25 Junho 2020
Pistas para reflexão sobre catequese e liturgia, em tempos de distanciamento social e pós-pandemia [1].
"'O Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres!' (Sl 126, 3). Não obstante tanto sofrimento que enfrentamos, teremos a graça de recomeçar. Fala-se do retorno como um 'novo normal'. Gostaria que assim não fosse, pois o antigo 'normal' provou sua insuficiência. Prefiro o desafio da renovação, do aprendizado, do amadurecimento, do mistério da semente que morre para gerar novo rebento", escreve Vanildo de Paiva, padre, mestre em Psicologia Clinica pela PUC-Campinas, professor na Faculdade Católica de Pouso Alegre e ex vice-presidente da fundação educacional da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FEJAN).
“Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que ninguém se salva sozinho (...) É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a fraternidade para dizer ‘presente’ perante a enorme e inadiável tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, juntamente com outros, a dinâmicas que possam testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história (...) Este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer” - Papa Francisco na Carta à Revista Vida Nova, publicada no dia 17.04.2020.
01. Caminhamos na fé e na esperança. Maria nos ensinou que podemos até interrogar a Deus: “Mas como isso será possível?” (Lc 1, 4), já que precisamos sempre dar as razões da nossa esperança a todos quantos as pedem a nós (cf. 1Pd 3,15), mas não nos cabe a desesperança. A nossa espiritualidade alimenta-se da “mística da recomeço” e, sobretudo, da vitória. No centro da nossa fé está aquele que pareceu fracassar aos olhos humanos, mas está vivo e ressuscitado no meio de nós: Jesus Cristo! Certamente essa mística não escapou a Paulo, outro que teve que recomeçar depois de “cair por terra” (At 9,4), ao nos deixar, como testamento espiritual, a mais bela síntese da luta cristã: “Todavia, esse tesouro nós o levamos em vasos de barro, para que todos reconheçam que esse incomparável poder pertence a Deus e não é propriedade nossa. Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Animados pelo mesmo espírito de fé, sobre o qual está escrito: ‘Acreditei, por isso falei’, também nós acreditamos e por isso falamos. Pois sabemos que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também nos ressuscitará com Jesus e nos colocará ao lado dele juntamente com vocês. E tudo isso se realiza em favor de vocês, para que a graça, multiplicando-se entre muitos, faça transbordar a ação de graças para a glória de Deus” (1Cor 4, 7-9.13-15).
02. O título desta reflexão nos remete a outra experiência de recomeço. Trata-se da volta dos judeus do trágico exílio na Babilônia (sec. VI a.C.), vivência de provação e sofrimento, dentre tantos “Egitos” a que foram submetidos. Privados de sua terra, da sua liberdade e do exercício público de sua religião, só lhes restaram o lamento: “Como cantar a Deus em terra estranha?” (Sl 137,4), e a memória, que alimentava o sonho do retorno: “Que minha língua se cole ao céu da boca, se de ti, Jerusalém, eu me esquecer” (Sl 137,6). Mas o tempo dos salgueiros babilônicos, enfim, ficou para trás, e qual não foi o júbilo, quando puderam retornar! “Quando o Senhor mudou a sorte de Sião, a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua de canções. Até entre as nações se comentava: ‘o Senhor foi grande com eles!’. Sim, o Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres” (Sl 126, 1-3). Sabiam que a reconstrução não seria fácil, mas a certeza do protagonismo do Deus do êxodo, daquele que tirara o povo das garras do faraó naquela terrível e libertadora noite no Egito, nunca mais fora esquecida. Outra vez - e quantas fossem necessárias! – não se cansariam de testemunhar: “Clamamos então ao Deus dos nossos antepassados, e ele ouviu a nossa voz. Ele viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E o Senhor nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios. E nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra: uma terra onde corre leite e mel” (Dt 26,7-9).
03. “Também sou teu povo, Senhor, e estou nessa estrada” ... Assim gostamos de cantar, reafirmando nossa identidade de povo de Deus, continuador da história da salvação, que, em Cristo, chegou à sua plenitude. Também seguimos, rumo à definitiva terra prometida, convictos da nossa condição de peregrinos na fé, até que cheguem as “coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam" (1Cor 2,9). E, do mesmo modo que o povo da Antiga Aliança nunca abandonou a sua certeza de que Deus sempre o acompanhou pelos caminhos da história, nós também, filhos de Deus na Nova Aliança, podemos continuar cantando: “somente a tua graça me basta, e mais nada”.
04. Quem diria que experimentaríamos um pouco do sabor do exílio ou da longa noite amarga do Egito, com essa pandemia do coronavírus? Obviamente as condições são outras! No entanto, os cenários mundial e brasileiro que se descortinam diante de nós, nos quais nós mesmos desenrolamos o drama da nossa existência, também cheiram a sofrimento, dor e morte. Para a maioria de nós, nunca a morte trágica esteve tão perto de nossas portas, mesmo daquelas “marcadas com o sangue do cordeiro” (Ex 12,7)! Quem contava com a necessidade de mudar drasticamente o ritmo de vida, distanciar-se socialmente do trabalho e do convívio com os familiares e amigos, para preservar a sua vida e de seus semelhantes? Quem ao menos suspeitava ter que acompanhar, de perto ou à distância, a agonia e a morte de tantos irmãos e irmãs, que partiram sem ao menos darem o seu adeus? Quem sonhava assistir, tomado por uma ira santa, a ingerência de uma situação gravíssima por parte do Estado, cujos chefes, versões medíocres dos antigos faraós, brincam com a vida humana e fazem dela objeto de trocas espúrias? Quem chegou a pensar, um dia, em ver as portas das igrejas fechadas e suas celebrações transferidas para a Igreja doméstica da família, na medida do possível, ou mediada pelas tecnologias de comunicação e redes sociais? Quem diria que, de um momento para o outro, os encontros catequéticos e demais atividades pastorais seriam suspensos na sua modalidade presencial, exigindo dos catequistas e demais lideranças criatividade e empenho redobrados, para descobrirem outras possibilidades de fazer ecoar a Boa-nova de Jesus Cristo? Quem diria!
05. Tudo isso é muito real e nos desafia! Os impactos causados por essa pandemia ainda não podem ser calculados ou medidos, mas sabemos que são e serão muito grandes. Nem o mundo nem nós seremos os mesmos, depois desse primeiro semestre de 2020. Vou me abster de uma análise mais sociológica ou política da situação por questões óbvias: há excelentes analistas por aí, que podem nos ajudar, e não pretendo me alongar nessa reflexão. No entanto, entendo ser importante, ao menos, apontar alguns desses impactos na nossa vida cristã e nas atividades evangelizadoras e pastorais de nossa Igreja.
06. O primeiro olhar é para dentro de nós mesmos. “De repente, não mais do que de repente”, tivemos que nos confrontar com nossa fragilidade e débil condição de criaturas. Quando tudo parecia estável e nossos planos bem seguros, tivemos de abandoná-los ou postergá-los, já que o momento apontava para sua inviabilidade. Sentimo-nos como se a vida tivesse “puxando nosso tapete”. E como é difícil ficar, ainda que momentaneamente, sem horizontes! A impossibilidade de planejar o futuro talvez seja uma das experiências que mais impacte nossas emoções, pois nos traz a sensação da não continuidade da existência. Rouba-nos o senhorio que julgamos ter dos nossos destinos. E, inevitavelmente, surge a pergunta: “O Senhor está no meio de nós, ou não?” (Ex 17,7). Isso toca profundamente na questão da nossa fé. Afirmar a presença de Deus na bonança é muito tranquilo. Reafirmá-la, no entanto, no meio do furacão ou da tempestade, eis o desafio! Como bem ressaltou o Papa Francisco, na memorável Bênção Urbi et Orbi, na Praça de São Pedro[4], atualizando o clamor dos discípulos de Jesus: “Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-te: ‘Acorda, Senhor!’”.
07. A Palavra nos ensina que “a fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se veem” (Hb 11,1). Diria que é colocar o pé na estrada antes mesmo de Deus colocar o caminho. Trata-se de uma entrega de nossa vida nas mãos daquele que pode conduzi-la a um porto seguro. É confiança, isto é, dar nossos passos seguros de que Deus é o fiador que garante nossa caminhada, se a fazemos de acordo com sua vontade. E, mais uma vez, é de Maria, mãe de Jesus, que aprendemos a lição do “faça-se em mim segundo tua Palavra” (Lc 1,38), mesmo compreendendo muito pouco do que estava por vir. Mas não é uma experiência fácil de se fazer. Nossa espiritualidade não se desvincula do turbilhão de nossas emoções agitadas pelos ventos do medo e da angústia. Somos uma pessoa só, e tudo está muito integrado ou desintegrado dentro de nós! Por isso mesmo, o medo convive com a fé, e isso não consiste em pecado, absolutamente. Como nos recordou o Papa, na ocasião acima citada: “O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida”. Desse modo, nossa fé cristã nos faz entender que não podemos atribuir a Deus uma pandemia como esta, como se ele estivesse à espreita para castigar a humanidade, mas também, em extrema posição, não podemos querer que ele resolva tudo para nós. Nós lhe entregamos nosso obséquio de fé e nossa disposição para fazer sua vontade. E ele nos dá a sua graça, como concluiu o Santo Padre: “Confiemos-lhe os nossos medos, para que ele os vença. Com ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida jamais morre”.
08. Outro olhar dirige-se à nova rotina que tivemos que estabelecer, na maioria dos casos, junto de nossos familiares. Isso tem a ver com a vivência da virtude da caridade. Forçosamente, tivemos que permanecer mais tempo dentro dos nossos lares, conviver com aqueles que, possivelmente, há tempos não convivíamos por conta da correria ou dos desafetos. Tivemos que nos apertar em casas estreitas, sentar à mesma mesa no horário das refeições, dividir as tarefas domésticas, batalhar pelo pão de cada dia, nos enquadrar em regras de boa convivência e olhar nos olhos daqueles que deveriam ser os mais importantes para nós para, ali, sondar-lhes os vestígios do medo e da angústia a pedirem amor, solidariedade, cuidado. E como lhes temos respondido?
09. Um terceiro olhar volta-se para fora de nossos lares, para a sociedade e, de modo muito especial, para nossas comunidades eclesiais. E, aqui, podemos questionar que impacto sofreu nossa esperança. Certamente, choramos ao ver tantos irmãos nossos sendo acometidos pela COVID-19 e morrendo, não raras vezes, desamparados e privados de dignidade. Vimos famílias inteiras perdendo, subitamente, o pouco que lhes garantia o sustento e a vida. Constatamos, com sentimento de impotência e vergonha, o descaso do poder público pela vida do cidadão e seus mais sórdidos deboches frente à dura realidade enfrentada por toda a população, sacrificando especialmente os mais empobrecidos. É possível que o desespero ou a indignação tenham questionado nossa esperança cristã. E tivemos que ser fortes, para reafirmar: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31).
10. Com que dor no coração vimos nossas igrejas fecharem as portas para as celebrações presenciais, e as chaves serem passadas nos cadeados dos salões paroquiais e centros pastorais! “Catequese suspensa por tempo indeterminado”, esse era o cartaz afixado nas portas das salas de catequese ou o recadinho enviado no grupo de WhatsApp dos catequizandos ou de seus pais...Padres, catequistas, cristãos em geral, suspiravam pelos cantos da casa: “nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Nem semana santa teremos!”. Nem faltou o descrente a zombar: “Gritem mais alto; pode ser que seu deus esteja ocupado. Quem sabe teve que se ausentar ou então está viajando. Talvez esteja dormindo e seja preciso acordá-lo” (1Rs 18,27).
11. Voltemos ao salmo 126: “os que semeiam com lágrimas, ceifarão em meio a canções. Vão andando e chorando ao levar a semente. Ao regressar, voltam cantando, trazendo seus feixes” (vv. 5-6). Nós, os cristãos, teimamos em acreditar na vitória da vida. O mistério pascal nos mobiliza a jamais acreditar que a cruz e a morte sejam as últimas respostas para a peregrinação humana. Se Cristo está vivo, nossa fé não é vã e ilusória (cf. 1Cor 15,14), e a certeza de sua ressurreição é o suficiente para alimentar em nós a “mística do recomeço”. Sabemos que tudo isso vai passar. Mais um ciclo da história será encerrado, para abrirmos um outro, que esperamos seja melhor. Mas, para isso, é preciso que aprendamos algo com esse momento difícil, mas fecundo, de pandemia e recolhimento social. Ele não pode ser visto apenas como tragédia, mas também, e principalmente, como oportunidade de revisão de nossas vidas, em todas as suas dimensões. Seria terrível se disséssemos, no pós-pandemia: “sou um sobrevivente”. Nada mais deplorável que isso! Não fomos criados por Deus para arrastar a vida como sobreviventes de catástrofes. Se “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1) e se ele veio para que tivéssemos vida em plenitude (cf. Jo 10,10), é para frente que devemos seguir, e de cabeça erguida. Somos viventes, e como tais protagonizaremos um novo tempo. Os impactos sofridos nos farão responder com criatividade, coragem, esperança em Deus, “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”[2]...Para tanto, retomemos os três olhares lançados sobre os impactos causados por essa pandemia, perguntando pelos aprendizados que eles podem nos trazer.
12. É certo que cada um de nós está fazendo e deverá fazer leituras próprias do caminho percorrido, durante esse período de duração da pandemia. Prejuízos e saldos serão contabilizados não somente agora, mas na trajetória a seguir. No entanto, de modo objetivo, podemos acenar para três aspectos pessoais que merecem reflexão:
1) A superação do egoísmo: mais do que nunca sentimos o quanto dependemos uns dos outros. Ficar em casa e usar máscaras quando saímos, por exemplo, foi fundamental para garantir a nossa saúde, mas também a dos nossos semelhantes. Saber que algum excesso poderia colocar em risco a vida alheia nos fez ver que todos estamos interligados e somos igualmente responsáveis uns pelos outros. A falta de alguns serviços essenciais também nos fez pensar que nenhum de nós é autossuficiente. Entendemos melhor que, se muito dessa pandemia se deve a ações irresponsáveis de alguns, as soluções para uma maior qualidade de vida para todos dependerão da união de todos e não apenas do esforço de poucos.
2) A pergunta pelo essencial da vida: a triste realidade do contágio do coronavírus e a realidade de tantas mortes trágicas nos fizeram enxergar que de nada adianta poder ou dinheiro nessa hora. Todos somos vítimas em potencial. E a iminência do fim pediu de nós uma revisão do que realmente consideramos essencial em nossas vidas. De repente, todos tivemos que deixar tudo e ficar dentro de casa, contentando-nos com o mínimo. Vale a pena a correria da vida, no esforço de alimentar os monstros do acúmulo de coisas e do consumismo? Isso pode nos salvar?
3) O reforço das virtudes da fé, da esperança e da caridade: essas virtudes, ensina-nos a Igreja, são dons de Deus. No entanto, exigem nossa acolhida e nossa resposta diária. Fiquemos atentos ao modo como nutrimos a nossa vida cristã, para que sempre estejamos prontos a responder com coragem aos desafios tantos que a vida nos traz!
13. A intensificação do convívio familiar foi de grande importância para muitos de nós, no momento em que o núcleo familiar sofre grandes abalos e fragmentações. Conviver mais intensamente com aqueles que deveriam ser os mais próximos a nós pode levar-nos a pensar na família como comunidade de amor e cuidado, imprescindíveis em nossas vidas. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes. E cessando, ainda que por um tempo, o nosso corre-corre, pudemos nos encontrar (ou desencontrar!) com a realidade de alegrias e tristezas de nossos familiares, inclusive tendo a chance de superar alguns bloqueios e desafetos. Acredito que poderemos reaprender a diferença entre ter uma casa e ter um lar; que há valores preciosos bem mais perto de nós do que pensamos; e que relações mais saudáveis com os familiares farão de nossa família o lugar da acolhida, da ajuda mútua, do cultivo da vida feliz e da experiência da presença de Deus.
14. No que se refere à nossa vida social, também podemos afirmar que a pandemia está sendo uma escola de valores humanos e cristãos, para quem seriamente se permite fazer as perguntas fundamentais sobre suas experiências. Olhar para uma sociedade à beira do caos, levanta questões que nos comprometem: quem é responsável por tudo isso? Por que nos faltam as mínimas condições para a superação dessa crise? Se tudo está interligado, como poderemos nos articular, fraternalmente, para encontrar as saídas? O que justificaria tanta fragmentação, competição e ódio entre grupos e pessoas? De que modo temos cuidado da nossa casa comum, dom precioso de Deus para todos, e não apenas para alguns? Que atitudes proféticas precisamos assumir frente ao descaso público pela vida do ser humano e da natureza? Talvez tenhamos mais perguntas do que respostas. Mas já são meio caminho andado! Penso que a experiência da própria vulnerabilidade nos pode tornar mais sensíveis à vida dos nossos irmãos. Quantas iniciativas solidárias e assistenciais emergiram, como reflexos da compaixão, hóspede eterna dos corações humanos, mesmo daqueles embrutecidos pelas amarguras ou decepções da vida!
15. Apurando o foco dessa reflexão, olhemos mais de perto o contexto eclesial, especialmente as questões que envolvem as duas dimensões fundamentais da vida cristã: catequese e liturgia. Acredito ser impossível falar de uma sem me referir à outra. Aliás, por si mesmas, elas se referem mutuamente. A liturgia, enquanto celebração do Mistério Pascal, exige a catequese como iniciação, e a catequese, explicitação desse mesmo Mistério, só se liberta da mera transmissão de conteúdos e do risco da relação teórica com Deus se, no seu processo, a dimensão orante e celebrativa encontrar seu devido espaço. São dimensões que nasceram juntas na história da nossa fé cristã, ainda que, historicamente, tenham sido separadas por muito tempo. Hoje, busca-se uma interação entre elas, para que se faça valer o que a Igreja sempre se propôs, ao menos teoricamente: lex credendi, lex orandi, lex vivendi (crer o que se reza, rezar o que se crê e viver o que se crê e o que se reza). Já acenei, acima, para os impactos que a pandemia e o consequente recolhimento social trouxeram para nossa fé e prática cristãs. Pretendo, agora, apontar algumas questões que merecem nossa atenção, já que exigirão de nós uma séria reflexão e até novas posturas daqui para frente.
16. A pandemia nos cobrou criatividade e até quebra de resistências, em alguns aspectos. Também nos fez pensar em resgates e ampliação de concepções. Refiro-me, mesmo, às tradicionais respostas conceituais do que seja catequese e liturgia. Não digo que o que compreendíamos a respeito delas não tenha mais valor. Obviamente, temos um rico depósito teológico e prático que ilumina as duas dimensões e precisa ser cada vez melhor compreendido. Isso não nos impede, entretanto, de perceber os desdobramentos que as novas realidades nos sugerem. Em outras palavras: a Igreja sempre se atualiza, ou, como preferem os mais clássicos, é semper reformanda, sem deixar de ser fiel à sua vocação primeira. Exemplificando: quando pensávamos que poderia haver uma catequese à distância, via mídias sociais? Celebrar em casa, com os familiares, para a maioria de nós, parecia coisa somente dos primeiros tempos do cristianismo...ainda mais, sem a figura do padre. Perguntas, as mais variadas, logo começaram a aparecer: catequese por WhatsApp vale? É possível ao catequista fazer-se presente na vida do catequizando, não estando fisicamente perto dele, mas virtualmente? Na internet há afeto? E uma parcela significativa de catequizandos que não tem acesso às mídias sociais, como atingi-la? Missa pela TV ou mídias sociais vale? Existe mesmo essa tal de “comunhão espiritual”? Dá para ficar tanto tempo sem a comunhão eucarística? Mas, o leigo pode presidir celebrações e até dar bênçãos? Isso não é “coisa de padre”? Mais uma vez, temos mais perguntas do que respostas.
17. O Papa Francisco tem insistido na necessidade de buscarmos novas linguagens e meios para a evangelização e a catequese. Ele diz: “É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diversos âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros”[3]. Nova carne. Expressão estranha, mas provocativa, pois nos remete à maravilhosa pedagogia de Deus, que se encarnou, tornou-se gente, para ficar mais próximo de nós! Esse é o paradigma para o evangelizador, e a pandemia nos fez olhar de novo para ele.
18. Aqui entra uma rápida chamada de atenção para o papel que os meios de comunicação (rádio, tv etc.) e as novas mídias sociais podem cumprir em nossos itinerários evangelizadores e celebrativos. Esse papel, obviamente, não será de suplência. Nada dispensa a figura do catequista junto a seu grupo de catequizandos, nos encontros “presenciais” ou da assembleia reunida para as celebrações litúrgicas. No entanto, faz-nos pensar com mais seriedade no quanto podem ser usados a nosso favor e incluídos como parte metodológica de nossos processos, ao invés de serem exorcizados, como ocorre na prática de alguns. O conceito de “virtual”, sabemos, não equivale ao de irreal. As mídias sociais podem ser consideradas uma extensão dos nossos sentidos, uma continuidade do sujeito e garantem, de outra forma, uma presença, especialmente quando já existe uma vinculação afetiva das partes envolvidas. Em algumas circunstâncias, seu poder de atingir o coração e a consciência das pessoas pode ser até maior do que o discurso ou as estratégias usadas dentro dos templos ou salas de catequese. Os recursos midiáticos têm a mesma natureza da arte e primam pela via da beleza e, por isso mesmo, têm forte poder de mobilização psíquica e espiritual. Veiculam informações, mas também afetos e encantamentos.
19. Um cuidado, no entanto, deve ser tomado, especialmente no campo das celebrações sacramentais. Por mais interessantes e bonitas que sejam as celebrações transmitidas pelos meios de comunicação e mídias sociais, eles têm seus limites. A liturgia não é só performance. Para além da engenhosidade das formas e roupagens, há um conteúdo que só realiza no fato real, na experiência, na presença física e no contato direto com o sinal, transfigurado pela ação de Deus e pela fé do fiel, experiência que a distância virtual não dá conta de reproduzir. Assim, por exemplo, a missa pela TV pode ser uma forma de oração, de nutrição pela Palavra ouvida, de avivamento do amor pela Eucaristia, mas não equivale à participação “presencial” na missa da comunidade. Do mesmo modo, a chamada “comunhão espiritual” só pode ter sentido quando entendida como intimidade com Deus na oração e entrega de vida, mas não substitui a comunhão nas espécies consagradas do pão e do vinho, corpo e sangue do Senhor. O mesmo equivale para a adoração ao Santíssimo à distância. É preciso cuidar para que a tela da TV não se transforme em um amuleto ou simulador da presença real de Jesus na hóstia consagrada! Seria o máximo da banalização e do empobrecimento do sacramento da Eucaristia!
20. A impossibilidade da nossa presença física nos templos para as celebrações ou nos espaços onde a catequese acontece provocou um deslocamento não só geográfico, mas teológico e pastoral, muito interessante: para o núcleo familiar. Sem planejamento algum, tivemos de devolver às famílias, especialmente aos pais, o que sempre lhes coube cumprir: a educação da fé de seus filhos. É fato que isso tem seus problemas, visto que grande parte deles não se sente apta para tal função, o que denuncia, mais uma vez, o descuido da Igreja quanto à iniciação dos adultos e à catequese permanente. Mas até isso pode ter seu lado bom: muitos pais tiveram que se mobilizar, reaprender as orações básicas do cristão, reencontrar-se com a Palavra de Deus, pesquisar etc. “Essa pandemia deveria oportunizar a redescoberta da Igreja doméstica, da liturgia familiar e do templo que nossas casas e nós mesmos somos. Tempo de redescobrir nosso sacerdócio batismal, valorizando a força da Palavra de Deus que também é alimento e goza de sacramentalidade. Se por hora não é prudente que celebremos a Eucaristia em nossa comunidade eclesial, celebremos o Mistério Pascal de Cristo em nossa comunidade doméstica, por meio de outras possibilidades como, por exemplo, a celebração da Palavra de Deus, da Liturgia das Horas ou do Ofício Divino das Comunidades, das celebrações de bênçãos, como por exemplo a da mesa, dentre outras”[6]. Dois apelos, ao menos, permanecem: como fazer da família o epicentro do kerigma, devolvendo-lhe de vez seu protagonismo na educação dos seus filhos? Como envolver as famílias em nossos itinerários catequéticos e celebrativos no dia a dia da catequese?
21. Outro elemento importante a se considerar, talvez o primeiro em ordem de importância, diz respeito ao ponto de partida da catequese e, quiçá, da liturgia: a vida das pessoas. Esta é o conteúdo básico da evangelização e da celebração. Sem a vida e a realidade do povo, a catequese se transforma em instrução abstrata e distante da realidade, e a liturgia se reduz a ritualismo vazio de significado. Não tenho dúvida de que o Mistério Pascal sempre será o centro da vida cristã e que, de algum modo, ele é o mesmo, independente dos homens. No entanto, Deus tudo fez por nós e pela nossa salvação. E esta só se atualiza na vida e a partir da vida muito peculiar de cada um de seus filhos. A pandemia nos fez individualizar os interlocutores da mensagem e da oração cristã. Vimos que os fiéis que compõem a assembleia litúrgica têm rosto e nome, casa e endereço (para muitos, infelizmente, a rua!), e tivemos que nos dirigir pessoalmente a cada um deles, procurando envolvê-los em nossas atividades e propostas. No dizer do catequeta mexicano De La Cruz,“a pandemia, bem entendida como uma oportunidade, veio impulsionar o catequista a migrar de uma catequese somente centrada em conteúdos doutrinais e celebrações sacramentais para aprender a assumir as angústias e esperanças do homem de hoje como parte essencial do conteúdo da catequese, e não levá-las em conta somente como uma referência metodológica por implementar. O catequista teve que aprender a deixar de falar de Cristo Jesus, para aprender a viver como Cristo Jesus em relação íntima com as pessoas e comunidades”[5]. Fica a questão: no princípio de interação fé-vida, que lugar estamos dando a cada uma das pessoas em nossa catequese e nas celebrações litúrgicas?
22. “Como será o amanhã? Responda quem puder. O que irá me acontecer? O meu destino será como Deus quiser”, já cantava Simone. Talvez seja melhor que nos perguntemos, então: o que será que Deus quer de nós e da nossa Igreja, passada essa pandemia? Aqui, carecemos de discernimento para saber ler os sinais dos tempos e da sabedoria do Espírito, para não desperdiçarmos tantas lições que esse momento nos trouxe e ainda trará. A título de provocação, cito algumas questões que entendo que deverão fazer parte, com urgência, das nossas pautas de revisão e ajustes na caminhada da catequese e da liturgia:
a) Espírito de muita acolhida aos catequistas e catequizandos, bem como às nossas assembleias litúrgicas, pois muitos retornarão com feridas expostas, merecendo nossos cuidados e ansiosos por encontrar em nós o coração do Bom Pastor.
b) Para quem ainda não se convenceu que catequista não é mero instrutor e transmissor de doutrinas, fica a dica: catequese é vida, e a mensagem cristã só poderá ser acolhida quando de fato fizer coincidir a boa-nova de Jesus e a boa notícia que cada irmão ou irmã necessita escutar: a boa noticia do amor, da justiça, da fraternidade, da solidariedade etc. Isso requer começar sempre pela vida e não pelo livro.
c) Ainda que estivéssemos ligados em rede, questiono se estávamos em comunidade. E como nos fez falta o calor humano dos irmãos e irmãs de caminhada! Cuidemos para que, na ânsia de colocar em dia nossas agendas, a burocracia não sufoque os afetos e vínculos fraternos. Penso que já entendemos que a pressa não pode nos levar a deixar para trás as pessoas a quem nos propomos servir.
d) O retorno será momento de sínteses e releituras da caminhada feita. Que a preocupação com os conteúdos deixados para trás não seja desculpa para desprezarmos a riqueza das experiências vividas durante a pandemia. Na verdade, estas são conteúdos de primeira importância, tanto para a reflexão quanto para as celebrações.
e) O pós-pandemia servirá também para aprimorarmos as vivências familiares e, doravante, entender a família como parceira na evangelização dos catequizandos, isto é, sujeito e, ao mesmo tempo, destinatária de nossos melhores esforços pastorais. Aqui, começa a se concretizar a tão propalada “Igreja em saída”, vislumbrada pelo Papa Francisco e se realiza a dimensão missionária da catequese e da liturgia. É a chance de abandonar um modelo de Igreja que se coloca como autorreferência, partindo para uma Igreja aberta ao mundo e realizando-se, enquanto tal, em todos os ambientes, de modo particular, em cada lar cristão.
f) A iniciação cristã com adultos só ganha força depois de termos passado por tudo isso que a pandemia nos trouxe. Precisamos de uma Igreja adulta e madura na fé, na esperança e na caridade, para o enfrentamento dos embates que, sem previsões, a vida nos traz, e garantidora da continuidade do testemunho do Evangelho para as atuais e futuras gerações.
g) Os meios de comunicação e as mídias sociais precisam ganhar mais espaço em nossa catequese e na liturgia. Eles mostraram sua importância e relevância. Mas, precisamos nos capacitar e conscientizar nosso povo, para que saibamos o seu devido lugar, sem as distorções tão acentuadas no período da pandemia.
h) Precisamos de uma Igreja mais profética, que não admita o aviltamento da vida e da dignidade humana, bem como a destruição da nossa Casa Comum. Que a catequese e a liturgia não caiam na alienação e eduquem para o profetismo e o protagonismo cristão na sociedade. Depois do que vivenciamos, vendo ou participando de tantas ações solidárias de socorro aos mais necessitados e serviços gratuitos em defesa da vida, catequese e liturgia não poderão abrir mão de sua dimensão sociotransformadora, dimensão que lhes dá legitimidade.
i) A formação continuada é fundamental para toda a liderança cristã, especialmente para os catequistas. Mas uma formação integral, e não apenas conteudista.
j) A valorização do sacerdócio comum dos fiéis constitui outro aspecto de relevância para futuro da Igreja e a catequese e a liturgia poderão contribuir muito para isto. Vencer uma visão ainda clericalista, sobretudo no campo da liturgia, é mais do que necessário. Isso, não apenas porque faltem padres em várias partes do mundo para presidir as liturgias, mas porque a iniciação cristã faz do cristão leigo e leiga participantes do sacerdócio do Cristo, chamados a oferecer suas vidas como sacrifício agradável a Deus (cf. R, 12, 1) e capazes de promover, em seus lares e em outros ambientes, o louvor de Deus que lhes santifica a vida.
k) Primemos pelo afeto e por relações verdadeiramente humanas! Afinal de contas, a vida é breve, e o que conta mesmo é o bem que fazemos às pessoas e o quanto podemos ser felizes no cultivo da fraternidade, da ternura e do amor!
23. “O Senhor foi grande conosco, e por isso estamos alegres!” (Sl 126, 3). Não obstante tanto sofrimento que enfrentamos, teremos a graça de recomeçar. Fala-se do retorno como um “novo normal”. Gostaria que assim não fosse, pois o antigo “normal” provou sua insuficiência. Prefiro o desafio da renovação, do aprendizado, do amadurecimento, do mistério da semente que morre para gerar novo rebento. Será o tempo da criatividade suscitada pelo Espírito ou, como disse o Papa Francisco, este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer”[7]. Como cantava o salmista, “o Senhor mudou a sorte de Sião” (Sl 126,1). Os rumos serão outros e espero que melhores! A “mística do recomeço” propõe que não esqueçamos as lágrimas da semeadura, das quais depende a fartura da colheita. Nossa fé nos pede que voltemos cantando, trazendo os feixes nos braços (cf. Sl 126,6). Afinal, mais uma noite de Egito ou de exílio ficará para trás. Agora é tempo da reconstrução, na certeza de que o Senhor sempre esteve no meio de nós e sempre nos dará a sua bênção: “Que o Senhor abençoe você desde Sião, e você veja a prosperidade de Jerusalém todos os dias de sua vida. Que você veja os filhos de seus filhos. Paz sobre Israel!” (Salmo 128 [127]).
O título do texto é referente ao Salmo 126(127), 3.
[1] Texto provisório. Toda contribuição será bem-vinda.
[2] 27 de março de 2020.
[3] Trecho da música “Sementes do Amanhã”, de Gonzaguinha.
[4] Papa Francisco. A Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium), n. 168).
[5] Daniel Reis. Campanha “Devolvam-nos a Missa”: novos coríntios. O mesmo erro. Disponível aqui. Acessado em 21.06.2020.
[6] José Flores de la Cruz. Intuiciones. La pandemia, bien entendida como una oportunidad, vino a impulsar al catequista a
migrar de una catequeses solamente centrada en contenidos doctrinales y celebraciones sacramentales hacia un aprender a asumir las angustias y esperanzas del hombre de hoy como parte esencial del contenido de la catequesis, y no a tomarles en cuenta tan solo como una referencia metodológica por implementar. El catequista tuvo que aprender a dejar de hablar de Cristo Jesús para aprender a vivir como Cristo Jesús em relación íntima con las personas y comunidades. In Después de la pandemia, ¿qué catequesis? Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020.
[7] Conferir epígrafe deste texto.
BÍBLIA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus. 2019.
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho). São Paulo: Paulus & Loyola. 2013.
TEJO, Díaz Javier (org.). Después de la pandemia, ¿qué catequesis? Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020.
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O Senhor foi grande conosco. Por isso, estamos alegres! Artigo de Vanildo de Paiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU