04 Outubro 2025
“O capitalismo não precisa mais, como antes, confiar o poder a fascismos históricos, porque a democracia foi esvaziada de dentro para fora desde os anos 1970 (pelo menos desde a época da Comissão Trilateral). É uma casca vazia que pode ser explorada de qualquer maneira. De dentro de suas próprias instituições — assim como o capitalismo de dentro das finanças, e o Estado de dentro de sua administração e forças armadas —, ele produz guerra, guerra civil e genocídio”, escreve Maurizio Lazzarato, sociólogo e filósofo italiano, residente em Paris, em artigo publicado por Observatorio de la crisis, 22-09-2025.
Eis o artigo.
"A acumulação primitiva, estado natural do capital, é o protótipo da crise capitalista" (Hans-Jünger Krahl)
O capitalismo não pode ser reduzido a um ciclo de acumulação, pois é sempre precedido, acompanhado e seguido por um ciclo estratégico definido por conflito, guerra, guerra civil e possivelmente revolução.
O ciclo estratégico inclui a acumulação primitiva, como Marx a explicou, mas apenas em sua primeira fase; é seguido pelo exercício da violência incorporada na "produção" e sua implantação na forma de guerra e guerra civil quando o ciclo econômico perde força. Para uma descrição completa do ciclo estratégico, devemos esperar até o século XX, com sua transformação no ciclo das revoluções soviética e chinesa, que corrigiram e completaram Marx em vários aspectos.
Ambos os ciclos funcionam em conjunto, entrelaçando suas dinâmicas, mas também podem ser separados: desde 2008, o ciclo de conflito, guerra e guerra civil (e a eventual, improvável, revolução) se separou progressivamente do ciclo de acumulação em sentido estrito. Bloqueios e estagnação na acumulação de capital exigem a intervenção do ciclo estratégico, que opera com base em relações de poder e na relação não econômica de amigo-inimigo.
Desde a ascensão do imperialismo, a importância do ciclo estratégico só aumentou. Ciclos de guerra, violência em massa e uso arbitrário da força se sucederam rapidamente. Os Estados Unidos impuseram as regras econômicas e jurídicas do mercado global e do Nomos da Terra (ordem mundial) em três ocasiões (1945, 1971 e 1991).
Em três ocasiões, aboliu-os porque não eram mais funcionais, substituindo-os por novas normas: o fordismo de 1945 foi desmantelado nos anos 1970; o chamado "neoliberalismo" foi escolhido em seu lugar e disseminado globalmente em 1991, após o colapso da URSS, em 2008. A atual acumulação primitiva está mais uma vez mudando as regras do jogo, em busca de um improvável "Make America Great Again".
A análise do ciclo estratégico no capitalismo contemporâneo deve partir dos Estados Unidos, pois é lá que se concentram as estruturas de poder: as instituições militares, financeiras e monetárias sobre as quais os próprios Estados Unidos têm o monopólio, negando o acesso aos seus "aliados" europeus ou do Leste Asiático, ou seja, aos países subjugados seja pela guerra (Alemanha, Japão, Itália) ou pelo poder econômico e financeiro (França, Inglaterra) e, sobretudo, negados ao Sul global.
Desde a crise de 2008, o ciclo estratégico tornou-se tão importante que chegou a deslocar o "mercado", as regras econômicas, o direito internacional, as relações diplomáticas entre os Estados etc., apesar de seu objetivo de revitalizar a economia americana em dificuldades e evitar sua implosão.
A nova acumulação primitiva e o ciclo estratégico se desenrolam diante de nossos olhos. O "estado de exceção" foi desencadeado por Trump e está se desenvolvendo de forma muito diferente da definição canônica dada por Carl Schmitt ou adotada por Giorgio Agamben: em vez de afetar o direito público e a constituição formal do Estado-nação, ele afeta principalmente as regras da constituição material do mercado global e as normas de direito internacional específicas da ordem mundial.
Com o estado de exceção global, o espaço em que o Nomos da Terra é desenhado, com suas linhas de amizade e hostilidade, é o da guerra civil global. Em vez de focar na lei, o estado de exceção global integra profundamente a economia, a política, o exército e o sistema jurídico.
A guerra civil global é espelhada pela guerra civil interna nos Estados Unidos, que intensifica o racismo e o sexismo, militariza o território, deporta migrantes, ataca universidades e museus, demoniza palavras, conceitos etc. A população americana está profundamente dividida: não (apenas) entre o 1% e os 99%, como foi reivindicado pelo movimento Occupy Wall Street, mas entre os 20% que garantem a maior parte do consumo no enorme mercado interno (que representa três quartos do PIB dos EUA) e os 80% cuja capacidade de consumo está estagnada ou em declínio. Políticas fiscais são implementadas para garantir a propriedade e o hiperconsumo do segmento mais rico.
Trump politiza o que o chamado neoliberalismo tentou, sem sucesso, despolitizar. Uma vez suspensas todas as regras, o uso da força extraeconômica torna-se o pré-requisito para a produção econômica, o estabelecimento da lei e a criação de qualquer instituição.
Primeiro, as relações de poder são impostas pela força. Depois, uma vez estabelecida a divisão entre quem manda e quem obedece (e a situação estabilizada graças à aceitação dos derrotados), as normas econômicas e jurídicas, os mecanismos automáticos da economia e as instituições nacionais e internacionais podem ser reconstruídos, expressando uma nova "ordem".
O funcionamento do ciclo estratégico durante o "estado de emergência global" é garantido por decisões políticas arbitrárias e unilaterais da administração norte-americana, que buscam impor uma série de "apropriações" (apropriações, expropriações, saques) de riquezas alheias, extorquidas diretamente, sem a mediação da exploração industrial ou da depredação causada pela dívida ou pela financeirização.
Qual é o significado desta longa (e aqui parcial [1]) lista de decisões políticas tomadas a partir do poder coercitivo do Estado imperial? A mudança nas relações "econômicas" não é inerente à produção, não é o resultado das "leis" das finanças, da indústria e do comércio estabelecidas pela teoria econômica.
Os "automatismos" da economia, impostos politicamente entre os anos 1970 e 1980 pelos Estados Unidos, só conseguem reproduzir os fins para os quais foram politicamente instituídos (financeirização, dólar como única moeda de troca e reserva, economia da dívida, deslocalização industrial, etc.) e, portanto, reproduzir a crise.
Esses mecanismos carecem da capacidade de inovar, de distribuir o poder de forma diferente, de produzir novas relações entre Estados e entre classes, condições para uma "nova" produção. A configuração de poder almejada exige uma ruptura. Ela não pode ser deduzida da situação que levou à crise, mas sim de um salto para além dela.
Para compreender o aspecto "político" que sempre presidiu essas fases de acumulação primitiva, não devemos contrapô-lo ao aspecto "econômico" nem o reduzir à totalidade das instituições políticas e de classe. Ele é mais bem compreendido se o considerarmos como a coordenação de diferentes centros de poder (administrativo, financeiro, militar, monetário, industrial, midiático), cada um desenvolvendo uma estratégia. Os interesses heterogêneos que os caracterizam são mediados pela necessidade de derrotar um "inimigo comum": o resto do mundo, mas sobretudo os BRICS, em particular a Rússia e a China.
O governo Trump assume o papel de capitalista coletivo, um líder capaz de negociar uma estratégia com os demais poderes (financeiro, militar, monetário, etc.) que continuam agindo de acordo com seus próprios interesses, mas que devem encontrar convergência porque o que está em jogo não é apenas a saúde da economia americana, mas a possibilidade do colapso de toda a maquinaria econômico-política do capitalismo financeiro e da dívida, agora esgotada.
Intimidação e chantagem econômica, intimidação e chantagem militar, guerras e genocídio estão sendo mobilizados simultaneamente. Os Estados Unidos estão prestando atenção especial ao seu "quintal" (América Latina): ameaçam intervir militarmente, sob o pretexto do tráfico de drogas, na Colômbia, México, Haiti e El Salvador, enquanto mobilizam canhoneiras contra a Venezuela.
Ele convocou os ministros da defesa da região em Buenos Aires (19 a 21 de agosto) para exigir alinhamento total contra a China e impor uma maior presença militar dos EUA nos "estreitos" (Magalhães, Panamá etc.), pontos de estrangulamento para o comércio global, "que poderiam ser usados pelo Partido Comunista Chinês para projetar seu poder, interromper o comércio e desafiar a soberania de nossas nações e a neutralidade da Antártida".
Nessas condições, é difícil até mesmo falar de capitalismo, um "modo de produção", porque envolve as ações de um "mestre" que decide arbitrariamente a quantidade de riqueza que ele tem o direito de extrair da produção de seus "servos".
O secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, declarou sem a menor hesitação que os Estados Unidos tratarão a riqueza de seus "aliados" como se fosse sua: Japão, Coreia, Emirados e, acima de tudo, a Europa se comprometeram a investir "de acordo com os desejos do presidente". Trata-se de um "fundo soberano, administrado a critério do presidente, para financiar a nova industrialização". O apresentador da Fox News, atônito, o chama de "fundo de apropriação offshore". Bessent: "Ah, é um fundo soberano americano, mas com dinheiro de outras pessoas".
As relações impessoais do mercado tornam-se pessoais novamente, colocando senhor contra escravo, colonizador contra colonizado; não é o fetichismo das mercadorias ou os mecanismos automáticos do dinheiro, do mercado, da dívida etc., que comandam e decidem, mas forçam a expressão da vontade política.
Os Estados Unidos não definem mais um "concorrente", mas declaram um "inimigo", identificado com o resto do mundo, incluindo seus aliados (acima de tudo, seus aliados, porque fazem parte da mesma classe dominante e estão aterrorizados com a ideia do colapso do núcleo do sistema, o que também acarretaria sua própria queda; para salvar o capitalismo, eles estão dispostos a despojar suas próprias populações, especialmente a Europa, que, como o Japão nos anos 1980, terá que suportar o peso da crise americana, sacrificando sua economia e suas classes trabalhadoras, expondo-se ao risco de uma guerra civil).
A lei do valor ou utilidade marginal, ou seja, o conjunto de categorias da economia clássica ou neoclássica, são completamente inúteis: não explicam nada do que acontece. Em vez de modelos econométricos extremamente complexos, uma simples operação matemática aprendida no ensino fundamental é suficiente para calcular as tarifas que serão aplicadas ao resto do mundo.
A suposta complexidade das sociedades contemporâneas facilmente cede lugar ao dualismo político amigo/inimigo. A "destruição criativa" não é prerrogativa de empreendedores, mas sim obra daqueles que tomam decisões políticas, econômicas e militares.
Para explicar o que está acontecendo, O Capital de Marx também não é muito útil (a menos que comecemos com a acumulação primitiva, em vez da análise de mercadorias).
Pierre Clastres, partindo de uma leitura de Nietzsche muito diferente da de Foucault e focando no conceito de vontade de potência, pode nos oferecer elementos para reflexão: as relações econômicas são relações de poder que jamais podemos separar da guerra. Sua descrição de como o "poder" funciona quando prevalece às custas das velhas "sociedades contra o Estado" continua sendo o comentário mais preciso sobre o funcionamento atual da máquina Estado/Capital da administração americana.
“A ordem econômica, isto é, a divisão da sociedade entre ricos e pobres, exploradores e explorados, é o resultado de uma divisão mais fundamental na sociedade: a divisão entre aqueles que comandam e aqueles que obedecem, entre aqueles que detêm o poder e aqueles que se submetem a ele. É, portanto, essencial compreender quando e como, em uma sociedade, surge a relação de poder, comando e obediência. Como aqueles que detêm o poder se tornam exploradores e como aqueles que se submetem a ele ou o reconhecem – pouco importa – se tornam explorados? O ponto de partida, simplesmente, é o tributo. É fundamental. Nunca esqueçamos que o poder só existe em seu exercício: poder que não é exercido não é poder. O sinal do poder, o sinal de que ele realmente existe, é, para aqueles que o reconhecem, a obrigação de pagar tributo. A essência da relação de poder é a relação de dívida. Quando a sociedade está dividida entre aqueles que comandam e aqueles que obedecem, o primeiro ato daqueles que comandam é dizer aos outros: “Nós comandamos, e Nós provamos isso a vocês, forçando-os a pagar tributo”.
Podemos facilmente interpretar a relação de comando/obediência como determinada pela violência implacavelmente recorrente da acumulação primitiva; e a relação explorador/explorado como o exercício do poder de comando integrado à produção, uma vez que a ordem foi estabelecida e a situação normalizada.
Ambas as relações são ações complementares, exercidas pela mesma maquinaria Estado-Capital. A crítica de Clastres ao econômico, que em última análise determina o político, parece pertinente, desde que consideremos a vontade de potência e a vontade de acumular como dois lados da mesma moeda.
O tributo pago à administração americana deve sinalizar uma nova redistribuição de poder, capaz de desenhar um novo Nomos da Terra, ou seja, uma relação de subordinação colonial dos aliados e dos BRICS — embora esta seja uma operação mais difícil — aos Estados Unidos. Dentro de cada Estado, o tributo deve sinalizar a submissão das classes dominadas, as únicas que pagarão pela crise do império.
A arrogância de Trump mascara sua fraqueza: ele quer impor uma nova ordem mundial e, ao mesmo tempo, ser o autor da derrota estratégica da OTAN na Ucrânia e de uma crise econômica colossal que está colidindo com o Sul global, que se recusa a se submeter como os europeus.
A nova ordem só pode ser estabelecida por meio do imperialismo, caracterizado, desde o seu início, pela complementaridade entre economia e política, guerra e produção. O imperialismo coletivo, definido por Samir Amin nos anos 1970, no qual o papel central era reservado aos Estados Unidos, transformou-se em uma verdadeira subordinação colonial de seus aliados: Europa, Coreia, Japão, Canadá etc. A Europa encontra-se hoje em uma condição de subordinação colonial semelhante à imposta pela Inglaterra à Índia no século XIX. Como a Índia naquela época, deve pagar tributo ao país "ocupante", construir e financiar exércitos europeus com equipamentos adquiridos dos Estados Unidos, para travar guerras contra inimigos definidos pelo poder imperial (a guerra na Ucrânia é o laboratório e o ensaio geral para esse tipo de guerra).
Neoliberalismo ou a reversibilidade do fascismo e do capitalismo
A nova fase do ciclo estratégico, iniciada em 2008 e que conduz à guerra aberta, traz consigo um grande avanço. A maquinaria do Estado-Capital não delega mais o uso da violência massiva aos fascistas: ela própria a organiza, talvez afetada pela autonomia que o nazismo havia assumido na primeira metade do século XX. O genocídio lança uma luz perturbadora sobre a natureza do capitalismo e da democracia, forçando-nos a vê-los como talvez nunca os tenhamos visto antes.
O capitalismo e as democracias organizam conjuntamente o genocídio como se fosse a coisa mais normal e natural do mundo. Inúmeras empresas (de logística, armamento, comunicações, controle etc.) participaram da economia da ocupação da Palestina e agora organizam inescrupulosamente a economia do genocídio. Assim como as corporações alemãs nos anos 1930 e 1940, elas garantem enormes lucros por meio da limpeza étnica dos palestinos. O principal índice da Bolsa de Valores de Tel Aviv subiu 200% durante o genocídio, garantindo um fluxo contínuo de capital, especialmente americano e europeu, para Israel.
Com o genocídio, as democracias liberais se reconectam com sua genealogia, que, uma vez apagada, retorna com força total: as democracias liberais americanas se baseiam no genocídio de povos indígenas, no estabelecimento da escravidão e no racismo, enquanto as democracias europeias fizeram o mesmo, mas em colônias distantes. Questões coloniais, raciais e escravistas estão no cerne de ambas as revoluções liberais do final do século XVIII.
O racismo estrutural que caracteriza o capitalismo — atualmente concentrado contra os muçulmanos — tem sido descaradamente legitimado pelos israelenses e por toda a mídia e classe política ocidentais. Aqui, também, não há necessidade real de novos fascistas, pois são os Estados, especialmente os europeus, que o alimentam desde os anos 1980 (enquanto nos Estados Unidos ele é endêmico, um pilar do exercício do poder).
O racismo está profundamente enraizado na democracia e no capitalismo desde a conquista da América, porque a desigualdade reina nesse sistema, e uma das principais formas de legitimá-lo é justamente o racismo.
O debate sobre os fascismos contemporâneos está atrasado em relação à realidade (veja também o livro de Alberto Toscano sobre o assunto), já que nenhum desses "novos fascismos" é capaz de tamanha violência ou destruição nessa escala.
Eles não são como seus antecessores, que lideraram uma contrarrevolução em massa contra o socialismo, por várias razões. A principal: hoje não há nenhum inimigo real que se assemelhe remotamente aos bolcheviques. Os movimentos políticos contemporâneos não representam um perigo real; são absolutamente inofensivos.
Os novos fascismos são marginais em comparação com os fascismos históricos e, ao chegarem ao poder, imediatamente se alinham ao capital e ao Estado, limitando-se a intensificar a legislação autoritária e repressiva e a afetar o aspecto simbólico-cultural. Trump (ou Milei) representa a imagem apropriada do "capitalista fascista" porque personifica um segmento da classe capitalista e age de acordo com isso.
As ações de Trump lembram apenas marginalmente o folclore fascista histórico quando operam em nível geopolítico, buscando salvar o capitalismo americano da implosão, enquanto, em vez disso, impõem um futuro fascista a todos os aspectos da sociedade americana. Trump combina perfeitamente capitalismo e fascismo.
O capitalismo não precisa mais, como antes, confiar o poder a fascismos históricos, porque a democracia foi esvaziada de dentro para fora desde os anos 1970 (pelo menos desde a época da Comissão Trilateral). É uma casca vazia que pode ser explorada de qualquer maneira. De dentro de suas próprias instituições — assim como o capitalismo de dentro das finanças, e o Estado de dentro de sua administração e forças armadas —, ele produz guerra, guerra civil e genocídio.
Os "novos fascismos" ou "pós-fascismos" são atores periféricos. Eles não têm qualquer influência sobre as decisões tomadas pelos centros de poder financeiro, militar, monetário, estatal e outros; eles simplesmente precisam aceitá-las. Em primeiro lugar, o "fascismo italiano".
Como podemos entender essa situação sem precedentes? Ela tem suas raízes na fase anterior de acumulação primitiva que organizou a transição do fordismo para o chamado "neoliberalismo". O ciclo estratégico organizado pelo governo Nixon – para fazer o resto do mundo pagar, como hoje, pela crise acumulada nos anos 1960 – foi ainda mais violento do que as ações de Trump: a decisão unilateral de desconverter o dólar em ouro, tarifas de 10% para todos, capital japonês disponibilizado aos Estados Unidos, o "Acordo de Plaza" que saqueou o Japão, a China da época, sacrificando sua economia para salvar o capitalismo americano; a decisão política de construir um "superimperialismo" do dólar; a restauração política das relações com a China, que será decisiva para a globalização contrarrevolucionária, etc.
Um dos episódios mais dramáticos desse ciclo estratégico foram as guerras civis que eclodiram na América Latina, que simultaneamente marcaram o fim da revolução global e desencadearam os primeiros experimentos ditos neoliberais. Nesse sentido, é interessante rever a análise do economista ganhador do Prêmio Nobel, Paul Samuelson, sobre o neoliberalismo nascente, que ele tem consistentemente rejeitado.
A análise de Foucault sobre o "Nascimento da Biopolítica" tem sido considerada uma formidável antecipação do neoliberalismo, enquanto, no mesmo período, a interpretação de Paul Samuelson trunca a admiração ambígua pelo mercado, pelas liberdades, pela tolerância às minorias, pelas críticas aos monopólios e à soberania, à governamentalidade etc., descrevendo a economia neoliberal como "fascismo capitalista", no sentido de que, com o mercado neoliberal, ambos os termos se tornam reversíveis. Essa categoria, eliminada, talvez nos ajude a compreender a genealogia do genocídio democrático-capitalista.
Refiro-me, é claro, à solução fascista. Se as leis de mercado levarem à instabilidade política, os simpatizantes fascistas concluirão: "Eliminem a democracia e imponham um regime de mercado à sociedade civil! Pouco importa se isso requer o desmantelamento de sindicatos, a prisão de intelectuais indesejados ou mesmo a sua expulsão." [2]
Desde os anos 1970, o "mercado" vem destruindo progressivamente a democracia pós-Segunda Guerra Mundial —a única democracia que se assemelhava vagamente ao seu próprio conceito, tendo emergido das guerras civis globais contra o nazismo. Uma vez esgotada essa energia política, o capitalismo fascista começou a se consolidar. Em vez de representar uma alternativa à guerra e à violência em massa, a lógica do "mercado" as contém, as alimenta e, em última análise, as pratica diretamente, chegando até mesmo ao genocídio.
Na era dos monopólios, o mercado — uma mediação supostamente automática — representa, na verdade, o fim de toda mediação, pois permite que a força emerja como o ator decisivo: o poder dos monopólios, o poder das finanças, o poder do Estado, o poder dos exércitos etc. Não só a guerra civil foi necessária para impor o "neoliberalismo", como seu funcionamento se baseia na integração da violência. O mercado, nesse sentido, já é uma economia fascista.
Samuelson subverte crenças profundamente arraigadas: a economia dos Chicago Boys, Hayek, Friedman e outros é uma forma de fascismo e um paradigma para a economia em geral. A experiência neoliberal é a de uma "economia imposta", precisamente o que o governo Trump tenta alcançar: um "capitalismo imposto" (outra definição adequada de Samuelson) pela força.
A décima primeira edição de "Economics", de 1980, inclui um capítulo dedicado a esse detestável problema do fascismo capitalista. Em outras palavras, se o Chile e os "Chicago Boys" não tivessem existido, teriam que ser inventados para se tornarem um paradigma. É interessante relembrar o que eu disse sobre isso, especialmente porque os conservadores, que se ressentem da evolução das democracias, são incapazes de seguir seu próprio raciocínio até o fim. Eles fogem da conclusão que seria deles, a saber, o fascismo, e se contentam em propor um limite constitucional à imposição. Esta é a versão deles do capitalismo imposto.
Aceitamos a narrativa liberal, em vez de nos perguntarmos por qual razão o seu governo conduz, como aconteceu na primeira metade do século XX, à guerra, ao fascismo e ao genocídio. Não tiramos as conclusões necessárias, mas passamos das "liberdades" do chamado neoliberalismo para o genocídio democrático-capitalista, sem golpes de Estado, sem "marchas sobre Roma", sem contrarrevoluções massivas, como se fosse uma evolução natural.
Ninguém no establishment, e especialmente nas classes políticas ou na mídia, se sentiu desconfortável. Pelo contrário: estes últimos se alinharam com uma velocidade impressionante a uma narrativa que contradiz completamente a ideologia professada há décadas em relação aos direitos humanos, ao direito internacional, à democracia versus ditaduras, e assim por diante.
Para que tudo isso acontecesse sem o menor problema, os horrores físicos e midiáticos do genocídio já tinham que estar enraizados nas estruturas do sistema, que, uma vez emergidos, os consideraram não uma aberração, mas sua normalidade. Tudo aconteceu como se fosse um fato. O capitalismo "liberal" se expressou e se materializou natural e completamente no genocídio, sem a mediação de fascistas, sem que estes se estabelecessem como uma força política "autônoma", como nos anos 1920.
Não vemos o que está diante dos nossos olhos porque internalizamos muitos filtros "democráticos", uma ideia pacificada do capitalismo que nos impede de interpretar corretamente o que aconteceu com a construção do neoliberalismo, a partir da América Latina.
Vamos reler Samuelson, tendo em mente todos os comentários de pensadores "críticos" que continuam, mesmo depois de 2008, falando de neoliberalismo. As ditaduras sul-americanas, com seus milhares de assassinados, torturados e exilados, são apenas uma variante do fascismo de mercado que prospera na democracia.
“Deixarei que você descubra minha descrição do fascismo capitalista: generais e almirantes tomam o poder. Eles eliminam seus antecessores esquerdistas, exilam seus oponentes, prendem dissidentes intelectuais, restringem sindicatos, controlam a imprensa e toda a atividade política. No entanto, nessa variante do fascismo de mercado, os líderes militares não intervêm na economia (...) Os oponentes do regime chileno chamaram esse grupo, de forma um tanto injusta, de Chicago Boys, para enfatizar o fato de que muitos deles receberam sua formação econômica na Universidade de Chicago ou foram influenciados por ela. Esses economistas defendem o livre mercado. Assim, o relógio da história retrocede. O mercado é livre, a oferta de moeda é rigidamente controlada. Sem transferências de bem-estar social, os trabalhadores são forçados a trabalhar ou morrer de fome. Os desempregados agora restringem o crescimento dos salários. A inflação pode ser drasticamente reduzida, se não eliminada por completo.”
Na realidade, o mercado "fascista" nunca teve uma função econômica, mas sim repressiva e, depois, disciplinar, individualizando o proletariado e interrompendo toda ação coletiva e solidária. O mercado era uma gigantesca construção ideológica sob a qual se desenvolveram pacificamente a pilhagem do dólar e o monopólio financeiro, juntamente com o exercício da violência pelos militares americanos — os verdadeiros atores econômicos e políticos do "neoliberalismo", que nunca foram regulados ou governados pelo mercado.
Onde podemos verificar a relevância do conceito de Samuelson, que implica o aparente oxímoro de "democracia fascista"? Resistimos em compreender a realidade porque a grande violência que une democracia e capitalismo apaga, com desconcertante facilidade, os valores do Ocidente, consagrados em suas constituições. O jovem Marx nos lembra que a alma das constituições liberais não é a liberdade, nem a igualdade, nem a fraternidade, mas a propriedade privada burguesa. Esta é uma verdade inescapável, especialmente porque é o "direito mais sagrado do homem", como afirmou a Revolução Francesa. Na realidade, é o único valor verdadeiro do Ocidente capitalista.
A propriedade é, sem dúvida, o meio mais pertinente para definir a situação dos oprimidos. A acumulação primitiva implementada nos anos 1970 por Nixon impôs politicamente a apropriação e a distribuição primárias, estabelecendo uma divisão da propriedade sem precedentes em comparação com Marx: sua distribuição não ocorre, antes de tudo, entre capitalistas, proprietários dos meios de produção, e trabalhadores, privados de toda propriedade, mas entre os proprietários de ações e títulos, ou seja, entre aqueles que possuem títulos financeiros e aqueles que não os possuem.
Essa "economia" funciona como as tarifas de Trump: um imposto sobre a riqueza de uma sociedade de "servos", com a única diferença de que a predação ocorre por meio do "automatismo" contínuo e politicamente sustentado das finanças e da dívida.
A sociedade está mais dividida do que nunca: no topo estão os detentores de valores, na base, está a vasta maioria da população, que na realidade não é mais composta por sujeitos políticos, mas pelos "excluídos". Tal como acontecia com os servidores do antigo regime, a "função" econômica não implica reconhecimento político. A integração do movimento trabalhista, reconhecido como ator político na economia e na democracia, nos anos do pós-guerra, transformou-se na exclusão das classes trabalhadoras de toda a tomada de decisões políticas.
A financeirização permitiu que as elites praticassem a secessão, reduzindo as relações com seus "servos" exclusivamente à exploração e à dominação. Elas não apenas foram expropriados economicamente, mas também despojadas de toda identidade política, a ponto de adotarem a cultura/identidade do inimigo: o individualismo, o consumo, a ética da televisão e da publicidade. Hoje, buscam impor uma identidade fascista e belicista.
Os novos servos estão fragmentados, dispersos, individualizados, divididos de mil maneiras (por gênero, raça, renda, riqueza etc.), mas todos participam, em graus variados, da sociedade segregada estabelecida pela maquinaria do Estado-Capital, que nem sequer exige legitimidade, tão favoráveis são as relações de poder. Decisões sobre genocídio, rearmamento, guerra e políticas econômicas são tomadas sem prestação de contas aos seus subordinados.
O consenso não é mais necessário porque o proletariado é fraco demais para reivindicar qualquer peso. É claro que, nessa situação, a democracia não tem sentido. A condição dos oprimidos assemelha-se à dos colonizados (colonização generalizada) e não à dos "cidadãos".
Walter Benjamin nos alertou: "Surpreender-se que as coisas que vivenciamos 'ainda' sejam possíveis no século XX não é filosófico. Não é o início de nenhum conhecimento, exceto que a ideia de história que o gerou é insustentável".
Uma certa concepção de capitalismo, cultivada pelo economicismo do marxismo ocidental, também é insustentável. Lenin definiu o capitalismo imperialista como reacionário, diferentemente do capitalismo competitivo, no qual Marx ainda via aspectos "progressistas".
A financeirização e a economia da dívida criaram um monstro que combina capitalismo, democracia e fascismo, o que não representa nenhum problema para as classes dominantes. Devemos questionar a natureza do ciclo estratégico do inimigo e estabelecer um único objetivo: transformá-lo em um ciclo estratégico de revolução.
Notas
[1] – Tarifas alfandegárias entre 15% e 50%. Sua redução será condicionada, no curto prazo, à compra de títulos norte-americanos, que têm dificuldade em encontrar compradores nos mercados.
– Os direitos aduaneiros têm um duplo propósito: econômico (os Estados Unidos precisam de dinheiro novo para cobrir seus déficits) e/ou político (a Índia comercializa livremente com a Rússia, etc., e o Brasil tem Bolsonaro na mira).
– Obrigação de comprar energia dos EUA quatro vezes mais cara que o preço pago à Rússia: a Europa se comprometeu a comprar US$ 750 bilhões em energia dos Estados Unidos, que não têm esse valor.
– Uma obrigação de investir bilhões de dólares na reindustrialização dos EUA (Japão, Europa, Coreia do Sul e Emirados Árabes Unidos prometeram somas astronômicas; a Europa, US$ 600 bilhões, considerado um "presente" por Trump). Esses investimentos ficarão a critério dos Estados Unidos.
– Obrigação de compra de armas do sistema militar-industrial-acadêmico dos EUA, sob ameaça de aumento de tarifas alfandegárias.
O Genius Act autoriza os bancos a manter stablecoins como moedas de reserva para enfrentar os desafios de investimento impostos pela enorme dívida pública. A condição política para essas stablecoins é que sejam atreladas ao dólar e usadas para comprar títulos da dívida americana.
– A tarifa de 39% imposta à Suíça afeta o ouro, do qual a Suíça é um grande exportador para os Estados Unidos, porque os bancos (especialmente no Sul) preferem comprar e manter ouro em vez de dólares.
– Obrigação dos fabricantes de chips de rastrearem suas exportações e, quando apropriado, poderem destruí-las remotamente (lei atualmente em aprovação).
– Exportações de tecnologia baseadas em critérios políticos.
– Obrigação de abrir mercados para produtos dos EUA isentos de todos os impostos, em particular os lucros das empresas de tecnologia dos EUA não devem ser tributados.
– Liberdade para exportar qualquer produto dos EUA, mesmo que seja proibido pela lei europeia.
[2] Samuelson Paul A. A economia do mundo ao fim do século. In: Revue française d'économie, volume 1, n°1, 1986. pp.
Leia mais
- EUA: O que não tem conserto, nem nunca terá. Artigo de Maurizio Lazzarato
- “Sem a intervenção do Estado, o capitalismo já teria morrido há muito tempo”. Entrevista com Maurizio Lazzarato
- Genocídio contemporâneo transmitido ao vivo. Artigo de Fabiano Glaser dos Santos
- No tecnofascismo contemporâneo, o neoliberalismo é um ponto de partida, não de chegada. Entrevista especial com Felipe Fortes
- Capitalismo é sinônimo de crime. Artigo de Raúl Zibechi
- "Há uma guerra civil, e Donald Trump está cultivando a violência”. Entrevista com Jonathan Safran Foer
- “Testemunhamos uma guerra civil contra os direitos coletivos”. Entrevista com Pierre Dardot
- Pierre Dardot e Christian Laval. Artigo de Youness Bousenna
- “O neoliberalismo é um totalitarismo invertido”. Entrevista com Alain Caillé
- “A verdadeira face do neoliberalismo é a do Estado que se tornou fiador dos bancos”. Entrevista com Pierre Dardot
- “A subjetivação neoliberal leva ao medo da democracia radical”. O Chile visto por Pierre Dardot
- Anatomia do novo neoliberalismo. Artigo de Pierre Dardot e Christian Laval
- No tecnofascismo contemporâneo, o neoliberalismo é um ponto de partida, não de chegada. Entrevista especial com Felipe Fortes
- O que o neoliberalismo já não explica: sobre cegueiras conceituais, lutas em curso e a necessidade da reinvenção democrática. Artigo de Felipe Fortes
- Entre a extrema-direita e o conservadorismo radicalizado. Entrevista com Natascha Strobl
- “Milei é um populista de extrema direita, um louco ideológico”. Entrevista com Federico Finchelstein