29 Dezembro 2023
"Ultradireita ensaia, com Milei, nova tática: ataque em massa aos direitos e à Constituição, para quebrar resistências. População responde, já na madrugada, num sinal de que a disputa será dura. As incógnitas: Justiça, mídia, poderes globais", escreve Antonio Martins, editor de Outras Palavras, em artigo publicado por Outras Palavras, 21-12-2023.
No tempo acelerado da hipercomunicação, os mitos podem surgir mas também desabar rapidamente – e continua havendo espaço para a luta popular. A indignação e o sangue quente dos argentinos voltaram a aflorar na noite de ontem (20/12), agora contra Javier Milei, empossado em apoteose há apenas onze dias. Às 21h, o presidente anunciou em pronunciamento à nação um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) inconstitucional, que revoga 300 leis e impõe, por ato de força, o programa máximo dos neoliberais. As medidas destroçam os direitos sociais, instalam a lei do mais forte em todos os âmbitos econômicos e anulam as chances de soberania do país, como se verá adiante.
Armou-se de imediato um panelaço nacional. Em Buenos Aires, cordões de manifestantes rumaram em seguida ao Congresso Nacional, onde milhares de pessoas permaneceram durante a madrugada. Foi ato espontâneo: não havia palanque, caminhão de som, oradores ou balões: apenas gente – em grande maioria jovem — que cantava, dançava e protestava. Alguns pediam às centrais sindicais que decretem greve geral.
22 anos depois, a mobilização instantânea fez lembrar o argentinazo — as jornadas de dezembro de 2003. À época, diante do congelamento dos depósitos bancários (o corralito), as ruas insurreitas forçaram o então presidente a fugir de helicóptero da Casa Rosada, derrubaram mais três chefes de Estado em doze dias e forçaram uma mudança de rumos que terminaria desembocando no governo de Nestor Kirchner, possivelmente o mais à esquerda na história do país.
O cenário é diferente hoje. O paquetazo de Javier Milei sugere que a ultradireita ensaia outra tática – distinta da empregada por Donald Trump ou Bolsonaro – para impor seu projeto. Múltiplos dispositivos da Constituição argentina proíbem que o presidente use o DNU para legislar por decreto, mas ao escolher este instrumento Milei parece ter detectado uma brecha a seu favor. Será importantíssimo verificar como reagem, nos próximos dias, alguns atores-chave: o Judiciário, a imprensa, o próprio Congresso e o mundo das grandes finanças globais – inclusive o FMI. A batalha será longa, árdua e terá repercussões internacionais. Por isso, a madrugada de luta em Buenos Aires é, depois de tantos retrocessos na Argentina, um sinal animador.
É improvável que outro governante de extrema-direita tenha decretado, no alvorecer de seu mandato, um conjunto tão vasto e radical de medidas quanto Javier Milei. No dia de sua posse, Donald Trump garranchou, em imensas folhas de papel, ordens voltadas principalmente contra os migrantes. Jair Bolsonaro promoveu uma grande reorganização do ministério. Mas o que presidente argentino decretou assemelha-se, no campo político, às blitzkrieg (guerras-relâmpago) que os generais nazistas desfechavam contra os países que queriam conquistar. Seus elementos principais eram o efeito-surpresa, a rapidez da manobra e a brutalidade do ataque, visando desmoralizar o inimigo e a desorganizar suas forças. Para que os soldados participantes ficassem insensíveis ao sono e à fome, o exército os abastecia com tabletes de Pervitin, em quantidade.
Cercado de seus ministros, Javier Milei anunciou a emissão de um DNU de 83 páginas e 366 artigos. Em 15 minutos de fala, listou 30 leis anuladas pelo pacote, mas alertou que a revogação atinge cerca de 300. Os jornais argentinos ainda lutam para decifrar o conjunto das medidas, mas elas parecem dividir-se em cinco pontos principais.
A greve fica proibida em setores “essenciais” (o que inclui a indústria de cimento, a alimentícia “e toda sua cadeia de produção”). Os trabalhadores que participarem de ocupações e piquetes podem ser demitidos por justa causa. Um novo cálculo de indenizações trabalhistas reduz significativamente as multas pagas pelos patrões em caso de demissão. Segundo algumas informações, os empregadores deixam de ser obrigados a pagar horas extras. O período de experiência dos contratados aumenta para 8 meses (hoje são 3), durante os quais o trabalhador pode ser demitido sem direitos. A licença-maternidade cai para três meses.
“Vamos devolver a liberdade e a autonomia aos indivíduos, tirando o Estado de cima deles”, afirmou Milei. A frase foi usada para justificar a revogação de uma vasta série de leis que regulam a vida social econômica, para evitar que a parte mais forte imponha suas condições. O destaque é a lei dos aluguéis. Toda a proteção aos inquilinos é anulada. Os proprietários podem fixar valores, índice e prazo dos aumentos; exigir garantias; fixar as condições de despejo. “Revogar esta lei através de um DNU é algo sem nenhuma legalidade”, afirmou Gervasio Muñoz, representante no movimento Inquilinos Agrupados e anunciou que questionará sua constitucionalidade do ato.
Anuncia-se a privatização da Aerolineas Argentinas e a política de “céus abertos”, que permite a qualquer empresa aérea estrangeira operar no país. Determina-se que todas as estatais sejam transformadas em sociedades anônimas, como primeiro passo para sua venda. Revoga-se a Lei de Terras, para permitir que estrangeiros comprem, sem restrições propriedades rurais no país – favorecidos, inclusive, por uma maxidesvalorização do peso. Acaba a Lei de Compra Nacional, que permite ao Estado dar preferência a produtores argentinos. Desregula-se o comércio interno e o internacional, para favorecer “maior abertura econômica”.
Acabam as leis que beneficiam a pequena e média empresa. Revoga-se a Lei das Gôndolas, que proíbem os supermercados de destinar espaço excessivos aos grandes fornecedores e os obrigam a oferecer produtos locais. Elimina-se qualquer tipo de controle de preços, e até mesmo o Observatório de Preços do Ministério da Fazenda. Anulam-se as Leis de Proteção Industrial e Comercial, que também coíbem oligopólios.
O governo compromete-se a obter “déficit zero” no Orçamento. Para fazê-lo, revogará inclusive lei aprovada no governo de Alberto Fernández, que isentava de Imposto de Renda os salários inferiores a 15 mínimos.
Tão extenso e prolixo, faltou algo ao paquetazo, notou no Twitter uma ativista argentina. “Não há nada contra a ‘casta’. Os deputados continuam com seus vinte assessores, motoristas, mordomias todas”. Milei venceu as eleições, entre outros motivos, porque foi capaz de se apresentar como contrário ao sistema politico. Podendo enfrentá-lo, inclusive em seus privilégios injustificáveis, absteve-se. Espera cumplicidades.
"Les aviso que hay más" (aviso-lhes que haverá mais medidas), respondeu, em desafio, Javier Milei esta manhã (21/12), quando um jornalista o questionou sobre os protestos da madrugada. Tão importante como o caráter ultraliberal do paquetazo parece ser seu sentido colateral. Caso a sociedade argentina seja incapaz de resistir a este primeiro ataque à Constituição, estará criado o precedente e outros se seguirão. Como o presidente nega que o país tenha vivido uma ditadura militar, não é improvável que atinjam as liberdades políticas e civis.
Milei parece ter identificado um caminho. A Constituição argentina estabelece diversas salvaguardas para que os Decretos de Necessidade e Urgência não sejam usados pelo Executivo para impor sua vontade ao país e aos demais poderes. Como diz seu próprio nome, eles só podem ser baixados em casos de urgência, e em situações nas quais seja impossível convocar o Congresso. A Constituição também proíbe o presidente de assumir funções legislativas, um princípio claramente violado pelo presidente ao tentar revogar 300 leis. “É um atentado muito grave contra o sistema democrático”, frisou o constitucionalista argentino Gustavo Ferreyra.
Mas ele mesmo ressalvou que, embora limite claramente o uso dos DNUs, a Constituição carece de instrumentos adequados para coibir seu abuso. Ao baixar um decreto deste tipo, o presidente está obrigado a enviá-lo a uma Comissão Bicameral Permanente. Mas o decreto entra em vigor assim que baixado, e seus efeitos não são suscetíveis de anulação. Pior: só o rechaço de ambas as câmaras legislativas ao DNU pode anulá-lo – e não há prazo para fazê-lo. Por isso, desde 1994, quando se fez uma reforma constitucional pós-ditadura, nunca um decreto foi revogado. “O sistema de controle congressual é muito ruim e não funciona”, diz Ferreyra. Há a possibilidade de recorrer à Justiça. Mas não há, na Argentina, a arguição direta de constitucionalidade de uma medida junto à Suprema Corte, prossegue o constitucionalista. As contestações terão de tramitar pelos lentos labirintos do Judiciário, enquanto o decreto produz desastres.
Como os criminosos experientes – ou bem assessorados –, Javier Milei parece ter escolhido cuidadosamente o modo de delinquir que mais lhe dá condições de apagar as digitais, dificultar a investigação e ter facilidades para a fuga.
No plano político, o cenário é mais complexo e incerto. Em seu favor, o presidente conta com a complacência persistente dos mercados financeiros, dos poderes globais e da imprensa, diante das ações do fascismo. Com exceção do bravo Pagina|12, os jornais e portais argentinos têm tratado o DNU presidencial como fato consumado, imune à contestação. Nos órgãos do poderoso grupo Clarín, por exemplo, ignoram-se as denúncias de violação constitucional e debatem-se apenas os efeitos práticos das medidas. Há dias, quando Milei ainda não havia baixado seu decreto, mas anunciado as linhas que seguiria, o brasileiro O Globo considerou que seu plano econômico “aponta direção certa”.
Ainda mais eloquente tem sido a atitude do FMI. Fazendo vistas grossas ao caráter ultra-autoritário do governo argentino, a diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, felicitou Milei pelas primeiras medidas tomadas após a posse. Julgou-as “um passo importante para restaurar a estabilidade e reconstruir o potencial econômico do país”. Também o grande empresariado argentino, que apoiou em peso a ditadura pós-1974, parece agora seduzido pelas promessas de achatamento dos direitos e redução dos custos trabalhistas. Uma nota da poderosa Associação Empresarial Argentina (AEA) lançada ainda ontem, vê no governo Milei uma “oportunidade histórica”, por suas promessas de “redução do peso excessivo do Estado” e fim de qualquer controle sobre a atividade privada.
De outro lado, há a provável pressão das ruas. A ação pronta de milhares de manifestantes nesta madrugada já começou a gerar repercussão. A praça diante do Congresso já não está ocupada, mas preparam-se diversas manifestações para os próximos dias. Nas duas casas do Legislativo, a direita e a ultradireita somadas são maioria – mas começaram a surgir os primeiros sinais de dissidência. Deputados e senadores da coalizão Juntos por el Cambio (que é liderada pelo ex-presidente Maruício Macri e apoiou Milei no segundo turno) pronunciaram-se contra a tentativa de usurpar os poderes do Parlamento e legislar por decreto. Ainda não está clara a amplitude da divergência. E o Judiciário recebeu, na tarde de 21/12, a primeira arguição de inconstitucionalidade contra o DNU. Foi apresentada pela associação Observatório do Direito à Cidade.
No Ocidente, a luta contra o fascismo contemporâneo ocupará o centro da agenda política, talvez por longo período. É animador saber que, no mesmo momento em que surgia a tática blitzkrieg para impor as medidas ultracapitalistas, emergiu também uma resposta vibrante nas ruas. Força, Argentina!
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A Argentina encara o fascismo-blitzkrieg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU