadas não seja ainda explícita, estão sendo criadas as condições para essa transferência.
Caputo não está apenas buscando socorrer seus amigos. Ele tenta também iniciar a substituição gradual da dívida pública em pesos por outra denominada em dólares. Grande parte do passivo reclamado pelos importadores é reciclado no sistema bancário e está atrelado à montanha de títulos públicos acumulados pelas entidades (Leliqs). O ministro pretende reconverter esses papéis em títulos em dólares para dar prioridade às transações em moeda estrangeira. Ele substituiria os dólares frescos que não conseguiu no exterior por títulos públicos denominados nessa moeda.
Até agora, o bônus emitido para os importadores não tem garantias significativas e não pode ser objeto de litígio em tribunais internacionais. Sua emissão é mais uma aventura do trapaceiro que afundou o país durante a administração de Mauricio Macri.
Com esta alocação, ele pretende iniciar um lançamento geral de títulos em moeda estrangeira, a fim de contrair a massa total de pesos em circulação e deixar aberto um curso de eventual dolarização. Este resultado é concebido como a coroação do projeto neoliberal ou como uma medida de emergência em caso de corridas cambiais ou de colapsos bancários. Sinais desta intenção de dolarização também são verificados no desestímulo aos depósitos em pesos (taxas de juro decrescentes) e nas novas regras para os contratos em dólares (aluguéis) ou em seus equivalentes virtuais (bitcoins).
Mas Caputo está brincando com fogo ao flertar com a dolarização sem respaldo. Até agora, ele não conseguiu obter ajuda externa de fundos de investimento ou do FMI para mitigar o buraco de 10 bilhões nas reservas. Só espera inflar uma bolha com seus cúmplices da City, até que em abril ingressem as divisas da colheita.
O mais insólito é o fundamento de sua jogada no saneamento das finanças públicas. Um governo que destrói a economia em nome da redução do déficit fiscal, está criando um buraco gigantesco no erário público. Seus porta-vozes omitem que metade dos 5,5 pontos do PIB que pretendem cortar corresponde aos juros da dívida. Este passivo voltará a aumentar de forma descontrolada com as novas aventuras de um devedor em série, que promete cuidar das despesas públicas enquanto desperdiça o dinheiro de todos os argentinos.
Javier Milei inaugurou seu mandato com a mega desvalorização exigida pelos exportadores do agro. Eles já tinham o dólar-soja que Sergio Massa lhes concedeu e agora obtiveram a cotação que querem para suas vendas. Esse benefício é pago com o empobrecimento da população, que sofreu a transferência imediata aos preços internos da duplicação da cotação do dólar. Nunca o país suportou um aumento tão descontrolado dos preços dos alimentos para engordar latifundiários, empreiteiros e comercializadores de grãos.
O alinhamento estratégico dos preços internos dos alimentos e combustíveis com as médias internacionais começou com esse golpe. Um território imensamente rico em nutrientes e energia ficará habitado por pessoas subnutridas que não podem refrigerar ou aquecer suas casas.
O que é mais chocante neste ajuste é sua implantação num ano de colheita recorde, com um inédito excedente energético. Estes lucros serão embolsados pelos poucos privilegiados, que Javier Milei defende com elogios à oligarquia que exterminou os povos nativos. Dessa devastação nasceram os latifúndios que impediram o desenvolvimento da Argentina.
Javier Milei apoia o agronegócio ao revogar a lei do fogo que limita o extrativismo. Como não acredita nas mudanças climáticas, incentiva a expansão da fronteira da soja em detrimento das florestas. Patrocina essa primarização, promovendo também o pernicioso acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia.
Esse favoritismo em relação ao agro não é isento de conflitos, pois Javier Milei é um servo do capital financeiro. Foi por isso que sugeriu um aumento das retenções na fonte, das quais a agroexportação se esquivou com manobras de evasão (anotaram as vendas antes da sanção dos novos impostos). Paradoxalmente, os entusiastas agrários do ajuste alheio estão incomodados com o corte nas obras públicas que sustentam seus negócios.
Javier Milei enfrenta maiores tensões com o setor industrial. Sua mega desvalorização encareceu as importações de insumos, sem favorecer as exportações fabris. Além disso, introduziu um aumento impressionante dos impostos sobre essas vendas.
Grande parte dos regulamentos anulados com o mega decreto presidencial afeta os regimes de promoção industrial das províncias. O aumento anunciado dos preços da energia vai corroer a rentabilidade das fábricas e a abertura abrupta do comércio pode levar a uma invasão de produtos baratos. Javier Milei cria as condições para este afluxo mortífero de importações asiáticas, enquanto se insurge contra a China.
Mas as cúpulas das Câmaras Industriais apoiam de forma aberta ou silenciosa o governo por seu fomento da reforma trabalhista contra os trabalhadores e por seu aval à remarcação dos preços. Tal como outras frações da classe capitalista, os industriais privilegiam o atropelo contra os assalariados à própria marcha de seus negócios.
Javier Milei tenta reconfigurar a Argentina por decreto. Sem explicar a necessidade e a urgência de modificar 300 leis, ele anunciou um pacote que usurpa as atribuições do Congresso, subjuga a divisão de poderes e concentra a soma do poder público. Foi a primeira tentativa de presidencialismo autoritário que o libertário adiantou assumindo a presidência nas costas do Parlamento. Este simbólico desprezo dos legisladores antecipou o uso expresso da caneta presidencial.
Em sua estreia, mistura leis com decretos como se fossem normas equivalentes. Aposta na docilidade da justiça, na confusão da oposição e no apoio dos governadores, que facilitaram sua captura das comissões do Senado. Espera chegar a um acordo com a direita peronista para a gestação de um segundo menemato.
Javier Milei retoma todos os truques da casta política para atrasar o tratamento de seu mega decreto. É por isso que manipula o envio deste projeto ao Parlamento e socava a formação da comissão bicameral que tratará do assunto. Ele procura emperrar a questão até março para impor a vigência do decreto, lembrando que o Congresso nunca rejeitou uma DNU [Decreto de Necessidade e Urgência] relevante. Se essa manobra falhar, ele já anunciou que vai aumentar a aposta, convocando um plebiscito.
O libertário pretende repetir a trajetória que Boris Yeltsin seguiu para destruir a União Soviética. Pretende impor uma remodelação total da sociedade, aproveitando o estupor, a passividade e o repúdio ao sistema político.
Mas em suas primeiras semanas de mandato enfrenta múltiplas adversidades. Os blocos da oposição debatem estratégias para rejeitar um decreto que, de acordo com as primeiras sondagens, é amplamente contestado pela população.
Javier Milei espera contrapor essa hostilidade com intimidações repressivas. Este é o segundo pilar de sua ofensiva. Lançou uma grande operação de ameaças para dissuadir as marchas da oposição, com um protocolo antipiquete destinado a proibir os protestos em violação de todos os direitos constitucionais. Esta campanha de criminalização incluiu multas milionárias para os organizadores das mobilizações (e para outros grupos que nem sequer participaram destes atos).
O novo presidente também usou um patético disfarce militar para anunciar em Bahía Blanca que o Estado não pode ajudar as vítimas da tempestade. Esqueceu-se destas limitações quando decidiu oferecer à Ucrânia dois helicópteros que são utilizados para emergências climáticas.
O presidente desbocado não esconde sua prioridade repressiva. Seu decreto inclui restrições severas ao direito de greve em muitas atividades. Espera contar com a cobertura midiática e o apoio da justiça para esta agressão. Como opção complementar, imagina a repetição do modelo fujimorista de autoritarismo presidencial, com a presença dos gendarmes nas ruas. Mas as primeiras tentativas dessa provocação falharam. O protocolo antipiquete foi de fato anulado, nos protestos que ignoraram as diretivas de Patricia Bullrich.
Como o domínio das ruas vai definir quem ganha a partida, Javier Milei constrói seu terceiro pilar neste último terreno. Ao contrário de seus pares de outras latitudes, não conta com uma força de direita própria para enfrentar os sindicatos, os movimentos sociais, o kirchnerismo e a esquerda. Por isso, tenta construir estas legiões com recursos públicos a partir do timão do Estado.
Seu primeiro ensaio foi a cerimônia de tomada de posse. A pequena multidão entoou cânticos a favor do policial, com pouco entusiasmo pelo ajuste. Os eleitores do libertário ainda imaginam que o sacrifício será pago por outra pessoa. Outra tentativa de criar uma marcha oficialista, em resposta ao início dos protestos, foi diretamente neutralizada, dados os sinais de apatia. Muito pouca gente quer, por enquanto, aplaudir um demolidor do nível de vida.
Javier Milei também não consegue fazer alianças. Seus parceiros da direita estão à espera de resultados antes de se comprometerem. O libertário formou um governo com personagens pouco apresentáveis, que desconhecem o funcionamento do Estado e improvisam diretivas de organismos insólitos, como o novo Ministério do Capital Humano. O presidente acompanha esse cambalacho com declarações místicas e mensagens esotéricas de conversão ao judaísmo medieval.
Javier Milei imagina uma reedição das “relações carnais” que Carlos Menem manteve com os Estados Unidos. Supõe que, se o país aderir à OCDE (cumprindo os requisitos neoliberais desta admissão) e ratificar sua exclusão dos BRICS, obterá o apoio sustentado de Washington.
Esta expectativa de retribuição é a ilusão invariável dos governantes de direita. Todos esquecem-se de que a primeira potência concede ou recusa ajuda em função de circunstâncias internacionais de maior peso. O Departamento de Estado exige sempre resultados prévios a qualquer apoio a um vassalo.
Esta conduta imperial foi corroborada pelos empréstimos fracassados que Caputo explorou em Nova Iorque. Depois de terem consultado Washington, os financistas exigiram primeiro que se verificasse a viabilidade do ajuste contra o povo. No momento, seguem de perto o resultado do decreto, sem contribuir com um único dólar. A Reserva Federal está satisfeita, mas se limita a observar o que ocorre.
Para ganhar o favor estadunidense, Javier Milei exagera na submissão, mostrando um fanatismo por Israel que supera o dos próprios sionistas. Já alterou o voto da Argentina na ONU para convalidar o massacre de Gaza e participa das festividades judaicas para se aproximar da DAIA [Delegação das Associações Israelitas Argentinas].
Mas sua afinidade com Benjamin Netanyahu não é circunstancial. Faz parte de uma inflexão internacional da extrema direita, que passou do discurso à ação. O ano de 2023 conclui esta mudança. Os líderes reacionários não se limitam a fustigar os desamparados com ameaças verbais. Começaram a transformar suas declarações regressivas em práticas atrozes.
O que aconteceu em Gaza retrata essa mudança. O sionismo está consumando um genocídio para derrotar os palestinos e forçar uma nova Nakba. Este massacre convulsiona o Oriente Médio e destina-se a apoiar a contraofensiva dos Estados Unidos contra a China. Washington procura dissuadir a Arábia Saudita de sua participação embrionária na Rota da Seda e pressiona contra o flerte da monarquia com a desdolarização das transações internacionais.
Javier Milei aporta uma base latino-americana ao novo rumo da extrema-direita. Procura impor uma mudança radical nas relações de força no país que abriga o principal movimento operário, democrático e social da região. Procura também afastar a China da região, para restaurar a primazia em declínio dos Estados Unidos.
O massacre fascista de Netanyahu e a investida anarcocapitalista de Milei diferem da gestão convencional que caracterizou até agora os líderes de extrema direita. Bolsonaro, Trump, Meloni e Orban conduziram presidências semelhantes ao conservadorismo tradicional. Essas administrações preservaram os parâmetros correntes.
Ao contrário disso, Benjamin Netanyahu e Javier Milei inauguram outro modelo de ação reacionária eficaz. Esta mudança é muito significativa num momento em que a possibilidade de sucessos eleitorais da extrema direita na França e nos Estados Unidos estão no horizonte. A mudança atual está em sintonia com as estratégias de contraofensivas imperiais mais ousadas contra a China, no calor da derrota de Washington na Ucrânia.
Javier Milei exibe grande entusiasmo com seu papel de mero peão do império. Mas, até agora, o amo encara-o com desconfiança e desprezo. Joe Biden está irritado com seus laços com o concorrente Donald Trump e enviou um representante de quinta categoria à sua tomada de posse. Essa cerimônia foi patética pela ausência total de delegações com algum peso diplomático. O protagonismo de Volodymyr Zelensky confirmou essa orfandade, porque o ucraniano se apresentou como uma grande figura, quando é rejeitado por seus patrocinadores ocidentais num cenário de derrota militar.
A Casa Rosada está tentando dissimular estas adversidades com mensagens de restauração do idílio menemista com os Estados Unidos. Mas omitem a drástica mudança no contexto mundial. Martín Menem e Rodolfo Barra pretendem recriar um clima de fascínio pelo Ocidente, ignorando que os Estados Unidos já não são o vencedor da Guerra Fria, mas uma potência afetada pela ascensão da China.
Javier Milei atua como um neoliberal fora de hora, que desconhece quão distante ficou a atmosfera dos anos 1990. A euforia com o globalismo de mercado livre foi substituída pelo intervencionismo regulador nas principais economias do Ocidente. As mensagens do libertário estão desajustadas a este cenário.
Esta distração já provoca consequências graves na relação com a China. O palavreado provocador do libertário levou Pequim a congelar o swap de yuans, que alimenta as reservas efetivas do Banco Central. Esta é uma advertência muito séria. Se Milei recuar nos acordos já assinados (barragens, energia nuclear, Rota da Seda), o principal cliente das exportações argentinas pode reduzir drasticamente suas compras, criando uma grave tensão entre o libertário e o agronegócio.
Javier Milei não inventa a pólvora e é sabido que sua política de submissão aos Estados Unidos agrava o subdesenvolvimento e a dependência. Como no caso do Pacto Roca-Runciman, a Argentina está mais uma vez atando seu destino a uma potência em declínio e as consequências deste rumo seriam dramáticas para o país.
O principal obstáculo que a agressão de Javier Milei enfrenta é sua potencial rejeição popular. Se essa oposição se massificar nas ruas, o ajuste do libertário ficará neutralizado e será lembrado como mais uma tentativa fracassada de subjugar o povo argentino. Essa possibilidade atormenta as classes dominantes.
A queda de braço começou com a importante manifestação organizada por vários grupos de piqueteiros com a esquerda. Este ato foi um êxito político. Conseguiu contrapor a campanha oficial de intimidação, reuniu uma participação respeitável e atraiu um número significativo de militantes. Despertou igualmente o interesse da mídia e frustrou a aplicação do protocolo de Patricia Bullrich.
O plano de provocações montado pela ministra foi desarticulado pela determinação dos manifestantes e por uma crise do comando repressivo federal com seus pares da cidade de Buenos Aires. O governo da cidade de Buenos Aires, nas mãos do macrismo, recusou-se a arcar com os custos das agressões promovidas por Javier Milei. Essa divergência entre a gendarmeria e a polícia local ilustrou a erosão que provoca em cima a luta dos de baixo. Foi um primeiro retrato da dinâmica que pode socavar os planos da extrema direita.
O segundo indício de resistência foram os protestos espontâneos nas vizinhanças. Os caçarolaços foram ouvidos em muitas cidades e sua transformação em protestos de rua reforçou o desconhecimento do protocolo antipiquete.
A estreia destas rejeições, na noite emblemática de 20 de dezembro, suscitou analogias com o que aconteceu em 2001, quando os piquetes convergiram com as caçarolas na luta contra as mesmas personagens que reaparecem no atual governo (Bullrich, Sturzenegger). A expropriação da poupança – então sofrida pela classe média – transformou-se agora num confisco de rendimentos.
Neste clima, a CGT [Confederação Geral do Trabalho] convocou uma mobilização, encorajada pelas marchas dos sindicatos de Rosário, empregados do Banco Nación, ferroviários e servidores público da cidade de Buenos Aires. Este terceiro marco da luta nascente reuniu uma grande multidão, ligando todos os movimentos sociais e numerosas delegações sindicais. Esta confluência era pouco frequente e introduz um dado encorajador. A tradicional hostilidade da hierarquia sindical em relação a outros setores populares e sua alergia à esquerda está perdendo sua centralidade, facilitando uma convergência decisiva para derrotar o ajuste.
Os “gordos” da CGT desativaram uma concentração de maior alcance, pois negociam corporativamente com o governo os contornos mais revulsivos da reforma trabalhista, juntamente com seu continuado controle das obras sociais. Por isso, limitaram-se a contestar os artigos do decreto que lhes dizem respeito, com um ato limitado em frente aos Tribunais. Também adiaram a definição de um plano de luta e evitam convocar uma greve nacional.
Mas a mobilização ampliou o espectro da luta contra o decreto e neutralizou mais uma vez as intenções repressivas do governo. Patricia Bullrich teve que tolerar novamente o desconhecimento de seu protocolo.
A resistência ao ajuste começou e a batalha com Javier Milei exige o reforço da mobilização, com novas convocações de piqueteiros, feministas e vizinhos para ocuparem as ruas. Estas convocações contrapõem as hesitações imperantes no peronismo e na centro-esquerda. A cautela de ambos os setores é justificada com argumentos que ressaltam a inconveniência de confrontar um recém-chegado à Casa Rosada.
Mas esta prudência choca com a motosserra acelerada que o novo presidente acionou. Javier Milei conduz o ajuste numa velocidade vertiginosa para desarticular a oposição. Se o deixarem atuar, reforçará esta tendência no futuro. Se, ao contrário, for freado na saída, suas iniciativas perderão coesão.
O sucesso desta batalha reside também em forjar um amplo espaço de forças, que exiba potência nas ruas e atraia eleitores desiludidos com o libertário. É essencial deixar para trás a autoproclamação e as disputas pelo protagonismo, para reforçar a unidade e repetir a ação massiva que socavou Mauricio Macri em dezembro de 2017.
A derrota do ajuste depende, antes de tudo, da luta social e, em segundo lugar, das contradições que o plano oficialista gera nas classes dominantes. Sem uma resistência massiva, estas tensões serão limitadas, porque os poderosos compartilham o objetivo de demolir os sindicatos, as cooperativas e as redes democráticas.
Existe a possibilidade de uma vitória popular, diante de um presidente disposto a consolidar um atropelo monumental. Javier Milei pretende perpetrar sua agressão, sem o apoio necessário para essa escalada. Comanda um gabinete improvisado para pôr em prática um projeto muito ambicioso. Não tem governadores, deputados e prefeitos necessários para efetivar um plano que irrita o grosso da população.
Javier Milei não definiu a forma de instrumentar o pacote que enfrenta a ameaça de um veto parlamentar. Se tal rejeição for concretizada, as 300 leis propostas pelo libertário entrarão na geladeira da justiça, afetando a impaciência dos capitalistas. A eventual desativação do atropelo patronal depende de um protesto sustentado nas ruas.
A comparação com Jair Bolsonaro é esclarecedora e vai além dos disparates compartilhados por ambas as personagens. Tal como seu homólogo argentino, o ex-capitão tornou-se inesperadamente presidente, substituindo o candidato preferido dos grupos dominantes. Jair Bolsonaro substituiu Alckmin na mesma sequência em que Javier Milei tomou o lugar de Rodríguez Larreta ou Patricia Bullrich. No primeiro caso, o desenvolvimento incontrolável do golpe contra Dilma Rousseff foi decisivo, e, no segundo, a crise da direita convencional.
Mas Jair Bolsonaro tomou posse num cenário de direita estabilizado, com o grosso do ajuste consumado pelo seu antecessor Michel Temer (reforma trabalhista, congelamento do gasto social por 20 anos, regressão na educação, privatizações em curso). Ele apenas acrescentou a esse pacote as mudanças na previdência social. Em contrapartida, Milei tem que lidar com uma enorme crise econômica retomando o receituário neoliberal descontinuado.
Jair Bolsonaro aproveitou o clima de mobilização da direita, que esperava uma vingança contra o PT e a rejeição da corrupção (Lava Jato). Javier Milei não conta com esse apoio e o relato de Mauricio Macri esgotou os episódios de suborno de funcionários públicos. O libertário também não conta com a poderosa rede de evangélicos, militares e agrocapitalistas que apoiaram o ex-capitão. Em vez de lucrar com o refluxo do movimento sindical – o que aconteceu no Brasil após a greve de 2018 –, ele deve enfrentar uma estrutura dos sindicatos que preserva um grande poder de fogo.
Resta saber se Javier Milei terá a plasticidade de seu ídolo carioca para adaptar seu governo às adversidades. Por enquanto, limita-se a aumentar a aposta com medidas mais arrojadas, a fim de criar uma liderança coesa para as classes dominantes. O resultado de sua aventura depende da resistência popular.
Esse desenlace está aberto, porque Javier Milei não exprime a inflexão estabilizada da direita que alguns analistas diagnosticam. Obteve um sucesso eleitoral sem uma correlação social correspondente. Por esse caráter não resolvido de seu governo, as avaliações que o identificam com a convertibilidade estabelecida por Carlos Menem são prematuras. Também não exibe até agora o poder de um “macrismo recarregado”, capaz de implantar o programa fracassado de 2015-2019. Estes perigos pairam, juntamente com a possibilidade oposta de personificar um pesadelo de curta duração do futuro argentino. A poucas semanas da sua tomada de posse, a única certeza é a centralidade da luta popular para derrotá-lo.