12 Abril 2024
“Temos como corolário que a matriz escravista, as ditaduras militares, o bolsonarismo e o neofascismo fazem parte de um mesmo eixo que atravessa a história brasileira e que ressurge permanentemente para lembrar aos seus habitantes e às suas instituições que os apoios democráticos deste país são demasiado instáveis e frágeis”. A reflexão é de Fernando de la Cuadra, publicada originalmente no seu blog Socialismo y Democracia e reproduzida por Resumen Latinoamericano, 11-04-2024. A tradução é do Cepat.
Fernando de la Cuadra é doutor em Ciências Sociais, editor do blog Socialismo y Democracia e autor do livro De Dilma a Bolsonaro: itinerario de la tragedia sociopolítica brasileña (Editora RIL, 2021).
O fascismo ainda está entre nós, às vezes à paisana.
Umberto Eco
O documentário Extremistas.br ganhou recentemente o Prêmio Vaclav Havel de melhor filme em defesa dos direitos humanos, concedido pelo One World Film Festival, da República Tcheca. O prêmio recebido por este trabalho documental trouxe de volta ao primeiro plano da discussão um tema que continua intrigando pesquisadores, acadêmicos, políticos, jornalistas e interessados em geral, que questionam e analisam o ressurgimento da extrema-direita no Brasil e, claro, no resto do mundo.
Esta série composta por oito episódios mostra como o extremismo de direita tomou conta de uma parcela significativa da população brasileira e as causas que levaram milhares de cidadãos a aderir e difundir os discursos totalitários de ideólogos radicais inspirados na ideologia nazifascista: ataques à democracia, autoritarismo e despotismo; nacionalismo exacerbado e exaltação do ódio e da violência em nome de uma suposta superioridade nacional, culto às tradições perdidas e construção de mitos sobre a grandeza do passado; animosidade para com os estrangeiros, desprezo pelas minorias e combate veemente à diversidade, desconfiança em relação à cultura, à arte e à inteligência; adoração pelas armas e culto à morte; machismo e desprezo pelas mulheres, entre outras características.
Muitos destes aspectos têm origem na ideologia nazifascista que surgiu há um século na Itália e na Alemanha, embora tenham se renovado e mudado ao longo dos anos, formando algo que Robert Paxton atribui à dinâmica sócio-histórica do projeto fascista, cristalizando-se talvez naquilo que Umberto Eco chamou de “ur-fascismo” ou fascismo eterno. Esta doutrina é constituída por uma constelação de elementos deste mesmo teor e que estão presentes em movimentos com esta orientação nas sociedades contemporâneas.
Na série documental é apresentada a opinião de especialistas e estudiosos, bem como de inúmeros militantes da extrema-direita que participaram das atividades que propiciavam um golpe de Estado para impedir que o candidato eleito Lula da Silva assumisse ou permanecesse como presidente da República. Mas antes disso, a série mostra a disseminação do ódio e dos discursos antidemocráticos de inúmeros setores da população que são alimentados pelas fake news produzidas por milícias digitais, pessoas e instituições que se dedicam a difundir ataques a personalidades do mundo da política, da arte e da cultura.
Um episódio inteiro do ciclo é dedicado aos ataques realizados por influenciadores radicais contra os membros do Poder Judiciário, especialmente os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa parte da série se pode conhecer o trabalho de um mercenário digital que recebe um salário mensal para investigar a vida de diversas personalidades influentes com o objetivo de espalhar notícias falsas sobre elas e também de inventar fatos completamente implausíveis, mas que são incorporados pelos internautas como verdades indiscutíveis.
Existem dezenas de casos de histórias e relatos grosseiros espalhadas no ciberespaço, mas seria cansativo citar algumas das inúmeras mentiras que foram inventadas nos últimos anos. Estes grupos de milicianos digitais operam em total anonimato e se inspiram – provavelmente sem o saber – no conhecido teorema do sociólogo estadunidense William Thomas que dizia: “Se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais nas suas consequências”.
Depois de assistir aos diversos episódios de Extremistas.br, fica muito claro para o telespectador que o surgimento da extrema-direita e do “bolsonarismo” não representam um mero capricho da história ou um acidente no curso da história. Eles não nasceram por acaso e seus alicerces estão ancorados na história da sociedade brasileira. Neste processo de extrema direitização da sociedade, desempenham um papel central as igrejas pentecostais e seus pastores, que vêm insuflando com veemência os sentimentos e os comportamentos contrários ao progresso e à modernidade.
O fanatismo religioso, somado à ignorância e às falsas narrativas, fundem-se numa sopa reacionária que assume sem nuances a luta do bem contra o mal. O mal são os esquerdistas, os comunistas, os homossexuais e os toxicodependentes que querem acabar com a liberdade dos cidadãos de bem que devem proteger-se desta ameaça permanente. No documentário é possível ver cenas de pastores distribuindo armas entre os fiéis, ensinando-os a atirar para enfrentar inimigos ocultos que estariam à espreita para desferir o golpe final.
Estes comportamentos de pessoas comuns que vivem sob a influência de pastores inescrupulosos são estimulados pelo clima de medo em que vivem os cidadãos no mundo de hoje. Para o crítico literário britânico Terry Eagleton, o fundamentalismo não está enraizado no ódio, mas no medo. É o medo de um mundo moderno e em mudança, onde tudo está em movimento, onde a realidade é transitória e com final indefinido, onde as certezas e os pilares mais sólidos parecem ter desaparecido.
É o que, com outras palavras, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chamaria de “modernidade líquida”. Nesta modernidade líquida, os indivíduos sentem-se isolados, frágeis, desprovidos das referências que davam peso ou solidez às estruturas nas quais estávamos imersos. Os indivíduos se veem sucumbindo a um contexto de transformações aceleradas que não conseguem processar. Os valores da sociedade industrial esmaecem e o pânico da insegurança toma conta das pessoas, por isso buscam refúgio em igrejas, seitas ou qualquer entidade que lhes proporcione algum tipo de apoio ou chão firme diante de tanta incerteza.
Neste cenário, a extrema-direita alimenta-se com competência dos medos, das ansiedades e dos descontentamentos dos cidadãos, transformando essas sensações, na maioria dos casos, em sentimentos de indignação e revolta reacionária. Os problemas concretos das pessoas na busca por uma melhor qualidade de vida, por uma maior estabilidade no emprego e segurança, por melhores equipamentos e serviços sociais e um longo etc., a extrema-direita transforma-os numa convicção antissistema, contra a política e os políticos, contra os tribunais de justiça e o parlamento, fazendo com que os sujeitos direcionem a sua raiva contra as instituições democráticas e contra os inimigos invisíveis, como o comunismo, o globalismo ou as forças satânicas.
A extrema-direita diz entender os problemas e medos da população e vem apaziguar esse sofrimento psicológico, oferecendo em troca falsas soluções e impregnando com ressentimentos e virulência a frustração das pessoas. Se somarmos a isso as bases conservadoras de uma cultura escravista construída em torno do machismo, da exclusão e do desprezo pelos mais fracos, temos os ingredientes necessários para que o caldo neofascista prospere, transformando uma parte desta sociedade numa massa de manobra que alimenta as expressões mais radicais do pensamento retrógrado.
Nesse contexto, surge no Brasil a figura de Jair Bolsonaro, um ex-capitão expulso do Exército e proibido de entrar nos quartéis e nas instalações militares, um deputado medíocre e inexpressivo do baixo clero e um personagem bizarro que apoiava ditadores e torturadores. Em 2016, enquanto o Congresso Nacional votava o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o deputado Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Carlos Brilhante Ustra, renomado torturador e assassino de muitos presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985). Longe de sair preso do Congresso pelas suas apologias à tortura, Bolsonaro tornou-se o porta-voz da extrema-direita e o coronel Ustra tornou-se um herói para os grupos mais radicais que pediam insistentemente a intervenção militar.
Contudo, as origens destas expressões da extrema-direita já podem ser percebidas nas manifestações que eclodiram em junho de 2013, durante a realização da Copa das Confederações. Naquela ocasião, diante de inúmeras demandas de diversos segmentos sociais, surgiram os primeiros sinais de que um movimento de direita radical estava se incubando, com grupos levantando bandeiras com símbolos nazistas e faixas pedindo sedição. Esses grupos – com células fascistas já organizadas – exigiam a ação dos militares na perpetração de um Golpe de Estado que fechasse o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, dissolvesse os partidos políticos e, consequentemente, atacasse os inimigos do país.
Esses setores passaram a vestir a camisa verde-amarela da seleção brasileira e a se autoproclamarem “patriotas” no combate à corrupção, à decadência moral, aos políticos e ao comunismo instalado no país. O documentário mostra imagens de cursos de tiro para “cidadãos de bem” que desejam se defender das hordas de bárbaros e marginais que ameaçam suas vidas pacatas e cristãs. Atiram em alvos que fingem ser pessoas que devem ser eliminadas para proteger Deus, a pátria, a família e a propriedade.
Quem realmente lucrou com essa política de armamento da população que o governo Bolsonaro incentivou foram os fabricantes e comerciantes de armas e também as academias de tiro. Com efeito, durante o governo do ex-capitão, entre 2019 e 2022, foram registradas mais de um milhão de armas depois de o executivo ter liberalizado o porte e uso de armas de fogo. De acordo com dados levantados pelo Instituto Sou da Paz por meio da Lei de Acesso à Informação, no total, quase um milhão e meio de novas armas entraram em circulação nesse período de quatro anos.
Somente em 2022 foram registradas mais de 550 mil armas, das quais 432 mil pertenciam aos Clubes de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), que proliferaram enormemente durante aquela gestão. As restantes armas foram registradas por cidadãos comuns para defesa pessoal, principalmente membros das classes mais abastadas que aderiram a este discurso de ressentimento e perigo iminente disseminado pela extrema-direita.
Por esta razão, encontramo-nos diante de uma multiplicidade de fascismos, cada um expressando a dinâmica histórica e o contexto em que emerge. O fascismo no Brasil tem antecedentes em organizações com raízes profundas e veia autoritária que surgiram na década de 1930 e se fundiram em torno do movimento da Ação Integralista Brasileira liderado pelo Plínio Salgado, que se anunciava como um movimento ditatorial, conservador e cristão.
O governo de Getúlio Vargas, por sua vez, também reúne um número significativo de características que certamente poderiam aproximá-lo do receituário fascista. Como delineamos em linhas anteriores, a expressão atual do fascismo à brasileira chama-se bolsonarismo e resulta de uma síntese de múltiplas experiências e visões sobre o país, que inclui desde os militares nostálgicos da ditadura militar, passando pelos monarquistas que não perdem a esperança de recuperar o trono, ou por grupos pentecostais da teologia da prosperidade ou por milicianos que controlam extensos territórios nas principais capitais ou por madeireiros e pecuaristas que desejam continuar depredando os biomas sem qualquer tipo de controle estatal ou por empresários conservadores que têm pavor de perder os seus lucros e privilégios numa sociedade que caminhava cada vez mais para políticas mais inclusivas, justas e democratizantes.
Em síntese, temos como corolário que a matriz escravista, as ditaduras militares, o bolsonarismo e o neofascismo fazem parte de um mesmo eixo que atravessa a história brasileira e que ressurge permanentemente para lembrar aos seus habitantes e às suas instituições que os apoios democráticos deste país são demasiado instáveis e frágeis.
Pode-se chegar a essas conclusões ao assistir ao documentário Extremistas.br, uma imersão necessária para pensar os destinos deste país preso à sua história e a uma extrema-direita cavernosa que cooptou ou anulou outros setores da direita tradicional e das elites do poder, para promover e consolidar seu projeto de violência, preconceito e autoritarismo sobre o povo brasileiro.
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Genealogia e bases do neofascismo brasileiro. Artigo de Fernando de La Cuadra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU