04 Dezembro 2020
"Nenhum livro sofre mais abuso de ser tomado em vão do que a Bíblia. Palavra de Deus para nós cristãos, judeus e muçulmanos, descontextualizá-la é violá-la", Frei Betto, frade dominicano, escritor e autor de “Diário de quarentena” (Rocco), entre outros livros.
Todo texto deve ser lido dentro de seu contexto. Pinçar a frase de um autor para embasar uma afirmativa é correr o risco de adulterar o sentido da narrativa. Antes de fazer da frase bandeira de minhas convicções, um mínimo de honestidade intelectual exige que eu pergunte qual o sentido na narrativa, o que o autor quer dizer, qual o significado das palavras.
Nenhum livro sofre mais abuso de ser tomado em vão do que a Bíblia. Palavra de Deus para nós cristãos, judeus e muçulmanos, descontextualizá-la é violá-la. Há pessoas tão apegadas à letra do texto bíblico (e não ao Espírito, como sugere o apóstolo Paulo) que, por ignorância, acreditam mesmo que toda a humanidade decorre de um casal, Adão e Eva. Não se dão conta de que a Bíblia jamais teve a pretensão de fazer ciência. É um livro religioso, escrito em diferentes épocas e à luz de distintas culturas. Adão, em hebraico, significa homem feito de barro; Eva, vida. O Gênesis quer apenas nos ensinar que, graças ao Criador, a vida humana brotou da natureza.
Ler a Bíblia fora do contexto pode induzir o fiel desavisado a odiar seu pai e sua mãe para aderir a Jesus (Lucas 14, 26). Um cristão tinha por hábito sortear, toda manhã, um versículo dos evangelhos como motivação espiritual. Ao abrir o texto em “Amai o próximo como a si mesmo”, adotou, naquele dia, postura mais atenciosa com a faxineira, o ascensorista e a copeira do escritório.
Dia seguinte caiu-lhe o versículo 5 do capítulo 27 de Mateus, sobre a culpa de Judas: “E ele foi e se enforcou”. Ciente de que a vida é o dom maior de Deus, permitiu-se outra chance. Deparou-se com o último versículo da parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça o mesmo”.
Ora, como Deus não quer o mal, ele se deu uma última oportunidade. Veio-lhe este versículo da paixão de Jesus em João: “O que tem a fazer, faça depressa” (13, 27)...
O teólogo e biblista Marcelo Barros conta a história de um pastor que, em Los Angeles, mantém um programa de TV muito apreciado nas manhãs de sábado. Um dia, o pastor leu no auditório a carta que recebera:
“Caro pastor Jeffrey, me chamo Jonathan Pierce. Tenho 40 anos e frequento a Igreja Batista da North Street. Há alguns dias, ao chegar em casa, encontrei minha esposa deitada com outro homem. Rompi o casamento e abandonei o lar. Minha filha adolescente deu razão à mãe, com o pretexto de que sou muito ausente e minha esposa tem direito de ser feliz”.
“Nesse momento de grande sofrimento, recebi ajuda de um amigo de infância que é gay e sempre me quis como companheiro. Penso em fazer uma experiência nova neste caminho. No entanto, o pastor de minha Igreja avisou que eu teria de deixar a comunidade. Por isso, lhe escrevo para perguntar se o senhor receberia a mim e ao meu companheiro em sua Igreja”.
Após ler a carta, o pastor respondeu:
“Caro Jonathan. Podemos aceitá-lo em nossa Igreja se você rejeitar o pecado e renunciar ao vício. Seguimos a Bíblia Sagrada e, de acordo com Levítico 20, versículo 13, se um homem deita com outro homem ambos cometem abominação e devem ser eliminados da comunidade. Portanto, se você desistir deste mau caminho e se converter, será bem-vindo em nossa Igreja. Deus o abençoe”.
No sábado seguinte, o pastor abriu o programa com fisionomia tensa, e explicou aos telespectadores: “Meus irmãos, a Justiça do Estado da Califórnia me obriga a ler aqui esta carta:”
“Caro pastor Jeffrey, quero agradecer sinceramente ao senhor por ter me orientado e me guiado para o texto sagrado da Bíblia neste momento difícil que estou vivendo. O senhor citou o capítulo 20, versículo 13 do Levítico, para mostrar que não posso participar da Igreja se deito com outro homem, e isso me foi muito útil. Agradeço muito. Principalmente porque abri a Bíblia e li o capítulo. E descobri que o senhor tem toda razão. O versículo 13 diz que se eu dormir com outro homem devo ser morto. Mas, achei maravilhoso descobrir, no mesmo livro, capítulo 20, versículo 10, que a minha mulher e o homem que se deitou com ela devem ser apedrejados, e minha filha, que me rejeitou como pai e tomou posição contra mim, também (versículo 9). Portanto, venho com esta carta afirmar que renuncio a viver relações homoafetivas, mas faço questão de apedrejar minha mulher adúltera, o homem com o qual ela se deitou e a minha filha rebelde. Como sei que o senhor cumpre a Bíblia Sagrada ao pé da letra, então, peço que junte as pedras, porque no próximo sábado, às nove da manhã, na hora do culto, chegarei aí com minha mulher e minha filha amarradas e nuas, como manda a lei de Deus, e também com o homem pecador. E nós, crentes de Deus, vamos apedrejar os três até morrerem. E aí, sim, cumpriremos o capítulo do Levítico que o senhor me ensinou a ler. Muito obrigado. Atenciosamente, Jonathan Pierce”.
Jesus criticou duramente os fariseus por tomarem a Bíblia ao pé de letra, como pagar o dízimo, e deixarem de lado o que importa – a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mateus 23,23).
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Tomar a Bíblia ao pé da letra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU