30 Janeiro 2023
"Estamos diante da formação de algo muito maior que o bolsonarismo — é a emergência de um grande movimento social de massas de corte fascista", afirma Isadora de Andrade Guerreiro, docente e pós doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), em artigo publicado por Passa Palavra, 16-01-2023.
Com este texto, gostaria de deixar uma hipótese sobre a depredação das sedes dos três poderes em Brasília no último dia 8 de janeiro: tais eventos estariam marcando o fim de um lugar histórico do bolsonarismo, entendido como um processo de transição, para a continuidade, em outros termos, do desenvolvimento de um movimento de corte fascista mais amplo do que foi construído até aqui pelos seguidores do ex-presidente. Vou tentar falar a respeito tendo em vista vários textos que já publiquei por aqui, indicando que o terreno está movediço nos territórios populares há algum tempo – e, portanto, o bolsonarismo não é um raio em céu limpo, mas tem raízes sociais, que não desaparecem com a mudança de governo.
Digo isso, pois o bolsonarismo, ligado à figura do ex-presidente, foi até agora um processo ligado à institucionalidade, ou pelo menos uma disputa com ela, uma tentativa de “formalização” de certas práticas (proprietárias) que antes poderiam ser criminalizadas – ou seja, uma disputa da fronteira da legalidade, que está sendo pressionada por cima (pelas finanças) e por baixo (o mundo popular) de maneira cada vez mais tensa. Ainda que Bolsonaro se colocasse como outsider, todo o seu papel estava ligado a uma vida no parlamento. Sua prática política estava ligada à articulação do xadrez dos poderes institucionais em relação permanente com a construção de uma base popular, empresarial e militar. Bolsonaro foi expressão institucional, e determinada historicamente, de forças sociais que estão se organizando num mosaico mais amplo e que parecem agora passar para um novo momento, no qual o lugar do bolsonarismo vai se alterar.
A depredação das sedes dos três poderes em Brasília foi – para além da manifestação política contra o processo eleitoral e pela intervenção militar – uma catarse política-messiânica de profanação (nas palavras de Jonas Medeiros) à institucionalidade, indicando, inclusive esteticamente, seu esgotamento (nas palavras de Juliana Antunes). Como se o afastamento do ex-presidente das redes sociais desde as eleições, inclusive com a retirada da sua figura da pauta dos acampamentos dos quartéis, fosse depurando seu papel na continuidade da construção do movimento social de massas de corte fascista. Diminuiu sua centralidade e o ajustando para outro lugar, ainda não muito claro – talvez de articulação internacional, uma característica importante do neofascismo proporcionada por meios de comunicação impensáveis há um século; ou ainda uma casta política de “abridores de porteiras” sempre útil para “boiadas” que vão cada vez mais precisar passar para tornar Lula 3 minimamente factível.
Essa hipótese de ocaso do bolsonarismo se encontra também com a de Rodrigo Nunes, para quem, por um lado, a ação em Brasília foi negativa do ponto de vista político-institucional, queimando apoiadores do ex-presidente e afastando de sua herança aqueles que têm cargos atualmente; enquanto do ponto de vista social trata-se de enorme demonstração de força, além de se constituir diretamente como processo organizativo e de pertencimento a uma causa.
Do lado do progressismo, institucionalmente Lula 3 inicia seu ciclo de governo com uma senhora batata quente nas mãos – como lidar com as forças armadas com claros sinais de insubordinação? –, tendo que colocar à prova máxima, talvez impossível, seus dons negociadores entre ser condutor da repressão revanchista e “os limites da lei”, ou seja, conduzir uma democracia em frangalhos. Já no âmbito social, vemos uma esquerda que, há muito tempo, se acomodou no papel de gestora da barbárie, cada vez mais articulada com benfeitores financeiros que lhe proporcionará moradia, educação, auxílios, aposentadoria, capital de giro na produção e, em breve, quem sabe até a tão desejada gratuidade da tarifa do transporte público. Da mesma forma que Lula 3, tal gestão talvez esteja num limite histórico entre proporcionar direitos e agraciar a fome extrativista de seus benfeitores.
Do lado da extrema-direita, os limites parecem cair um a um. Derrubam antenas de transmissão de energia – um feito que exige, no limite, risco à própria vida, disposição a ir à guerra. Lembrei-me de uma cena no filme O Poderoso Chefão, na qual Michael Corleone chega à Cuba em meio à revolução e presencia um manifestante ser morto pela polícia à queima roupa, sem recuar. Ao chegar à sua reunião de negócios, quando comenta o caso para dizer que as coisas estão indo mal na ilha, seu interlocutor minimiza, dizendo ser mais uma revolta popular normal. Michael então diz algo como “não é normal uma pessoa se colocar daquela maneira frente à morte, além de muitos outros junto com ele. Algo de muito grande está acontecendo sim”, e eu acrescentaria: e está fora do (nosso) controle institucional.
Não conseguir ler os acontecimentos para além dos seus significados – e instrumentos – políticos-institucionais indica certa miopia congênita do progressismo. É não ter olhos justamente para o que interessa: a emergência de um grande movimento social de massas, que nasce da barbárie de territórios cada vez mais geridos pela violência direta de uma normatividade que passa longe da lógica dos direitos sociais, e está muito mais arraigada aos modos morais de negociação mercantil – sendo os próprios corpos mercadorias que proporcionam rendimentos, num processo não de primitivismo regressivo, mas sim de desenvolvimento da lógica do capital.
Nesse sentido, o desenvolvimento da forma-jurídica própria ao capital – que parte da premissa do direito de propriedade e sua derivação contratual – tem levado a uma exacerbação das lógicas mercantis para dentro de territórios populares antes atravessados por traços de solidariedade e auto-organização. Característica essa que deu ensejo à formação de grandes organizações de massa como o PT, o MST e a CUT, além de muitos movimentos populares ligados aos direitos sociais. A nova institucionalidade pós-ditadura nasce desse caldo. E o que vemos agora é novamente a formação de um caldo social, com grande penetração popular, porém na qual a institucionalidade própria ao direito social está bem distante, não chegando a fazer nenhum sentido prático.
Lógica esta, na qual a contratualização privada, ligada à mercantilização total da vida, ganha cada vez mais significado messiânico. A noção de “liberdade” é aquela do proprietário privado, que todos tendem a ser com a expansão da vida sem salário, empreendedora. É chocante ver, nos vídeos do último domingo, as pessoas transfiguradas gritando que estão preparadas para o que vier em nome da liberdade “do meu país” e “do comunismo” – cujo significado está longe de ser o histórico, mas sim de uma mistura de tudo aquilo que o impede de ser proprietário, dono do próprio tempo, da própria moral, da própria violência.
Estamos diante da formação de algo muito maior, portanto, do que o bolsonarismo – que não deixa de estar inscrito na ordem institucional que conhecemos, ainda que seja um processo de transição para o seu fim, na medida em que abre a porteira da “boiada”, inclusive de insubordinação das forças armadas e policiais. Parece-me a constituição de um movimento social de ampla capilaridade, muito mais capaz do que o progressismo de formar uma inevitável nova institucionalidade – na qual as organizações partidárias, as entidades da sociedade civil, os sindicatos, as entidades religiosas ganham novos significados. O bolsonarismo não foi capaz de criar um partido sequer. Mas esse movimento, de corte fascista, mostrou no último dia 8 que tem toda a capacidade de criar organizações próprias, de cunho miliciano – na medida em que desprezam qualquer institucionalidade estatal minimamente republicana, diferente do líder que se vai, cujas “quatro linhas” ainda existiam para serem ultrapassadas e, portanto, eram uma referência. A profanação das “quatro linhas” dá outro tom à coisa. Tom este que já vemos nos territórios populares atravessados – e organizados – por formas de violência que têm constituído uma prosperidade que o direito social não alcançou e também uma despossessão histórica cuja complexidade não se resolve com política habitacional.
Gabriel Feltran, há pouco mais de dez anos, ao observar a nova sociabilidade do “mundo do crime” na periferia de São Paulo, já notava a dissolução das fronteiras entre a legitimidade do sujeito trabalhador e a do bandido [1] – que poderíamos aqui ampliar para uma relação social difusa entre a legalidade e a ilegalidade, a formalidade e a informalidade. A dissolução do mundo coeso da sociedade salarial formou na periferia – através de guerras, que estão em andamento – novas formas de legitimação política e social, que criaram de fato uma esfera institucional paralela, com suas normas e tribunais próprios – na qual até mesmo a linguagem não é acessível aos não iniciados. Ali estão sendo julgadas cotidianamente o repertório e as práticas dos movimentos sociais democrático-populares, a entrada do poder público é chancelada e as atividades político-partidárias são monitoradas. A ordem são os negócios e sua prosperidade – lógica na qual se encurrala também o limite atual dos movimentos sociais progressistas, que entram em contradição flagrante. Muitos comentadores estão clamando pelo poder do “povo” contra o fascismo, mas, sinceramente, não sei muito bem onde esse “povo” do messianismo progressista se encontra atualmente.
Cibele Rizék [2] fala mais recentemente da ascensão nacional de uma “lógica miliciana” que, para além do modelo de milícias cariocas, trata-se de
“um processo de privatização e de terceirização da violência praticada e gerida nas fronteiras entre legalidades e ilegalismos de todos os tipos. Essa lógica se ancora na produção do medo e na venda de segurança, ao lado do controle, ele também privado, do acesso a serviços públicos de água, energia, transportes, televisão a cabo, internet. Uma lógica de negócios, dentre os quais o grande arranjo securitário cimentado por um conjunto de extorsões, é perfeitamente compatível com os labirintos jurídicos que redefinem práticas e fronteiras entre legalidade e ilegalidade, além de ratificar sorrateiras continuidades”.
Não se trata, portanto, de uma lógica de direitos como a institucionalidade “moderna” prometia – e nunca cumpriu, embora tenha servido eficazmente ao que veio, a saber, manter a violência extrativista e a desigualdade em todas as suas faces. Esta outra lógica tem sua força também no fato de que cumpre o que promete – e só por isso já é considerada “justa”, mesmo quando exerce violência direta [3] – e está não apenas no mundo popular, mas em toda a sociedade, à direita e à esquerda. É uma nova-velha ordem.
Há formação de uma nova institucionalidade em andamento, nascida dos escombros da Nova República – finda em 2013 –, e ela está em disputa, com um movimento neofascista no páreo. Do seu lado, o lulismo não tem mais o mesmo chão histórico em relação ao que tinha 10 anos atrás, e vai penar até encontrar algum chão – pois acredita que é só repavimentar o caminho conhecido, mas se engana redondamente. O que fazer diante de tão grandes placas tectônicas em colisão, sem nenhum programa alternativo com eco entre as classes populares?
A única boa notícia é que há fios soltos por todos os lados, deslocamentos que abrem frestas a serem abertas dentro da disputa. Será necessário um bom olhar estratégico que consiga vê-las tal qual elas são, sem ilusões, e muita criatividade para fazê-las se abrirem.
[1] Feltran, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[2] Rizék, Cibele Saliba. Um mosaico macabro: modulações contemporâneas sobre trabalho moradia e violência de Estado. In: Revista de Debate da Fase – Proposta, n.129, 2019.
[3] Exemplo que uma pesquisadora me trouxe: ao ir fazer uma entrevista num bairro periférico da Baixada Fluminense, se depara com grande confusão na rua de sua entrevistada. Um adolescente tinha acabado de ser assassinado. Durante a entrevista, o bairro é descrito como “muito tranquilo”, ao que a pesquisadora contrapõe o fato ocorrido na esquina. A entrevistada responde: “ah, mas ele já estava avisado”.
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Do bolsonarismo ao neofascismo. Artigo de Isadora de Andrade Guerreiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU