Erri De Luca e a Bíblia, civilidade da primeira pessoa. Artigo de Luigino Bruni

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21 Novembro 2025

"Nomes próprios, primeiras pessoas, nomes singulares: muitos eu. A Bíblia reconhece o humanismo do eu; é a civilidade da primeira pessoa do singular. De Adão a Cristo, ela nos diz que a salvação vem porque sobrou um homem justo que salva a todos", escreve Luigino Bruni, Professor Titular de Economia Política na Lumsa de Roma e Diretor Científico da Economia de Francisco, em L'Osservatore Romano, de 19-11-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

No mundo bíblico, o nome de uma pessoa é muito importante, diz quase tudo: “Por que perguntas pelo meu nome?”, pergunta Jacó ao misterioso lutador do rio Jaboque. “E ali o abençoou” (Gn 32,29). No livro de Juízes, lemos: “E disse Manoá ao anjo do Senhor: Qual é o teu nome, para que, quando se cumprir a tua palavra, te honremos? E o anjo do Senhor lhe disse: Por que perguntas assim pelo meu nome, visto que é maravilhoso” (Juízes 13,17-18). A Bíblia sabia bem que pronunciar o nome de uma pessoa significa, em muitos casos, reconhecer o seu mistério, a sua natureza e, portanto, a sua vocação e o seu destino. E nós também, quando decidimos não mais reconhecer e esquecer um colega, uma esposa, um amigo, a primeira coisa que fazemos é evitar pronunciar o seu nome – “aquele, o fulano, ele, o cara, o seu amigo”... Usamos todos os pronomes à nossa disposição e até inventamos novos só para evitar pronunciar aquele nome novamente, porque sabemos que aquele nome fala ao coração e diz algo que não gostaríamos mais de ouvir, e se o pronunciássemos, significaria reconhecer uma intimidade e uma benevolência que já não existem mais. É por isso que toda reconciliação com os inominados começa por voltar a chamá-los pelo nome. Durante a guerra, os inimigos não são chamados pelo nome, e as guerras terminam quando se começa, um abençoado dia, a pronunciar o primeiro nome do inimigo de ontem. Há cristãos que foram reconhecidos como tais simplesmente pela pronúncia diferente do nome "Jesus". E há outros que não perderam a fé porque, mesmo tendo esquecido todas as orações, nunca deixaram de repetir, até o fim, apenas um único nome: "Jesus".

Erri De Luca escreveu esse livro original, com sua prosa bela e inconfundível, seguindo o rastro dos nomes de alguns personagens bíblicos (do Antigo Testamento, ou melhor, da Bíblia Hebraica), aqueles nomes que entram para a história bíblica e para a história de todos pela primeira vez graças às pessoas que os carregam.

Le Prime Persone (As Primeiras Pessoas, Feltrinelli, 122 páginas, €15,00): "Quem são as Primeiras Pessoas? Aqueles que carregaram um nome que não existia antes deles, inaugurando o registro civil." Breves autobiografias fantásticas, pois as 76 entradas que compõem o livro são escritas em primeira pessoa pelos próprios personagens. Portanto, apenas os primeiros nomes "principais", ou seja, os principais de acordo com Erri De Luca, que batizou como “principal” alguns nomes que outros escritores bíblicos não teriam considerado "principal" (como a Rainha Vasti), e não incluiu nomes que outros autores teriam considerado essenciais — Rute, Noemi e Boaz, ou , como reconhece De Luca, resgatando-o no final do livro.

Nomes próprios, primeiras pessoas, nomes singulares: muitos eu. A Bíblia reconhece o humanismo do eu; é a civilidade da primeira pessoa do singular. De Adão a Cristo, ela nos diz que a salvação vem porque sobrou um homem justo que salva a todos. Em alguns momentos decisivos, a massa crítica para uma grande mudança é um. Noé, Abraão, Moisés, os profetas, Elias, Ester, Maria, Paulo: por mais importante e belo que seja o "nós", a Bíblia ama o "eu" acima de tudo. Para nos lembrar que o "nós" não salva ninguém a menos que em seu coração haja pelo menos um "eu" que obedeça a uma voz e responda livremente. Essa é a raiz daquele princípio personalista que está no cerne do humanismo ocidental, que hoje, fascinado pelo "novo nós" (fechados e amedrontados), continua a repetir que nenhum grupo social supera em dignidade a pessoa individual; no máximo, pode igualá-la. No "cálculo da dignidade" dos grupos humanos, as regras da aritmética não se aplicam. O valor da dignidade humana não se mede pela soma, porque o primeiro adendo já possui si um valor infinito em si mesmo — aqui, "um mais um" sempre e somente é igual a um, e isso nos basta. Ontem e hoje, será sempre um "eu", uma pessoa primeira, a salvar uma família, uma empresa, talvez o mundo.

Aqui estão algumas frases dessas vozes. "O nome que minha mãe me deu é leve como um suspiro: Hèvel. Talvez ela o tenha pronunciado por um pressentimento. Eu criava animais, pastando em terras compartilhadas com meu irmão agricultor. Nossas atividades não se acertavam. Foi ali que me atingiu, ao ar livre, em plena luz do dia. Eu não me defendi, ele era meu irmão mais velho... A morte humana era completamente desconhecida antes de mim... Sem filhos, sou filho; sem a velhice, permaneci incompleto." (Hèvel/Abel). Aqui, De Luca cita, sem citá-la, a Sura 5 do Alcorão: "Ainda que levantasses a mão para assassinar-me, jamais levantaria a minha para matar-te,” Essas são as palavras que, na versão corânica da história, Abel dirige a Caim quando pressente que seu irmão está prestes a golpeá-lo (Alcorão, Sura 5,28). Então Caim: "Ele me tirou o direito exclusivo do dom. Matei-o para permanecer o único, sem concorrentes junto ao artífice... A partir de então, todo assassino é um fratricida" (Kàin/Caim). Aqui também encontramos um paralelo com a interpretação desse primeiro fratricida dada por Massimo Recalcati (La legge della parola, 2022). Para Recalcati, também, aquele assassinato foi o efeito do não ser, Caim, não mais o único após a chegada de Abel, mas para Recalcati, a unidade ameaçada era aquela em relação a Eva, não de Elohim.

Cada página do livro contém pelo menos uma pérola, literária e/ou sapiencial: "Percebo que a voz vem de dentro, não de fora, como acontece nos sonhos" (Shmuèl/Samuel), uma belíssima definição do que é uma vocação, religiosa ou laica. Também, Jonas é belíssimo: "Mas não há como escapar da voz". Ele é salvo do naufrágio "no arremesso de uma segunda placenta", onde De Luca faz implicitamente referência ao termo que a Bíblia usa para aquele grande peixe: dagà, que é uma palavra feminina. Aquela voz "ainda me assombrava", "minha crônica terminava com o silêncio de um profeta desmentido" (Jonà/Giona).

Entre as Pessoas Primeiras, encontramos muitos profetas, e não é de se surpreender: os profetas bíblicos são pura inovação, o inédito que irrompe na história: "Ele colocou suas palavras na minha boca. Eu nem precisava me lembrar delas, saíam sozinhas... Tarefa mais infeliz não poderia existir: expor-se como derrotista e traidor, enquanto a cidade lutava para resistir." No fim, após quarenta anos de profecias ignoradas, “permaneci entre as ruínas de Jerusalém até ser levado como refugiado para o Egito, morrendo naquele exílio. Lá também, a divindade foi comigo, como prometido. Desde a destruição do templo, ela também está sem moradia fixa. Ela permanece com os refugiados, fala a partir de um livro” (Irmiàu/Jeremias). As mulheres também são bem presentes nas páginas de De Luca: “É a única festa, chamada Purim, não prescrita pela divindade, e fui eu, uma mulher, quem a inaugurou” (Ester). E, finalmente, Vasti, a rainha repudiada pelo rei assírio Assuero, por ter feito, por dignidade, a grande recusa: “Não quis me expor ao olhar de homens embriagados pelo vinho”. Portanto, “fui deposta e mantida em reclusão perpétua. Àqueles que me perguntam se eu faria tudo de novo, respondo: cem vezes mais”.

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