Líderes autoritários ocupam brechas deixadas pelo pensamento crítico, razão e autonomia dos sujeitos, operando como seus superegos, que falarão e agirão em seu nome. Neofascismo brasileiro cresce no solo da escravidão e da colonização exploratória
Em sua escuta na clínica psicanalítica, Sigmund Freud tinha acesso a um observatório privilegiado não apenas para estudar a psique humana, mas também para refletir acerca da “formação subjetiva do poder naquele momento de crise do mundo liberal clássico”, argumenta o psicanalista político Tales Ab’saber na entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Olhando para os fenômenos sociais em curso, quando escreve Psicologia de massas e análise do eu, em 1921, Freud analisava construtos psíquicos que reverberavam em comportamentos subjetivos e também sociais, como a adesão a líderes fascistas como Hitler e Mussolini, cujo poder de hipnotismo irracional segue reverberando em pleno século XXI na personificação de presidentes como Bolsonaro, Trump e Orbán. Para que a experiência de conversão à liderança de figuras históricas nas décadas de 1930 e 1940 funcionasse, assim como em nosso tempo continue a operar com sucesso, uma tríade de elementos é crucial: mentes vazias de pensamento crítico, abandono da autonomia e da razão. Em seu lugar, o superego do líder autoritário lança suas raízes e se vale do uso do ódio como categoria política, “veneno automático e infinito” do qual Freud estava muitíssimo consciente. “O fascismo operacionaliza esse uso do ódio de forma muito eficaz, a qualquer momento evocando esse arcaísmo para a produção de poder, ainda mais quando o capitalismo mantém a competitividade, a lógica do desprezo social da sociedade de classes, os átomos do ódio em movimento, como se eles tivessem sido pacificados, só que não o foram”, pondera Ab’saber.
Para o psicanalista, está em curso um processo global de neofascismo, que se desdobra nas nuanças dos contextos históricos, regionais e nacionais. Agora, como no passado, o líder autoritário desponta como a solução, sem reconhecer o outro como parte da política, o que deve ser lido como elemento inerente da própria lógica do capitalismo, sempre prestes a gestar o fascismo e suas variantes. No caso brasileiro, o neofascismo brota do solo escravista e de colonização exploratória, em um processo democrático conturbado e que está, novamente, sob ameaça com a ingerência norte-americana convocada pelo bolsonarismo sentado no banco dos réus, no Supremo Tribunal Federal (STF), por tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, entre outros crimes. Nesse cenário, o pleito de 2026 é uma grande incógnita.
Tales Ab’saber (Foto: Arquivo pessoal)
Tales Ab’saber é graduado em cinema e psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), onde cursou mestrado em artes e doutorado em psicologia clínica com a tese O sonhar restaurado: origens e limites de sonhos em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34, 2005). De sua produção bibliográfica, destacamos: O soldado antropofágico: escravidão e não-pensamento no Brasil (n-1 e Hedra, 2022), Michel Temer e o fascismo comum (Hedra, 2018), Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Hedra, 2016, 2. ed.) e Dilma Rousseff e o ódio político (Hedra, 2015).
Docente na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ab’saber ministrará em 26-11-2025, às 18h, a conferência O devir fascista do mundo, dentro da programação do XXII Simpósio Internacional “A extrema-direita e os novos autoritarismos. Ameaças à democracia liberal”, promovido em parceria pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos e o IHU. A programação completa do evento e as inscrições podem ser acessadas e realizadas aqui.
IHU – A partir da psicanálise e olhando para fatos históricos como o fascismo italiano e alemão da primeira metade do século XX, como podemos entender as políticas autoritárias de extrema-direita?
Tales Ab’saber – Um dado histórico interessante que vale a pena refletirmos a respeito é que Freud (1), tido por muitos pensadores políticos engajados e sociólogos políticos tradicionais como amarrado e alienado ao circuito pequeno-burguês do consultório, de sua época e mundo, foi o primeiro que apontou historicamente para a emergência da lógica psicopolítica do fascismo. Em Psicologia de Massas e Análise do Eu, de 1921, ele nomeia a dinâmica de submissão ao líder totalitário e de rebaixamento ideológico das consciências com o qual o fascismo opera, ainda antes de Mussolini e Hitler chegarem ao poder de Estado e encarnar os fatores e dinâmicas subjetivas e grupais já nomeadas pelo primeiro psicanalista. Isso nos leva a perceber como o dispositivo crítico que Freud estava desenvolvendo, a sua psicanálise, vinha da radicalidade da experiência da interioridade, das contradições, das forças e do imaginário burguês concreto do fim do século XIX, era um laboratório de entendimento de sujeitos e de sociedade, sociedade nos sujeitos, a um tempo, às vésperas da I Guerra Mundial. Esse campo do conhecimento tem em suas origens o momento político da constituição de um sujeito e articula subjetividade, cultura e poder.
Freud diz, fundamentalmente, que a política, a vida social em jogo de poder e crise, também está na estrutura original do desejo, vinda desde o infantil, na formulação de seu famoso Complexo de Édipo, algo positivo, articulador da subjetivação, mas também um dispositivo regulador da relação desejo/poder. Outro pensador que unia psicanálise, história e crítica radical, Theodor Adorno (2), já anotara com acuidade que no coração e no fundo do inconsciente do indivíduo, na clínica de Freud, estava a sociedade.
Todavia, essa operação de localização de si mesmo no próprio desejo e inconsciente, e sua autonomia, na psicanálise, também é uma superação relativa em relação ao mundo social e exterior. Uma espécie de autonomia, localizada e partilhada na clínica, no próprio desejo e inconsciente. Mas o social e a história em que um indivíduo, sujeito da lógica do próprio inconsciente, habita e se formou também está sempre lá. Em outras palavras, a clínica psicanalítica freudiana era um grande observatório da formação subjetiva do poder naquele momento de crise do mundo liberal clássico, o mesmo que explodiria com a guerra total e a reorganização de massas para um mundo totalmente industrial e mercantil. Um observatório social a partir do indivíduo em sua estruturação, na qual repousa e se articula a relação entre potências e poder. Potências se referem ao desejo, e as possibilidades de criação cultural, à história conquistada e construída do indivíduo. Poder são as configurações históricas de alienação e de injustiças, com que todos têm que lidar, e são sujeitos também deste trabalho. Junto com o universo do sintoma, estão em jogo, no espaço da associação livre radical do método freudiano, ideologias e ilusões políticas, algo que, se o analista quiser ouvir, de fato aparece no trabalho analítico.
Tanto isso é verdade que, nessa grande autobiografia teórica da crise do século XIX e do burguês liberal europeu que é A Interpretação dos Sonhos, de Freud, a maior parte do livro se refere à localização desse pensador frente a problemas de cultura, de política e de poder, sempre orientados pela teoria para o infantil, a sexualidade infantil – e essa é a novidade de sua psicanálise –, mas a cultura, os problemas ideológicos, os embates sociais pelos sentidos das coisas, éticos, liberalizantes e epistemológicos, em seu caso, estão sempre lá, ao longo de toda a autoanálise dos próprios sonhos de Freud. De fato, ele orienta o fenômeno fascista para as raízes, como diria Sérgio Buarque de Holanda, para as primeiras formulações da lei, do desejo, do eu e do outro, para suas forças de supressão, e também para a formação incompleta, que se dá em termos dialéticos, porque é preciso da ideia do inconsciente para operar conceitualmente essa estruturação.
Então, se constitui um gap, descontínuo, uma ruptura, que fundamentará a ilusão de um eu integrado, mas que é o inconsciente como estrangeiro de si mesmo, o que irá levar a psicanálise a ser entendida como estruturalismo, como ocorre a partir de Lacan. Mas a constelação histórica, os embates de sujeito, ideologia e poder, estão sempre em jogo. Em A interpretação dos Sonhos, temos a compreensão do inconsciente em um autotrabalho analítico de Freud, que vai mostrando contradições históricas e culturais que têm presença sistemática na vida: o antissemitismo, os aspectos atrasados e autoritários de uma sociedade ainda marcada por formas de Ancien Regime, em plena modernidade liberal, a crise teórica e epistemológica que a própria psicanálise instalou no mundo científico positivista de seu tempo. Essas discussões estão todas lá, na obra acerca dos sonhos de Freud, que tenta também objetivar a sua realidade, a realidade psíquica. Mas esta teorização que fixa parcialmente seu objeto, na metapsicologia final do livro, se constrói com a discussão epistemológica rente aos inimigos ideológicos da psicanálise, embates com seus colegas médicos que o atacavam em sonhos, como ocorre no primeiro a ser interpretado, o sonho da injeção de Irma, em uma grande querela da época, o que é de fato uma discussão cultural e ideológica. Uma posição do sujeito em análise, autocrítica, junto a problemas de poder social, simbólicos e reais.
Naquele grande livro, Freud esboça inclusive, sempre através de seus sonhos, algumas ideias sobre as raízes ocidentais do poder pela perspectiva judaico-cristã, nas quais irá tensionar a metáfora de Aníbal contra Roma, o que é uma das figuras da relação da cultura com a história, do embate entre vértices civilizatórios diferentes. Noutras palavras, ele figura uma ideia de guerra de civilizações. De fato, estas fantasias sobre as raízes políticas da própria história não têm como não habitar esse sujeito burguês da psicanálise, no limite da crise de sua própria dissolução, aquele mesmo que carrega a própria noção de história, pois emergiu em seu mundo social com essa noção, o processo de dotação de sentido de toda modernidade. O que Freud faz é colocar um vetor novo na coisa toda da historicidade, que seria a gênese arcaica da historicidade do indivíduo – e que também, mais tarde, nos anos de 1910, será a gênese arcaica coletiva do humano. Mas o mesmo indivíduo burguês freudiano no limite da modernidade está na gênese cultural, ideológica e política de seu tempo, o que podemos chamar de sujeito freudiano total.
Traço esse panorama para situar de onde vem a sensibilidade de Freud, que procura localizar de onde se origina o fascismo: ela vem exatamente da crítica que brotava no consultório, na estrutura teórica e na crítica ao poder próprias da psicanálise, que, então, em 1920, vai observar aquelas pessoas e grupos que andavam pelas ruas, e seu novo movimento político, que se organizavam em torno de uma formação psíquica cuja identificação horizontal do grupo levava ao rebaixamento da dimensão da consciência crítica, bem como à adesão a um outro totalizante, que irá falar inteiramente por eles.
O poder de “hipnotismo” irracional de líderes fascistas como Bolsonaro ou Trump se constitui porque eles ocupam a estrutura psíquica do próprio eu, diz Freud, destrinchando um certo núcleo do fascismo com psicanálise. Essas lideranças são de fato o ideal do eu, que é uma variação da ideia de superego, e se inscrevem em níveis narcísicos dos indivíduos que dominam, transformando-os em massa indistinta, para o próprio desejo/poder do líder. De fato, eles são o superego do adepto. Pactados com forças de gozo na violência, autorizados pelo líder ideal fascista, dominam o eu. Por isso, “hipnotizam” as suas massas, e para que isso funcione é preciso que esses grupos de servidão voluntária estejam vazios de pensamento, abandonando a reflexão própria e o senso de história das coisas do poder.
O que Freud diz é que a gênese do fascismo é a crise daquele sujeito da autonomia, da razão e do pensamento, que a partir daí passa a ser uma figura contingencial, virtual, muito longe de ser universal. O fascismo é uma outra formação inconsciente para o mundo político, desde a raiz do entendimento do espaço da política. A sua crítica psicanalítica, esperançosa de pegar a coisa pela raiz, e repor dialeticamente a emancipação significante da própria violência, também é uma constatação original de dialética do esclarecimento.
IHU – Portanto, este é um tipo de mecanismo psicológico das massas agenciado pelo fascismo no vazio deixado pela racionalidade, pelo senso crítico?
Tales Ab’saber – Exatamente. Freud afirma que passamos a conhecer uma lógica do sujeito político que, diga-se de passagem, é de longa duração e arcaica. Para os filósofos frankfurtianos – Adorno, Horkheimer (3), Marcuse (4)... – influenciados por Freud exatamente neste ponto, trata-se de uma lógica do sujeito que é mítica e permite que forças sociais contemporâneas como o fascismo as colonizem. Porque o próprio mundo avançado da racionalização e da técnica contemporâneas continua sendo mítico. Para aqueles freudomarxistas radicais, a própria forma concreta de operação do capital mundial mantém correspondência com essas forças de repetição míticas da submissão primordial desejada do eu ao poder. Do ponto de vista de Freud, elas são formas políticas pré-políticas. Sua determinação são forças inconscientes de longuíssima fundamentação histórica. Ele está propondo um novo esclarecimento, com sua psicanálise, que ultrapasse a racionalidade capturada e tornada alucinose no desejo do poder e da submissão, uma nova dinâmica social de relação e de sentido para compreender e tangenciar alguma transformação real, essas formações políticas catastróficas. Isso foi de grande importância para mim como psicanalista político.
IHU – Qual é o papel da mentira em massa como performance política fascista? Em que medida essas práticas se repetem, reatualizam e inspiram as atuais fake news como fenômeno epocal impactado pelos algoritmos de forma muito particular?
Tales Ab’saber – O processo do fascismo com a mentira em massa passa por um estágio histórico da tecnologia. Já nos anos de 1920 e 1930, Walter Benjamin (5) chamava a atenção para que a presença do cinema e do rádio, tecnologias novas na organização da vida social e industrial, estavam muito presentes na disputa dos fascistas pelos corações e mentes populares. Ou, ainda noutra direção, do ponto de vista do filósofo político, com esses meios de comunicação industriais surgia a possibilidade de uma radical transformação da subjetividade em um horizonte de uma nova massa revolucionária, de fato subjetivada para outros valores, pós-míticos, pelo mundo experiência do cinema. O cinema constituía um sujeito de igualdade perante um tipo de linguagem e experiência que desmitificava de vez as estruturas autoritárias, que seriam as auras, os mitos, a obra de arte como algo idealizado, transcendente à vida.
O cinema naquele tempo era a vida das grandes metrópoles, das novas forças produtivas, sendo processada por essas formas novas, em que o longe ficou perto e o mundo se aproximou, com todo tipo de experiência da modernidade, como o fragmento e a aceleração, e com toda a história sendo recontada para todos. Benjamin pensava no impacto social que o cinema produziu, tudo isso gerando uma nova sensibilidade comum, de um homem que tem a técnica para se igualar socialmente como pensamento: esse era o otimismo benjaminiano com a indústria cultural, que Adorno, como se sabe, irá negar. Adorno lembrará que o mercado vai controlar essa grande máquina de possibilidades benjaminianas, para produzir a alienação do rebaixamento da vida e do pensamento, que tem correspondência com as formas da alienação fascista. Essa potência técnica, então, ou é de fato revolucionária, ou age de forma reacionária.
Benjamin entendia que a alienação geral que modulava a técnica era a alienação daquilo que ele chamava de fantasmagoria no mundo da mercadoria. Ou seja, ou a técnica ultrapassava a raiz do trabalho abstrato/fetichismo da mercadoria, da sociedade de classes e sua formação, como o cinema dava a intuição, pós-capitalista, ou ela será sempre capturada para repor o mesmo fundo destrutivo, da mesma ordem de violências. Esse é precisamente o ponto do meu livro que será lançado no ano que vem, Neofascismo e Mercadoria, que trata exatamente de como a técnica comprometida com a forma mercadoria tende ao fascismo, por um próprio movimento imanente da situação histórica: trabalho abstrato, dominação social, fetichismo da mercadoria. Porque ela será fetichizada, e servirá para realizar e afirmar o mecanismo de submissão de massas, alienação ao líder autoritário, a forma mercadoria, que agenciará a ideologia obsoleta do grupo nacional, racial, que tem o direito de determinar o que é o inferior, a vítima eleita, aquela que será explorada ou exterminada.
O fascismo é a explicitação como poder dessa lógica, cuja gênese repousa na produção da mercadoria, que é transformar em lei, em juridicidade, o direito de um grupo de explorar ou mesmo de exterminar outros, em nome da produção do próprio valor. Isso sempre esteve lá: o fascismo não deixa de ser uma amplificação de uma potência que está presente na estrutura cindida completa chamada capital, que também é sujeito do fascismo. E a técnica do capital, capital é.
Chegamos à situação contemporânea: o capital oscila agora entre duas formulações políticas distintas. A primeira delas é ser liberal e ter algum tipo de mínima contratação na qual o mercado é tudo. Nesse caso, ainda não se trata de usar o Estado como instrumento para interferir diretamente nas vidas, embora o neoliberalismo tenda fortemente a isso. Na liberal-democracia, ou social-democracia, como queiram, como o nosso lulopetismo, são criados alguns anteparos sociais e políticos estratégicos para nos proteger da dissolução total, autoritária e de gestão de extermínio de massas, do mercado movido apenas por si mesmo. Essas barreiras e esses dispositivos tendem sempre ao mínimo necessário, para não parar o mundo produtivo, comprometido de fato com a acumulação sem fim. A mesma que destrói com sistema o mundo, e depois reclamamos.
A outra configuração do capital de agora, da qual o Brasil é uma vanguarda, é ser abertamente neofascista, sem contrato social algum, quando o grupo se unifica na lógica da destruição conservadora. Então a política se converte em algo diretamente criminoso, conduzida por um Estado e um grupo criminoso, novos proprietários ascendentes, corporações fascistas, espécies de máfias de violência direta como desejo político. Mas tudo sempre para a repetição da forma capital, que está no fundo e no horizonte de toda a coisa. Nessa vertente, Estado e máfia se confundem e os hiperpoderosos empresários da técnica do tempo, aquela sobre a qual Benjamin alertava que precisávamos retirar da mão dos fascistas, buscam controlar o Estado e rechaçar as leis, o estado de direito: eles próprios criam a lei do próprio interesse. E essa é a lógica do capitalismo globalizado final, de megaempresários – Trumps, Musks, Bezos – dizendo o que vale, ou não, para todo outro, simplesmente fazendo dos Estados aquilo que fazem em seus próprios negócios. E o Brasil, como país e nação, foi parar em uma posição de objetificação e rebaixamento, desejada e conduzida pela interferência dos EUA, que elegeu nosso país como novo alvo, novo outro a ser submetido inteiramente ao desejo senhoril, e de seus marchadores policialescos bolsonaristas/trumpistas.
A mentira, esta referida de fato a esses momentos em que o poder se desloca inteiramente dos contratos sociais, usa a falsificação geral para se diferenciar e se repor, operando astutamente um conjunto de contradições e paradoxos presentes nas relações sociais concretas, para se tornar poder total. A mentira é a própria produção do poder total. Estamos vendo isso no Brasil hoje, vindo de fora, como vimos ontem, vindo de dentro. Os EUA estão mentindo em todas as linhas sobre o Brasil, sobre termos vantagens comerciais, por exemplo, quando isso não ocorre. Mas isso não interessa, pois de fato é uma falsificação da realidade para transformá-la na base indeterminada de uma ação concreta de poder, de violência e de determinação de inferioridade e perdas. O que de fato interessa.
A mentira é esse grande ato da transfiguração do campo liberal, que teria alguma contratação e algum reconhecimento do outro, para nenhuma contratação. E isso é uma tendência imanente, real, da própria acumulação de poder e de interesse reificado, da vida sobre a forma capital. Tem correspondência, em termos do mundo da rua e da sociedade como vida, com os grupos fascistas simplesmente criminosos, e sua extorsão e extração de valores sem limite, de milicianos, de capangas matadores de índios, de cortadores de árvores, de policiais do extermínio de jovens negros nas periferias, que estão, aparentemente, fora da lei. No andar de cima há os milicianos do poder, os imperialistas, com três ou quatro donos das redes sociais mundiais, como Elon Musk e Mark Zuckerberg, que controlam privadamente a produção do espaço público mundial, um escândalo normalizado na democracia da privatização de tudo, e que se aliam a um sistema imperialista e policial geral, necessário à proteção de seus interesses particulares.
IHU – O cinema e a propaganda ocuparam um papel fundamental para referendar os intentos de Mussolini e Hitler. Hoje, de que forma esses recursos e outros, como as redes sociais e seus algoritmos, vêm sendo utilizados pelos governantes de extrema-direita?
Tales Ab’saber – Em sua concepção das coisas, os EUA podem fazer com o mundo o que bem entenderem. Assim, os fascistas podem também podem agir em suas redes como bem quiserem. Essas mídias estão gerando uma guerra de todos contra todos, em que só vence quem tem a última bomba atômica, o último poder da violência a determinar a condição de todos os demais. Essas são algumas das linhas de força técnicas e psicopolíticas, ideológico políticas, da fascistização contemporânea, em que aquela técnica anunciada por Benjamin nos anos 1920 há muito não é mais o cinema, mas é o Facebook, o Instagram e o TikTok.
A partir desse cenário, temos um novo mundo de problemas, pois o sujeito moderno das mônadas da subjetividade autorregulada pela sua razão, em crise há pelo menos cem anos, nesse novo estado de luta de todos contra todos que vai dissolvendo os contratos e os direitos, é agora o enunciador satisfeito da falsificação em massa. Ele é sugado para dentro do território fascista por dois princípios. Um deles é dando poder para fascistas, e golpistas imperialistas internacionais, no sentido antigo freudiano da ideia, oferecendo todo poder ao líder do grupo, de forma pessoal, excitada e imediata. O outro é aderir totalmente à cultura como mero fetichismo da mercadoria, por exemplo dos vendedores de pirâmides de golpes nas redes, para serem ricos como o rico das imagens, e sempre através das imagens.
Esse é o fascismo da mercadoria. Na fantasia das massas, imensa propaganda autorrealizada na imagem, o indivíduo que pode ficar rico, mas não o fica, é porque não sabe se valer do uso das oportunidades de lesar alguém na indústria cultural das redes sociais e plataformas. Tudo a partir da sedução espetacular de uma própria imagem. Se os Estados neofascistas lesam outros territórios e países diretamente, os coachs, influencers e vendedores de qualquer coisa lesam a qualquer outro na política geral da própria valorização como imagem. A indústria mundial do golpe também é um elogio generalizado à incitação do fetichismo da mercadoria, sua indústria onipotente da imagem, base e fundamento de uma cultura comum do golpe. O ídolo espetacular da coisa toda, o super-homem Elon Musk, pode então publicar em sua rede social, sem nenhuma vergonha na sua cara maquiada para o show mundial, a sua única verdade: “eu dou o golpe onde eu quiser”.
IHU – Como podemos compreender a ressurgência dos novos autoritarismos, em especial aqueles de extrema-direita, como vemos ocorrer nos EUA, em Israel, na Alemanha e no Brasil? Há uma linha de força em comum entre esse recrudescimento?
Tales Ab’saber – Penso que há, sim, um processo de neofascismo global. Em vários contextos históricos, regionais e nacionais diferentes homens e problemas, emerge a solução simples do líder autoritário, autorizado à produção e conversão da política em violência direta. O fascista é aquele que desconhece tanto a linguagem quanto a contratação social, a ideia de que reconhecer o outro faz parte da política. Ele não tem esse limite. Isso me parece inerente à própria condição da onipotência básica capitalista, que pode se tornar fascista a qualquer momento, o megaempresário que dá o golpe onde quiser. O que não é uma novidade e que assistimos mais uma vez nesse momento histórico.
Em horas de crise de reprodução do capital, como a que ocorre com os EUA, que estão em crise de produtividade e lucratividade que se arrasta desde os anos 2000, com o ultrapassamento pela produtividade e a expansão chinesa, surge a solução da acumulação de capital pela guerra direta e pela submissão pela violência dessublimada de algum outro, qualquer um disponível para o assalto. A China completou o ciclo industrial do seu capital e tem condições de gerar a sua própria técnica, o que aparece tanto na produtividade do mercado quanto na cultura. O TikTok, que é um grande sucesso mundial de indústria cultural, que confunde definitivamente cidadão com espetáculo, é uma invenção chinesa. Os EUA se dão conta de que estão sendo ultrapassados na técnica, na ciência e na hegemonia cultural. O que lhes resta é a guerra, a intervenção arbitrária, que é e sempre foi um instrumento do capital imperial e colonial.
Os EUA reorganizam sua economia “na porrada”, pois foram ultrapassados por um grande deslocamento de centro de poder no mundo do próprio capitalismo global. Nesse contexto, vislumbram em países menores como o Brasil uma oportunidade de submissão e recuperação de hegemonia, custe o que custar. É quando ocorre a articulação dos fascistas brasileiros, que são vendedores, aos fascistas de lá, imperiais, que querem submeter o país colonialmente. “Nós batemos continência para vocês, nos submetemos a um interventor colonial”: tal é o modus operandi final do bolsonarismo, quebrando a nossa recente tradição democrática que nos dá a leitura histórica de nossas mazelas.
Os bolsonaristas estão propondo mais uma vez um novo “transe”, no sentido de Glauber Rocha, a partir do qual se quebra o processo de integração nacional, à revelia do que vai acontecer com nossas vidas. Nessa lógica neofascista, o Supremo Tribunal Federal (STF), que os contém, é uma anomalia. É uma situação grave e delicada. Há interesses geopolíticos em se submeter a realidades e articulá-las ao neofascismo, que, em cada contexto, é um eufemismo contemporâneo, porque justamente nasce de dentro da própria crise do capitalismo liberal.
IHU – Nesse sentido, qual é a peculiaridade do trumpismo? Em que sentido seu modus operandi político inspira e apoia as outras expressões neofascistas?
Tales Ab’saber – Não se fala em neofascismo abertamente: o eufemismo fala em autocratas, para que não se diga ditadores. Autocratas são ditadores, e o que Trump está construindo nos EUA é uma ditadura, na cara de todo mundo: polícias perseguindo pessoas nas ruas, universidades censuradas, ataques diretos a órgãos de imprensa e juízes, militarização das relações sociais, tudo em nome da democracia, em falso, que agora é o que o grupo trumpista diz que é, ou seja, o jogo da conversão da lei em força direta. Aí reside a grande mentira.
No Brasil foi julgado um grupo de golpistas, vendedor do país para a submissão imperial. Na linha de raciocínio da grande mentira via trumpismo e bolsonarismo, o presidente do STF, Alexandre de Moraes, é um juiz contra os direitos humanos... De fato, o direito deles determinarem o que é o humano, à sua imagem e desejo, privativo. As grandes mentiras como cultura nas redes justificam a violência direta sob essa lógica. Ora, o bolsonarismo não foi sempre isso? Uma massa de mentira para um governo que faz o que bem entender?
Penso que os governos Trump e Bolsonaro têm a característica particular de serem americanos, ou seja, foram construídos a partir de elites – evidentemente diferentes entre as duas nações –, mas ambas sobre a tradição escravocrata mais radical, sobre esse outro fundo fascista ocidental, calcado na incompletude de uma sociedade dos direitos jamais assegurados, originada na importação dos corpos e no chicote, visando a produção endereçada ao mercado mundial.
Os pretos dos EUA nunca foram plenamente integrados, somente à máquina de exploração da pobreza norte-americana, que é triste, e sofrem uma perseguição racista meio permanente. Os pobres do Brasil, pretos, pardos, indígenas, sofrem a maior exploração concebível e permanente, e são sempre em grande parte excluídos da renda nacional. Os europeus, diferentemente, têm um nacionalismo identitário e popular, seus fascismos trabalham com o chauvinismo e o identitarismo nacional, como no caso dos italianos, alemães, franceses, poloneses, húngaros. Os americanos também têm essa lógica, de um privilégio de identidade. Mas no Brasil isso é pífio, porque não se consegue uma unidade imaginária do “verdadeiro povo brasileiro”, embora se consiga uma unidade psíquica no líder fascista (Freud explica...), pois nossa história é a da construção de uma sociedade étnico-racial multicultural, que é exatamente a nossa riqueza e nossa catástrofe originária. Essas identidades muito fortes fascistas no Brasil tendem a convergir com os bolsonaristas batendo continência na porta dos quartéis, unidos por uma ideia vazia de Exército salvador da pátria, o que já se tornou ridículo.
IHU – O que é esse “fascismo comum” latente no Brasil e como ele nos ajuda a contextualizar a ascensão da extrema-direita em nosso país? Qual é o papel da ditadura militar nesse fenômeno, mas também de políticos como Temer e Bolsonaro?
Tales Ab’saber – Podemos compreender a ideia do fascismo comum sob várias perspectivas. Pensando no processo da democratização dos anos 1990 para cá, é preciso lembrar que no Brasil se operou sociologicamente uma fascistização barata da cultura, deixada isolada, dissociada e intocada pela cultura geral “democrática”: a cultura popular de massas policialesca, do rádio e da TV cotidianos, exploradora das mazelas da pobreza e da miséria com a solução simples do extermínio normalizado de pobres e negros (escravos nunca têm direitos...), abertamente em guerra com a ideia dos direitos humanos gerais.
Some-se a isso o fato de que a democratização brasileira e sua engenharia institucional foram realizadas em conjunto com o processo controlado da abertura, levado mesmo pela ditadura militar de 1964-1984. Não houve uma verdadeira ruptura com o mundo da ditadura e sua violência direta como fundamento da vida social – muito pelo contrário. Realizou-se um pacto social de conciliação com as forças autoritárias daquele período, poupando à justiça os torturadores e assassinos, de modo que não se instaurou um verdadeiro discurso social, eficaz, de direitos humanos que chegasse às polícias e aos programas populares policiais de todos os dias, de manhã e de tarde, na vida popular brasileira. Estes programas cotidianos, e seus “ratinhos” de todos os tamanhos, que dizem sistematicamente que negros pobres que cometeram crimes podem ser assassinados no Brasil. Essa voz sádica é simplesmente constante na democracia brasileira. É a voz do extermínio informal, instalado e legitimado, a pena de morte normal das polícias que matam entre 5 e 10 mil brasileiros todos os anos, com o qual a democratização brasileira nunca rompeu, nem mesmo nos governos de esquerda, que a criticou apenas de modo superficial, quando criticou.
São ambiguidades nada ambíguas, do ponto de vista fascista, como aquelas apontadas nos filmes, muito populares e de sucesso, Tropa de Elite 1 e 2, nos quais policiais têm direito à guerra e ao extermínio legítimos de pobres brasileiros. Em Tropa de Elite 2, políticos e radialistas (hoje poderíamos dizer radialistas, políticos e pastores) sustentam permanentemente uma política do extermínio, como um negócio real e lucrativo. Se observarmos os assassinatos no Brasil durante todo o período da redemocratização, desde a década de 1990, em que é sistemática a morte também perpetrada por forças policiais, as cifras vão de 40 mil a 50 mil assassinados por ano. Há variações ao longo dos anos, mas esse número do terror brasileiro não diminui. Ou seja: há um dispositivo real de violência, que tem a sua indústria, seus sujeitos e ideólogos, seus negócios, atravessando e constituindo nossa democracia, com a qual convivemos. Uma máquina de matar pobres e jovens negros no Brasil, com números equivalentes aos de uma guerra permanente, bem operada pela extrema-direita. Em 10 anos, são praticamente 500 mil pessoas assassinadas no Brasil, ao menos 50 mil mortas pelas forças policiais, em ações de exceção de Estado. Militares, policiais, pastores e radialistas de extrema-direita afirmam abertamente, todos os dias, que é aceitável gerir a sociedade brasileira nestes termos.
Este é o fundo social da presença do fascismo comum. Ligamos a TV e ouvimos todos os dias que “bandido bom é bandido morto”. Não vamos solucionar esse quadro sem virarmos essa chave. Os portadores desses discursos são chacais sociais, abutres interessados de nossa carnificina. Essa é de fato a sua indústria, o seu negócio da segurança nacional fascista. Não estão lá para acabar com o crime, muito pelo contrário. Quando a extrema-direita chega ao poder, com sua demagogia grotesca de aumentar o extermínio por segurança, tudo continua simplesmente como é. De fato, piora. Essas pessoas não pensam em uma sociedade que não seja criminosa, pois eles próprios são um duplo do crime. Vivem disso. Eles o agenciam e participam da guerra infinita que eles próprios patrocinam. Essa é nossa situação complexa contemporânea, que foi estudada em obras como A República das Milícias, de Bruno Paes Manso, e que foram pensadas na cultura, em filmes ambíguos como Tropa de Elite 1 e 2, que tanto parecem servir para os fascistas baterem palmas e tambor nas salas quanto não foram entendidos pelo pensamento crítico na dimensão de revelação dessa dinâmica real do fascismo comum.
Em outro nível, o fascismo comum se perde no tempo da formação de um país de origem colonial, extrativista e escravista. Há um vínculo deste passado extremo com nosso presente de extermínio normalizado, que trabalho no livro O soldado antropofágico, escravidão e não pensamento no Brasil. O fundo escravista, operativo desde sempre, impede que a dimensão crítica e democrática totalize o Brasil. Esse é o fascismo que se espraia pela vida social desde as origens nacionais, metamorfoseando-se. Para os pobres há tiros. Para os ricos, as leis e o Estado de direito valem. A novidade atual são os grupos neofascistas querendo destruir ainda mais o que já é socialmente destrutivo: querendo destruir o próprio Estado de direito.
IHU – Retomando os ataques terroristas do 8 de janeiro aos Três Poderes, qual é o papel do cultivo do ódio e da violência como categorias políticas que criam subjetividades?
Tales Ab’saber – Uma das características que podemos falar ao nos referirmos ao fascismo é a conversão da política em ódio e à cultura desse afeto, paranoico e ativo. Aí voltamos a Freud, ao seu Mal-estar na Civilização. O ódio se retroalimenta. Pensemos em nossa civilização aparentemente democrática, que convive com 50 mil assassinatos anuais e a polícia assassina como algo normal. Não sentir o mal-estar, o dispositivo psíquico normal que operamos, é participar desse extermínio. Percebemos que nossa dita democracia é também a barbárie, um dos problemas que Freud aborda naquele livro, no qual afirma que não sabemos se as forças culturais, de criação e de reconhecimento mútuo vencerão o processo civilizatório, ou se as forças destrutivas e odiosas, que têm vida própria e se autogerem, vencerão. Freud escreve isso entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial, em 1928. Trata-se de algo impressionantemente atual.
De 1920, quando escrevia Psicologia das Massas e Análise do Eu, até 1928, com Mal-estar na Civilização, Freud sabia claramente que a Europa se dirigia para a catástrofe. Provocativamente, ele pergunta no Mal-estar: “quem os bolcheviques iriam matar após terem exterminado com o último burguês?” O que ele quer dizer é que o ódio não cessa de se mover e insistir, controlando e determinando processos que se disfarçam como justos e racionais. E, mais uma vez, acertou em cheio. Na verdade, Freud era um pensador político, que propunha outra política, que pudesse criticamente se livrar do automatismo impensável do ódio, ou do fascismo comum. Terminado o extermínio das estruturas sociológicas burguesas na URSS, começou o ódio de extermínio dos próprios bolcheviques pelo estalinismo – totalitário e antidemocrático – interditando qualquer possibilidade de uma revolução verdadeira.
Freud sabia da existência de um veneno automático e infinito que é a formalização do ódio. A sua grande questão é como saímos dele. Trata-se de uma questão filosófica clássica, que vem da época da instauração da democracia grega e da fundação da própria filosofia: como sair da espiral produtiva, destrutiva, do ódio? O fascismo operacionaliza a lógica do ódio, controla politicamente a sua forma – paranoia, liberdade de destruição do outro, descompromisso com a razão, submissão ao líder que nomeia o real e a verdade a partir do próprio capricho – de forma muito eficaz. Trata-se de evocar, a qualquer momento, esse mundo humano arcaico, para a produção de poder. Isto funciona ainda mais quando o capitalismo mantém a competitividade generalizada, a lógica do desprezo social própria da sociedade de classes, os átomos sociais do ódio em movimento, a regressão geral da imagem como vida, como se estes elementos tivessem sido pacificados pela democracia liberal. Só que não o foram.
IHU – Ainda pensando no ódio e na violência como categorias políticas, como analisa o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a misoginia que costuma estar presente nas pautas de extrema-direita?
Tales Ab’saber – Recordo-me da Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, em que se demonstrava que falar de fascismo ou extrema-direita era falar sobre capitalismo. Existe uma ligação direta entre o capitalismo e a fascistização da sociedade. No ensaio Elementos do Antissemitismo, esses filósofos analisam como este fenômeno estava na ordem do dia na Europa, capaz de exterminar 6 milhões de pessoas em indústrias científicas da desumanização. Como o ódio ao outro se enraíza em formações sociais contemporâneas, sempre reafirmando o que pode ser exterminando: o judeu, o preto, o índio, a mulher em uma relação patriarcal, machista, o palestino. Quando lemos esse estudo, percebemos que o antissemitismo, na concepção de Adorno e Horkheimer, é uma metáfora concreta para todas essas formas de produção como rebaixamento direto de algum outro, “não eu”, para a própria afirmação do poder, que existe quando este sadismo primário se realiza. Os filósofos não falam apenas do judeu, mas do racismo, do machismo, do extermínio colonial. Eles sabiam bem que o processo do capitalismo e suas ilusões ideológicas mantinham vivas as minas de energia do ódio. É uma modalidade sublimada do ódio que em uma sociedade de posse privada de tudo, o trabalho social possa ser apropriado de forma radicalmente desigual. Que essa violência seja a própria normalidade das coisas sociais. A partir daí, materialmente, como dizia Marx, se gera a fantasia da superioridade e da inferioridade também no cotidiano, nas relações de poder de todos os dias, de todos os mercados, mercadinhos, e sistemas financeiros globais.
No caso brasileiro, país que tem longa formação de uma população de ex-escravizados, e seus senhores “absolutos”, da vida da morte e do sadismo, é “preciso” um extermínio permanente, afirmando que um dia a democracia irá “chegar lá”, mas isso parece não ocorrer. Chamo a atenção para os Elementos do Antissemitismo, que merece ser relido nas chaves do nosso tempo, que trata das condições de possibilidade do rebaixamento, da exploração e do extermínio. Pode se tratar de um rebaixamento simples, como vemos na mídia, que não aceita abertamente o extermínio, mas que de forma implícita referenda atos bárbaros, como os da polícia do governo de São Paulo.
IHU – O Judiciário brasileiro tem dado respostas firmes às investidas neofascistas em nosso país. Como percebe o papel deste poder na garantia do Estado democrático de direito, bem como do Executivo, com o governo de Lula?
Tales Ab’saber – Como disse Joaquim Nabuco no fim do século XIX, sendo o país escravista que era, o Brasil seria o último país do universo se não tivesse um movimento abolicionista. A posição periférica de nosso país no processo desigual do capitalismo mundial e a história de formação nacional com um povo escravizado gera nosso terror, que é de origem europeia (fomos nós que recebemos a herança da formação colonial), que até hoje opera nas plantations extrativistas do agronegócio brasileiro. Essa nossa formação, em descompasso com o processo da industrialização liberal central, gera o espaço expansivo do nosso progressismo. Temos que fugir de nossa origem e instaurar uma modernidade finalmente democrática. E precisamos nos aproximar da produtividade social e técnica do capitalismo central, com o qual estamos sempre em dívida. Não estamos nem perto do que a China conseguiu, de completar nacionalmente os modos técnicos do capitalismo central, e não periférico. Assim, precisamos sempre cultivar um progressismo brasileiro, que é escapar da escravidão originária e atualizar o Brasil técnica e produtivamente, com o foco ideológico em uma outra história, que é da Europa e dos EUA.
O progressismo é inevitável nestas condições. É um sintoma duplicado de nossa condição: temos que produzir alguma coisa que ultrapasse nossos pactos originais de terror e exploração total da vida e da morte, de um povo importado para cá para ser escravizado. No caso do nosso pensamento sobre tudo isso, Machado de Assis fez uma crítica civilizacional, a partir do Brasil, parecida com a de Freud. Essa história do progressismo brasileiro vem de longe, resultando na industrialização e democratização do fim do século XX, que se completa com a globalização da economia no século XXI, e forma nosso universo de entendimento da história e do futuro: somos necessariamente progressistas, democratizantes no Brasil. Um pouco da nossa tragédia é perceber que as forças reacionárias, da catástrofe, escravistas originais, não são ultrapassadas pela fantasia universal do progresso modernizante. Seguimos convivendo com essas forças e negociamos sempre com elas. Nesse sentido, Lula é o maior negociador do mundo: um progressista, um democrata, certamente, em um país de vocação reacionária, no sentido forte e ruinoso do termo. Desde que o lulopetismo chegou ao Estado, instaurou-se uma convivência, pois democraticamente o presidente aceita a presença dessas forças... As mesmas que, a qualquer ponto da história, como se não passassem, partem para cima dele e de todos.
Dito isso, temos a teoria da civilização, de Freud, com as forças de vida, os afetos e o pensamento, dialetizados pela psicanálise, com seus desejos produtivos. No Brasil, ao mesmo tempo que segue operativa essa máquina de destruição, que é o impasse que reflete a situação mundial do capitalismo, somos também um sonho, um lugar da utopia, da criação da vida em meio ao impasse. Efetivamente, é a presença da cultura popular brasileira, o mundo de onde brota a forma “samba”, civilização erótica especial, de conhecimento popular por excelência, moderna e que realiza como afeto e performance a própria “democracia”. Uma democracia da experiência, pré-política. No samba todo mundo se encontra. E vive. Na sociedade material, e na ordem do Estado, não. Essas são ideias que discuto em O Soldado Antropofágico, Escravidão e não Pensamento no Brasil.
Ao mesmo tempo, esse outro espaço afetivo formal, que deu no samba e no modernismo populista e desejante brasileiro, resultou na ideia de um brasileiro tolerante, que existe e convive com os fatos concretos do fascismo comum. Concomitantemente ao país que extermina e é racista, também somos o país do sonho democrático, desde a expressão estrangeira do povo pobre e sua própria esperança. E é o mesmo país onde há um impulso golpista, autoritário e antissocial, ligado às polícias, ao Exército e aos gestores do dinheiro da Faria Lima. O que está em jogo é se a estrutura institucional de hoje tem força social suficiente para barrar essa velha tradição do desprezo radical por todo outro, o que diz respeito ao grau de desenvolvimento da sociedade.
O julgamento no STF mostrou que não é mais possível que malucos brasileiros digam que irão dominar tudo, na velha tradição messiânica do Exército brasileiro e na tradição antissocial de nossas origens no nada, escravista. O STF que, do ponto de vista do fascista pode ser fechado “com um cabo e um jipe”, não se submeteu e foi sustentado por forças sociais contemporâneas que tentam, ainda, vencer o arcaico. É o nosso progressismo eterno. Então, os fascistas locais pedem ajuda aos EUA, oferecendo o país ao seu imperialismo, para intervirem no Brasil. O grande mundo do capital mundial passa a julgar o nosso destino ativamente. Por aí já vemos o nível de loucura na dimensão social miliciana, mafiosa e golpista, articulada ao imperialismo e à submissão nacional colonialista, procurando reproduzir mais uma vez uma velha estrutura já conhecida.
IHU – Qual é a sua análise e quais as suas expectativas para o pleito brasileiro de 2026 tendo o atual cenário político em consideração?
Tales Ab’saber – O processo eleitoral brasileiro para o ano que vem está em aberto. Isso não deixa de ser interessante e excitante, mas é também muito perigoso. Não temos como saber onde a escalada imperialista, trumpista e bolsonarista vai chegar. Não sabemos ainda como o governo Trump irá se comprometer em intervir nas eleições brasileiras. A grande questão hoje do governo brasileiro é retirar Trump do seu pacto com o bolsonarismo. De toda forma, os EUA já criaram a narrativa, falsificação, junto ao bolsonarismo, de que o Brasil é uma ditadura, que persegue os pobres bolsonaristas, estes criminosos golpistas, o que autoriza a guerra comercial. Em 2018, o bolsonarismo já fez uma guerra interna, articulado ao antipetismo lavajatista.
Por outro lado, esta é a grande oportunidade para um redesenho da direita brasileira, para uma parte dela se retirar das relações degradantes com o bolsonarismo, reconfigurando-se em direita liberal, apartando-se da direita neofascista. Como se sabe, a direita brasileira também está capturada e sequestrada pelo bolsonarismo. Esse é o seu impasse hoje.
À esquerda, temos a nossa dificuldade de combater a tempestade de mentiras públicas do neofascismo, para a qual não temos instrumentos de enfrentamento até hoje, passados dez anos da ascensão desse processo de controle psicopolítico pelo mais baixo e pela falsificação de tudo nas redes. E a esquerda também é responsável por essa falta de reação, por não ter criado instrumentos e por continuarmos na dependência um tanto patética do líder carismático, que nos salvará sozinho da direita da catástrofe. Também à esquerda uma certa infantilização da política é a norma. Essa foi uma invenção do PT, combatendo o fascismo comum com uma democracia comum, mínima. O PT inventou a sua gestão “racional” de massas, que é a gestão do capitalismo brasileiro com todas estas suas mazelas, das quais Lula eternamente nos salvará. Até o dia que o mito falhar, como já falhou. Nesse quadro de clivagens, com forças exteriores ao próprio país agindo diretamente, de manipulação psicopolítica do ódio aberta e de guerra neofascista à democracia, é impossível saber o que teremos em 2026.
(1) Sigmund Freud (1856-1939): médico neurologista e importante psicanalista austríaco. Reconhecido como o fundador da psicanálise, tornou-se a figura mais influente da história da psicologia. A influência de Freud pode ser observada ainda em diversos campos do conhecimento e na cultura popular, inclusive no uso cotidiano de palavras que se tornaram recorrentes, mas que surgiram a partir de suas teorias. Expressões como “neurose”, “repressões”, “projeções” popularizaram-se a partir de seus escritos.
(2) Theodor Adorno (1903-1969): filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão. É um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, juntamente com Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, entre outros. Estudou filosofia, sociologia, psicologia e música na Universidade de Frankfurt, mudando-se para Viena aos 22 anos para prosseguir seus estudos em composição com Alban Berg. É amplamente considerado um dos principais pensadores do século XX em estética e filosofia. Como crítico do fascismo e do que ele chamou de indústria cultural, seus escritos – como Dialética do Esclarecimento (1947), Minima Moralia (1951) e Dialética Negativa (1966) – influenciaram fortemente a nova esquerda europeia.
(3) Max Horkheimer (1895-1973): filósofo e sociólogo alemão, famoso por seu trabalho em teoria crítica como membro da Escola de Frankfurt de pesquisa social. Em suas obras, abordou o autoritarismo, o militarismo, a ruptura econômica, a crise ambiental e a pobreza da cultura de massa, usando a filosofia da história como estrutura. Isso se tornou o fundamento da teoria crítica. Seus trabalhos mais importantes incluem Eclipse da razão (1947), Entre filosofia e ciências sociais (1930-1938) e, em colaboração com Theodor Adorno, Dialética do Esclarecimento (1947). Por meio da Escola de Frankfurt, Horkheimer planejou, apoiou e possibilitou outros trabalhos significativos.
(4) Herbert Marcuse (1898-1979): sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano, pertencente à Escola de Frankfurt. Em suas obras, criticou o capitalismo, a tecnologia moderna, o materialismo histórico e a cultura do entretenimento, argumentando que estes representam novas formas de controle social. Seus trabalhos mais conhecidos são Eros e Civilização (1955) e O Homem Unidimensional (1964).
(5) Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à teoria crítica, foi fortemente inspirado por autores marxistas, como Bertolt Brecht, e pelo místico judaico Gershom Scholem. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se: A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1936), Teses sobre o Conceito de História (1940) e a monumental e inacabada Paris, Capital do século XIX.