A festa apócrifa da “Apresentação de Maria no Templo”. Mãe corredentora? E Zumbi dos Palmares? Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria

Escultura de Zumbi dos palmares, em Salvador (BH) | Foto: Gov/Wikimedia Commons

Mais Lidos

  • Um amor imerecido nos salvará. Artigo de Enzo Bianchi

    LER MAIS
  • O novo jogo do poder. Artigo de Paolo Benanti e Sebastiano Maffettone

    LER MAIS
  • A festa apócrifa da “Apresentação de Maria no Templo”. Mãe corredentora? E Zumbi dos Palmares? Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

21 Novembro 2025

"Que a memória de Maria e de Zumbi nos inspire bons propósitos de vida cristã consagrada à redenção, na paz e no bem!", escreve frei Jacir de Freitas Faria.

Jacir de Freitas Faria é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de treze livros e coautor de quinze. Publicou recentemente Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento (Vozes, 2025). São 784 páginas com a tradução de 67 apócrifos do Novo Testamento sobre a infância de Jesus, Maria, José, Pilatos, apocalipses, cartas, atos etc. Canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.

Eis o artigo.

O texto que inspira nossa reflexão é Mt 12,46-50, passagem utilizada na celebração da Apresentação de Nossa Senhora no Templo, na qual é mencionada a mãe e os irmãos de Jesus, quatro homens e duas mulheres, filhos de José com sua primeira esposa. Seria de um deles, Tiago, a autoria de um evangelho que narra como foi a apresentação de Maria no Templo de Jerusalém, que foi cuidada pelos sacerdotes e educada na fé judaica. Aquela, que viria ser a mãe de Jesus, exercia liderança sobre os outros nazireus, os consagrados. Maria permaneceu no Templo dos três aos doze anos. Quando, então, foi escolhida para ser a esposa do idoso José, de Belém, numa cerimônia de apresentação de bastões levados por homens de Jerusalém. José foi escolhido, pois quando o Sumo Sacerdote apresentou o seu bastão, ele floriu e uma pomba posou sobre a sua cabeça [1]. 

Mateus 12 cita também da mãe de Jesus. Na história do cristianismo, Maria foi proclamada “Mãe de Deus”, em 431, na cidade de Éfeso. Decorrente dessa afirmação de fé, na Idade Média (sec. XV), Maria foi chamada de corredentora na salvação juntamente com Jesus. Na verdade, a Igreja nunca oficializou essa terminologia para Maria, pois ela pode criar empecilhos no diálogo ecumênico e negar Jesus como único mediador na salvação. O recente documento do Papa Leão XIV, afirmando que Maria não é corredentora, segue a orientação do Concílio Vaticano II (1962-1965), o qual afirmou que Maria teve um papel subordinado a Cristo no trabalho da redenção. Na verdade, a figura de Maria, que não foi cultuada nos primeiros séculos do cristianismo pelo fato de ter sido martirizada, ganhou força na Idade Média, motivada pela insistência da Igreja no discurso do medo da morte e do Inferno. Jesus passa a ser um juiz implacável, e Maria, a advogada de defesa e, em decorrência disso, corredentora. Maria é, na verdade modelo de fé e esperança na luta pela libertação, a Maria do Magnificat (Lc 1,46-56).

Feitas essas considerações sobre os irmãos e a mãe de Jesus, voltemos à temática da festa de Apresentação de Nossa Senhora no Templo. Considerada pela Igreja Ortodoxa (Oriente) como uma de suas Doze Grandes Festividades litúrgicas, essa festa é celebrada nessa região desde 543 E.C. Ela foi incorporada no calendário litúrgico da Igreja do Ocidente (Romana) somente no século XVI, no dia 21 novembro de 1585, pelo Papa Sisto V, quando o culto a Maria foi revigorado. O primeiro tratado sobre Mariologia (estudo sobre Maria) é do ano 1602.

Os irmãos de Jesus eram quatro homens e duas mulheres, a saber: Judas, Joseto, Tiago e Simão; Lísia e Lídia [2]. A Tiago, conhecido também como “Irmão do Senhor” e primeiro bispo de Jerusalém, foi atribuído o Protoevangelho segundo Tiago ou Natividade de Maria, escrito em Alexandria entre os anos 150 a 200 [3]. Segundo esse relato, Joaquim, pai de Maria, teve a sua oferta rejeitada no templo por não ter dado descendência para Israel. E ele vai para as montanhas jejuar e lamentar. Ana faz o mesmo em casa até o dia em que o anjo do Senhor lhe aparece, e diz: “Ana, Ana, o Senhor Deus ouviu a tua oração. Conceberás e darás à luz e, em toda a terra, se falará de tua descendência” (Bíblia Apócrifa, p. 124-126). Ana respondeu: “Tão certo como vive o Senhor Deus, se nascer um fruto de meu seio, seja menino, seja menina, eu o levarei como oferenda (para ser consagrada) ao Senhor, meu Deus, e ele o servirá todos os dias de sua vida”.

Ana, então, concebeu uma menina. No nono mês deu à luz. Ela perguntou à parteira: “A quem dei à luz?”. A parteira respondeu: “Uma filha!”. Ana exclamou: “Hoje minha alma foi enaltecida”. E deitou a criança. Quando se completaram os dias prescritos pela lei, Ana fez as purificações pelo parto, deu o peito à criança e a chamou de Maria.

Joaquim deu uma festa para celebrar o primeiro ano de vida de Maria. Naquele dia, Joaquim apresentou a menina aos sacerdotes. Estes a abençoaram, dizendo: “O Deus de nossos pais abençoa esta criança e dá-lhe um nome glorioso e eterno por todas as gerações”. E todo o povo respondeu: “Assim aconteça! Amém!”. E os sacerdotes apresentaram-na aos chefes dos sacerdotes, que a abençoaram, dizendo: “Oh! Deus Altíssimo, lança teu olhar sobre esta menina e concede-lhe a mais ampla bênção, além da qual não haja outra”.

Sucediam-se os meses para a criança. A menina atingiu os dois anos, e Joaquim disse: “Vamos levá-la ao Templo do Senhor, para cumprir a promessa que fizemos, a fim de evitar que o Soberano Senhor nos puna ou que nossa oferta seja rejeitada”. Ana respondeu: “Esperemos o terceiro ano, para que ela não sinta falta de seu pai e de sua mãe”. Disse Joaquim: “Esperaremos”.

Quando a menina chegou aos três anos, disse Joaquim: “Convidemos as filhas dos judeus que são puras, para que tomem suas lamparinas e as conservem acesas para acompanhá-la. Desse modo, a menina não voltará atrás e seu coração não será preso por nenhuma coisa fora do Templo do Senhor”. E assim o fizeram, até chegarem ao Templo do Senhor. Ao chegar ao Templo, Maria subiu velozmente os 15 degraus do Templo, sem sequer olhar para trás e nem procurar pelos pais.

O sacerdote a recebeu e, depois de beijá-la, abençoou-a, dizendo: “O Senhor exaltou teu nome por todas as gerações. Em ti, nos últimos dias (na vinda do Messias), o Senhor mostrará a salvação aos filhos de Israel”. E o sacerdote a fez sentar-se no terceiro degrau do altar, e o Senhor fazia descer sobre ela a sua graça. Ela dançou com os pés e foi amada por toda a casa de Israel.

Joaquim e Ana voltaram para a casa, louvando e glorificando a Deus, Soberano Senhor, porque a menina não tinha voltado para junto deles. A tradição da Igreja Copta (Egito) afirma que Maria estava com seis anos, quando seu pai Joaquim morreu. Ana morreu dois anos depois. E Maria permaneceu servindo a Deus no Templo do Senhor até a proximidade de sua menarca (doze anos).

A memória desses cristianismos perdidos sobre a Apresentação de Maria no Templo surgiu para enaltecer a figura de Maria na história da Salvação, e poderá ter possibilitado o seu título de corredentora. A festa da Apresentação de Nossa Senhora só tem sentido se celebrada para ressaltar o valor de nossa consagração, adesão a Deus, tendo como inspiração a preparação de Maria, no Templo de Jerusalém, para ser a mãe de Deus. Ela torna-se modelo de fé para os cristãos. A criança educada no Templo proclamou, na fase adulta da vida, a derrubada dos poderosos e a exaltação dos oprimidos. Devoção e libertação são fundamentais para a fé de inspiração mariana.

A partir da fé libertária de Maria, gostaria de recordar uma figura importante, modelo de resistência de um povo no Brasil, celebrado um dia antes da festa da Apresentação de Maria no Templo. Estou me referindo à memória de Zumbi, líder de resistência do povo negro no Brasil Colônia. Conhecido como Zumbi dos Palmares, região de Alagoas, onde viveu entre os anos de 1665 e 1695. Ainda criança, ele foi capturado e educado como católico por um missionário. Casado com a líder negra Dandara, com quem teve três filhos. O adulto Zumbi se uniu ao seu povo que resistia em quilombos, lugares onde viviam os escravizados que fugiam da exploração escravocrata dos grandes fazendeiros de cana-de-açúcar e da dominação holandesa, no nordeste brasileiro.

Zumbi, nome africano que evoca o deus da guerra, foi a última liderança negra do Quilombo de Palmares, serra da Barriga, na luta contra a escravidão, pela liberdade de culto e pela prática da religião africana no Brasil Colônia. Diante da lenda que se criou de que ele não morreu, o governo mandou decapitá-lo e levar a sua cabeça e expô-la em praça pública, na cidade de Recife. Isso ocorreu no dia 20 de novembro de 1695, data escolhida para celebrar o Dia da Consciência Negra no Brasil.

Que a memória de Maria e de Zumbi nos inspire bons propósitos de vida cristã consagrada à redenção, na paz e no bem!

Notas

[1] FARIA, Frei Jacir de Freitas, Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2025, p. 127. 

[2] FARIA, Frei Jacir de Freitas, Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2025, p. 253.

[3] FARIA, Frei Jacir de Freitas, Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2025, p. 409.

Leia mais