Quer abolir o Banco Central, é contra o aborto, é a favor de armas para todos e acredita que a venda de órgãos pode ser "mais um mercado".
A reportagem é publicada por Il Post, 14-08-2023.
As primárias na Argentina, consideradas uma espécie de grande votação nacional antes da eleição presidencial de 22 de outubro, foram vencidas pelo economista e populista de extrema-direita Javier Milei. Ele é o líder do La Libertad Avanza, partido que fundou, e obteve cerca de 30% dos votos. Superou não só as expectativas (as sondagens apontavam para cerca de 20%), mas também as duas formações políticas históricas do país, que venceram as últimas três eleições: a direita do Juntos por el Cambio, que ficou em segundo lugar, e a Peronistas da Unión por la Patria, atualmente no governo, que terminaram em terceiro. Dentro do tradicional sistema bipartidário do país, Milei se estabeleceu como uma possível terceira via.
Abolir o banco central "vai acabar com a inflação", a venda de órgãos pode ser "mais um mercado", os políticos "devem levar uma surra". É com propostas como essas, gritadas nas praças e estádios, que o economista ultraliberal Javier Milei domina o debate público argentino desde a primeira vez que apareceu na televisão, em 2016. O jornal espanhol El País falou em um "anti-establishment".
Histriônica, desalinhada, mas ao mesmo tempo muito atenta à sua imagem, Milei nasceu em Buenos Aires. Ele completará 53 anos em 22 de outubro, dia das eleições presidenciais.
Ele é filho de um motorista de ônibus que se tornou empresário do setor de transportes e dona de casa. Em 2018, disse que seus pais, para ele, estavam "mortos". O jornalista Juan Luis González, que contou a vida de Milei, falou que ele cresceu em um ambiente muito violento e que na família era sustentado apenas pela avó materna e pela irmã mais nova Karina, que hoje é sua coordenadora de campanha eleitoral. É a ela que Milei agradeceu do palco no último dia 7 de agosto durante o último evento antes das primárias. Enquanto o estádio quase cheio cantava “Que se vayan todos” (que se vão todos), citou nomes: "El Jefe" (o chefe), como chama a irmã, e depois Conan, Murray, Milton, Robert e Lucas, os cinco mastins ingleses que ele define como seus "filhos de quatro patas".
Milei frequentou escolas católicas e universidades particulares. Ele conhece bem a Bíblia, mas atualmente um de seus principais conselheiros é um rabino: ele disse que está estudando para se converter ao judaísmo.
Na escola, Milei era apelidado de "El Loco", ou seja, "o louco", devido aos desabafos e agressões que décadas depois o levariam a se tornar o economista mais querido da televisão e depois deputado federal em 2021. Milei também chefiou vários consultorias privadas, foi apresentador de rádio e talk show e lecionou na universidade. Foi assessor econômico de Antonio Domingo Bussi, soldado durante a ditadura na Argentina (de 1976 a 1983), eleito deputado no fim dos anos 1990, depois expulso do parlamento e acusado de crimes contra a humanidade.
No ano e meio em que esteve no Congresso, Milei não promoveu nenhum projeto, mas, algo muito apreciado pelos seus apoiantes, que são sobretudo jovens, disponibilizou o seu salário através de sorteio: "Para mim é dinheiro sujo, o Estado é uma organização criminosa que se financia por meio de impostos cobrados das pessoas pela força. Estamos devolvendo o dinheiro que a casta política roubou".
A vida privada de Milei muitas vezes acabou no centro da discussão pública. O seu biógrafo González disse, por exemplo, que Milei estuda telepatia e diz ter um meio de comunicar com o mais velho dos seus mastins [cão], falecido em 2017, a quem pede frequentemente conselhos: "O que faço dentro de casa é problema meu", respondeu numa entrevista a propósito desta questão: "E se o cão é, como dizem, o meu conselheiro político, a verdade é que tem espancado toda a gente".
Em junho do ano passado, durante um debate de rádio, Milei disse que a venda de órgãos poderia ser um mercado possível: "Quem decide vender um órgão para você, como isso afeta a vida, a propriedade ou a liberdade de outras pessoas? Quem é você para determinar o que a outra pessoa quer fazer da vida?” Dias depois, um jornalista lhe perguntou o que ele achava da venda dos filhos, outro assunto sobre o qual Milei fez declarações ambíguas: "Depende", ele respondeu: "Se eu tivesse um filho não venderia, mas a resposta depende dos termos em que a coisa está sendo pensada, talvez em duzentos anos ela possa ser discutida".
Milei diz que quer proibir a entrada de estrangeiros com antecedentes criminais no país e expulsar os que cometem crimes. Ele diz que o Estado deve se preocupar apenas em administrar a justiça e garantir a segurança, que o Banco Central rouba dinheiro dos argentinos por meio da inflação e ataca constantemente o que considera a “casta” da política, ou seja, as formações políticas tradicionais. Na última campanha eleitoral, apesar de ter revisto os tons e estilos do passado (vestia-se de soldado e com colete à prova de balas), continua a utilizar uma retórica populista e agressiva.
É um negador dos números dos chamados desaparecidos da ditadura que prefere chamar de "guerra" (os desaparecidos são pessoas levadas durante a ditadura e depois desaparecidas) e é um negador da crise climática (que ele definiu como uma "mentira do socialismo"). Ele é contra o aborto, o feminismo e a educação sexual nas escolas, é a favor do uso de armas para todos, quer reduzir impostos, programas assistenciais e privatizar empresas públicas.
Depois de ser eleito para o Congresso em novembro de 2021, Milei disse que queria concorrer às eleições presidenciais de 2023, mas ninguém lhe deu muito crédito. Em 10-06-2022, ele havia convocado sua primeira grande concentração nos arredores da capital argentina, mas a reunião foi um fracasso: foram pouco mais de mil pessoas. Na metade do mandato legislativo de novembro do mesmo ano, quando o bloco peronista foi derrotado pelo Juntos por el Cambio na maioria das províncias do país ao perder o controle do Senado, o partido de Milei terminou em terceiro lugar em Buenos Aires na capital, com 17%. E o resultado foi noticiado como a principal novidade das eleições.
Desde então, Milei continuou a subir, não tanto em resultados eleitorais (nas eleições provinciais realizadas este ano os candidatos que apoiou e que obtiveram os melhores resultados mal atingiram os dois dígitos), mas certamente em popularidade.
Javier Milei, dizem os analistas, conseguiu alavancar a decepção, a frustração e a raiva de muitos eleitores em relação aos partidos tradicionais. "A vitória de Milei nos fala sobretudo do tamanho do desânimo e da raiva que paira na sociedade argentina, que quis expressar esse profundo mal-estar com o voto primário", escreveu o jornal argentino El Clarín, por exemplo. Um candidato como Milei, escreveu Pagina 12, “nasceu de uma má conjuntura econômica, das situações críticas vividas durante os meses de isolamento devido à pandemia, somadas ao golpe exasperante e permanente da inflação”. A base eleitoral “sente que dentro do sistema político formado pelos partidos não há saída. E vê que Milei é o único disposto a chutar o tabuleiro".
Em suma, Milei sempre se apresentou, e por isso é visto, como o representante do antissistema, como um personagem que veio de fora para combater as más práticas da política.
No entanto, Pagina 12 vê uma semelhança entre o cenário atual e os que ocorreram antes dos golpes militares, na Argentina e em outros países da região: "Os golpes militares desmantelaram o sistema democrático, mas nunca resolveram nada e, em troca, pioraram a vida dos argentinos: pobreza, dívidas, desemprego e assim por diante. Milei parece uma criança dessa história. Ele encarna as mesmas ilusões de um setor da sociedade que promoveu ditaduras e depois se arrependeu".
A votação primária puniu sobretudo o atual governo peronista de Alberto Fernández, cujo bloco político optou por se concentrar em Sergio Massa, atual ministro da Economia. Mas seu candidato não era o único: a ala esquerda da coalizão havia apresentado Juan Grabois, transformando as primárias também em uma competição interna.
O papel de ministro da Economia e candidato à presidência ao mesmo tempo colocou Massa em desvantagem, assim como o fato de a popular vice-presidente Cristina Kirchner ter decidido não participar de sua campanha. A Argentina vive há anos uma crise econômica muito grave: nos últimos meses a inflação ultrapassou os 100% ao ano, os preços quase dobraram no último ano, o peso argentino vale cada vez menos e quase 40% da população vive abaixo da linha da pobreza. Sergio Massa havia conduzido a campanha eleitoral dizendo que esses problemas seriam resolvidos, deixando bem claro o paradoxo de que era ele quem tinha o poder de fazê-lo, mas sem conseguir.
O resultado das primárias também afetou a atual oposição de direita de Juntos por el Cambio que, segundo analistas, fez uma escolha errada ao nomear duas figuras muito fortes: Horacio Rodríguez Larreta, prefeito cessante de Buenos Aires, e Patricia Bullrich, ex-ministra da Defesa e posicionada mais à direita que Larreta. Em vez de aumentar o espaço político, essa dupla opção o transformou em um conflito interno às vezes muito amargo que pode ter assustado os eleitores. O mais votado, no Juntos por el Cambio, foi no entanto Bullrich que elogiou publicamente Milei várias vezes. A vitória de Milei e também a de Bullrich são o sinal de como o eleitorado argentino está caminhando para a direita. Os dois acumularam, em forças separadas, 58% dos votos.
As eleições presidenciais serão realizadas em 22 de outubro: para ser eleito presidente no primeiro turno, o candidato mais votado deve obter pelo menos 45% ou 40% com uma margem de pelo menos 10 pontos do segundo colocado. Caso ninguém ou ninguém atinja esses percentuais, haverá segundo turno que, segundo a Constituição, deve ser realizado até trinta dias após o primeiro turno. A data prevista seria, portanto, 19 de novembro. Os principais jornais argentinos dizem hoje que é prematuro fazer previsões e que nos próximos dias o voto deve ser relido desagregando-o por círculo eleitoral, idade e sexo. Mas a maioria dos analistas também escreve que, tendo dividido o cenário eleitoral em três, é muito provável que cheguemos a um segundo turno. E eles dizem que Milei poderia chegar lá.
O primeiro objetivo, para Milei, será manter os votos que conquistou e garantir que o resultado das primárias não termine nas próprias primárias. Apesar do sucesso recente, há dúvidas sobre seu real potencial eleitoral e o fato de que os números obtidos se materializarão em sua eleição para a presidência.
Diante do voto "real", Milei terá que demonstrar que é capaz de governar um país complexo e que está em uma situação complexa: e para conseguir um assento nas urnas, escreveu o El Clarín, "precisará de mais do que os gestos de fora que lhe deram tão bons resultados agora. Em outubro terá que construir uma maioria, não ser apenas o candidato mais votado". Muitos, portanto, preveem que a partir de agora Milei mude seu perfil assumindo um perfil mais institucional: "Não me surpreenderia se nos próximos meses ou semanas, mas também amanhã, vermos Milei com o cabelo um pouco mais curto, com um cabelo um pouco mais ordenado, gravata e com um rosto menos inflamatório", disse o analista político Andrés Oppenheimer.
Finalmente, na votação para as eleições presidenciais, deve-se considerar o fato de o partido de Milei não poder contar com um aparato sólido: não tem políticos importantes eleitos nas cidades ou províncias e, portanto, pode sofrer de sua própria fragilidade institucional estrutural.
Sergio Massa enfrenta uma situação diferente. Os peronistas terão, de fato, que tentar mobilizar mais os eleitores e os eleitorados: a participação nas primárias foi de cerca de 69%, vários pontos a menos que nas anteriores, o que parece ter prejudicado a formação do governo. Massa terá então de poder apresentar-se como uma alternativa válida aos dois candidatos de direita, sobretudo no plano econômico e cultural, mas terá também de aceitar o veredito que saiu das primárias, que expressa o descontentamento, a falta de pertença e as novas necessidades das novas gerações. E provavelmente conseguirá fazê-lo distanciando-se do atual governo.
Por outro lado, o Juntos por el Cambio de Bullrich terá de tentar recuperar os votos que, numa primeira análise, parece ter perdido a favor de Milei. O candidato e o espaço político em que ele se movimenta terão que encontrar uma identidade própria e não apenas parecer uma cópia do original, que é o partido de Milei. Também resta saber, para a coalizão de direita, se todos os votos que foram para Horacio Rodríguez Larreta nas primárias serão automaticamente somados aos de Bullrich, na votação de outubro: muitos duvidam disso, dada a forte competição entre os dois.