Adorno e a crítica à racionalidade ocidental. Entrevista especial com Carlos Pissardo

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23 Novembro 2007

A filosofia de Theodor Adorno (1) é considerada uma das mais complexas do século XX. Parte dela é dedicada a uma crítica à sociedade de mercado que não persegue outro fim que não o do progresso técnico. Baseado nesta filosofia, Carlos Pissardo, membro do Laboratório de estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, estudou a crítica de Adorno à racionalidade ocidental. À IHU On-Line, Pissardo falou sobre as considerações do filósofo frankfurtiano em relação às tecnologias, à ética, ao impulso e à razão presentes em seus trabalhos. A entrevista foi realizada por e-mail.

Carlos Pissardo é graduado em Ciências Sociais, pela USP, onde também realiza mestrado em Filosofia. Também é membro do LATESFIP - Laboratório de estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as considerações de Adorno em relação à racionalidade tecnológica e seus desafios éticos?

Carlos Pissardo – Um dos impulsos dominantes de toda a filosofia de Theodor Adorno é a retomada do potencial crítico posto na razão. Entre outras coisas, isso significa restituir ao pensamento sua capacidade de julgamento quanto aos valores éticos que orientam as próprias ações humanas. O conceito-chave, nesse caso, é o de experiência.

Nesse sentido, cabe ressaltar que a crítica de Adorno não se dirige à técnica em si, mas a um tipo específico de racionalidade dominante na civilização ocidental, da qual o mundo moderno capitalista faz parte. É uma crítica à racionalidade instrumental e não simplesmente uma crítica ao progresso técnico como um todo.

Para Adorno, essa racionalidade instrumental é problemática porque é incapaz de fazer uso da razão sobre as finalidades da ação humana e quanto ao bem-estar dos homens. Essa racionalidade dominante no mundo moderno limita-se tão-somente a um cálculo mais ou menos eficaz sobre a adequação ótima entre meios e fins, sem que em nenhum momento se coloque em xeque a validade desses próprios fins. Por isso mesmo, é próprio desse tipo de racionalidade, por exemplo, a rígida separação entre a esfera ético-política e a esfera científica, como se não coubesse ao cientista refletir sobre as finalidades mesma de suas pesquisas.

IHU On-Line - Vivemos num mundo dominado pela técnica, racionalidade que passou a exercer um profundo controle sobre nossas vidas?

Carlos Pissardo – Primeiramente, devemos evitar uma leitura em minha opinião equivocada da crítica adorniana à racionalidade instrumental. O termo “racionalidade” pode dar a idéia de que se trata, para Adorno, de uma simples crítica a processos mentais ou cognitivos, subjetivamente postos. Esse, no entanto, é apenas um dos momentos de sua filosofia crítica. Esta, por sua vez, dirige-se para uma dimensão muito mais profunda da realidade e que envolve uma problematização de processos sociais estruturantes de nossas sociedades contemporâneas, inclusive no que concerne à sua organização econômica capitalista.

Nesse sentido, a racionalidade instrumental deve ser posta em xeque, antes de tudo, como um modelo de ação social. Nesse caso, como um tipo de ação social que compõe a estrutura ideológica contemporânea, mantenedora do status quo, ao apresentar processos político-sociais de dominação e exploração como processos socialmente neutros e imparciais, como questões puramente técnicas.

Por isso, não devemos nos deixar enganar com o aparente domínio da técnica no mundo contemporâneo: essa aparência, na verdade, é legitimadora de processos sociais de dominação e exploração, ainda ligados a uma certa dinâmica de classes. Faz parte da configuração contemporânea da ideologia essa legitimação técnica de uma realidade fundada na não-liberdade, como coisa pretensamente inquestionável.

IHU On-Line - O enfraquecimento dos fundamentos comunitários, territoriais e históricos válidos do julgamento moral da racionalidade ocidental é uma espécie de colonização interna?

Carlos Pissardo – Deve-se sempre ter em mente o caráter dialético da crítica adorniana à modernidade. Entre outras coisas, isso significa não cair na idealização do pré-moderno e de seus vínculos comunitários e territoriais. Existe toda uma dimensão emancipatória posta pela modernidade que não deve ser simplesmente ignorada, como não era ignorada, por exemplo, pelo próprio Marx (2), certamente uma das referências centrais de Adorno.

A racionalidade ocidental deve ser criticada em sua ambigüidade; em sua imbricação contraditória entre momentos emancipatórios e regressivos. A crítica adorniana à racionalidade ocidental, por isso, não pode ser confundida a uma crítica tout court à razão ela mesma, como se no fim das contas apenas restasse uma apologia do pré-racional ou uma defesa de um retorno ao pretensamente natural. A relação dialeticamente necessária entre progresso e barbárie, entre emancipação e intensificação da exploração, entre esclarecimento e dominação, é que dá a chave para se entender Adorno.

Em termos éticos, isso significa uma resistência de ordem bifronte: nem retorno a ordenamentos normativos não universalistas, típicos de sociedades pré-modernas, nem aceitação cega da falsa universalidade da racionalidade particularista moderna. Enquanto o progresso estiver “encantado” em sua figura particular, ou seja, enquanto a humanidade, como um todo, não tomar por si própria responsabilidade pelo seu destino, todo avanço civilizacional automaticamente continuará a se inverter em seu contrário, em barbárie.

IHU On-Line - O ápice da racionalidade ocidental foi o nazismo?

Carlos Pissardo – Se Adorno e Horkheimer (3), na Dialética do esclarecimento, recorrem aos primórdios históricos da civilização ocidental é porque, para esses autores, essa é a história de um fracasso. E, quando falamos de civilização, seu fracasso é a barbárie.

Na análise dessa intervenção de civilização em barbárie, Adorno e Horkheimer resgatam uma certa familiaridade subterrânea entre o modelo de subjetivação relativo à racionalidade técnico-científica esclarecida, atualizada no capitalismo avançado, e aquilo que Freud (4), ao se referir aos “primitivos”, chamava de “mania de grandeza”, formada por uma certa articulação entre uma formação narcisista do sujeito e uma paranóia socialmente compartilhada.

Para os filósofos frankfurtianos, a versão atual mais evidente desse fracasso da civilização certamente é a cega integração de indivíduos a princípio racionais nas fileiras fascistas e nazistas. Experiência diretamente vivida por eles, alemães judeus. Nesse sentido, o nazismo é extremamente revelador dos limites a que nossa civilização pode chegar; e nada hoje (século XXI) garante que já tenhamos superado esse perigo, muito pelo contrário. A pergunta, no entanto, que fica para eles (e para nós) é a seguinte: que tipo de sujeito nossa civilização moderna ocidental produz que permite que algo como Auschwitz (5) possa ter acontecido?

Os autores, entretanto, também à maneira de Freud, sabem que esse diagnóstico está longe de ser limitado a certos movimentos de massa organizados em torno de um líder, cujo paradigma hoje seria a massa nazista. Eles também têm em vista uma crítica às sociedades democráticas. A massa irracional de consumidores compulsivos, o culto à personalidade vinculada pela indústria cultural, a semi-formação como “mitologia de segunda ordem” e o pensamento por tickets, entre outros mecanismos amplamente disseminados em sociedades formalmente democráticas, não deixam de guardar ainda hoje forte proximidade com certos mecanismos atuantes em sociedades totalitárias.

IHU On-Line - Como o impulso e a razão estão presentes na crítica à racionalidade ocidental feita por Adorno?

Carlos Pissardo – Em termos psicanalíticos freudianos, pode-se dizer que, para Adorno, não se trata de escolher entre a primazia do eu e a primazia do elemento impulsivo da psique humana: nem unidade narcisista da razão autônoma, nem sua desintegração completa em favor do elemento aparentemente caótico dos impulsos, de uma mítica liberdade pulsional, que Adorno não deixava de identificar com a personalidade patológica própria ao esquizofrênico.

Para Adorno, no entanto, é apenas a partir de um certo elemento pulsional constituinte do homem - de um tipo de experiência corpórea pré-discursiva - que ainda se pode formular algo próximo a uma moral na forma mesma de um imperativo categórico universal, ou mesmo ainda se continuar trabalhando com um conceito de liberdade. Isso porque a razão que abandona o elemento pulsional, negando-o como patológico, acaba incapaz de auto-limitação, que em princípio seria o seu conceito em sua forma esclarecida. (Esse é um dos momentos principais da crítica de Adorno a Kant [6], por exemplo.) Esse fator somático da existência humana aparece como um elemento de estranhamento capaz de impedir que a razão se inverta em loucura. A arte também pode cumprir um papel parecido.

Notas:

(1) Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno foi um filósofo, sociólogo e compositor alemão. Foi membro da Escola de Frankfurt. Sua carreira filosófica começa em 1933 com a publicação de sua tese sobre Kierkegaard. Em 1925, conhece pessoalmente um dos filósofos que mais o influenciaram até então, o jovem Lukács. Outro filósofo que influenciará Adorno de forma crucial é Walter Benjamin, a ponto de Adorno afirmar que, em determinado momento de suas produção filosófica, sua intenção era apenas de traduzir Benjamin em termos acadêmicos. Com o fim da Segunda Guerra, Adorno é um dos que mais desejam o retorno do Instituto de Pesquisa Social a Frankfurt, tornando-se diretor-adjunto deste e seu co-diretor em 1955. Com a aposentadoria de Horkheimer, Adorno torna-se o novo diretor. A Filosofia de Theodor Adorno fundamenta-se na perspectiva da dialética. Uma das suas importantes obras, a Dialética do esclarecimento, escrita em colaboração com Max Horkheimer durante a guerra, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo, ou, o que seria o mesmo, uma crítica, fundada em uma interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista. Sobre Adorno, leia também a edição 74 da Revista IHU On-Line e a edição 11 dos Cadernos IHU Idéias.

(2) Karl Heinrich Marx foi um intelectual alemão, sendo considerado um dos fundadores da Sociologia. Teve participação como intelectual e como revolucionário no movimento operário. Marx foi herdeiro da filosofia alemã, considerado ao lado de Kant e Hegel um de seus grandes representantes. Seu pensamento político criticou todas as correntes socialistas por não ter um caráter decididamente transformador, mas somente reformador. (a frase a seguir é confusa) Ainda que para Marx, a evolução e a revolução são dialéticas, e que cada partido operário, ao realizar suas metas curtas, se abole, pois se torna inútil. Enquanto, a posição que defende, o socialismo científico(para se opor a um socialismo romântico) ou comunismo(revolucionário, para se opor ao mero reformismo); defendia não uma melhoria das condições de vida do proletariado, mas a própria emancipação do proletariado, o fim da condição proletária. Sobre Marx, leia a edição 41 dos Cadernos IHU Idéias.

(3) Max Horkheimer foi um filósofo e sociólogo alemão. Como grande parte dos intelectuais da Escola de Frankfurt, era judeu de origem, filho de um industrial - Moses Horkheimer -, e ele próprio estava destinado a dar continuidade aos negócios paternos. Por intermédio de seu amigo Friedrich Pollock, Horkheimer associou-se em 1923 à criação do Instituto para a Pesquisa Social, do qual foi diretor, em 1931 sucedendo o historiador austríaco Carl Grünberg. Teve como importante fonte de inspiração o filósofo alemão Schopenhauer. Suas formulações, sobretudo aquelas acerca da Razão Instrumental, junto com as teorias de Adorno e Marcuse compõem o núcleo fundamental daquilo que se conhece como Escola de Frankfurt.

(4) Sigmund Freud foi um médico neurologista judeu-austríaco, fundador da Psicanálise. Interessou-se inicialmente pela histeria e, tendo como método a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, com interesses pelo inconsciente e pulsões, entre outros, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se bases da Psicanálise. Simultaneamente, desenvolveu uma teoria da mente e da conduta humana, e uma técnica terapêutica para ajudar pessoas afetadas psiquicamente. Seus conceitos de inconsciente, desejos inconscientes e repressão foram revolucionários; propõem uma mente dividida em camadas ou níveis, dominada em certa medida por vontades primitivas que estão escondidas sob a consciência e que se manifestam nos lapsos e nos sonhos. Sobre o autor, leia também as edições 207 e 179 da Revista IHU On-Line e a edição 16 dos Cadernos IHU em formação.

(5) Auschwitz-Birkenau é o nome de um grupo de campos de concentração localizados no sul da Polônia, símbolos do Holocausto perpetrado pelo nazismo. A partir de 1940, o governo alemão comandado por Adolf Hitler construiu vários campos de concentração e um campo de extermínio nesta área, então na Polônia ocupada. O número total de mortes produzidas em Auschwitz-Birkenau está ainda em debate, mas se estima que entre um milhão e um milhão e meio de pessoas morreram ali. Como todos os outros campos de concentração, os campos de Auschwitz eram dirigidos pela SS comandada por Heinrich Himmler.

(6) Emmanuel Kant foi um filósofo alemão, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, um representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta sua faceta idealista sido um ponto de partida para Hegel. Aparte essa vertente idealista que iria desembocar na filosofia de Hegel (e Marx), alguns autores consideram que Kant fez ao nível da epistemologia uma síntese entre o Racionalismo continental  e a tradição empírica inglesa. Kant é famoso sobretudo pela sua concepção conhecida como idealismo transcendental - todos nós trazemos formas e conceitos a priori (que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar. A filosofia da natureza e da natureza humana de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes do relativismo conceptual que dominou a vida intelectual do século XX. No entanto, é muito provável que Kant rejeitasse o relativismo nas suas formas contemporâneas, como por exemplo o Pós-modernismo. Sobre Kant, leia também a edição 93 da Revista IHU On-Line, a edição 2 dos Cadernos IHU em formação e a edição 23 dos Cadernos IHU Idéias.

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