20 Outubro 2020
A Biblioteca Apostólica Vaticana conserva inúmeros manuscritos do texto bíblico, estudados do ponto de vista da língua, da escrita e das iluminuras.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 18-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na quarta sala da Pinacoteca do Vaticano, está colocada uma imponente tela de 3,70m x 3,15m sobre a qual foi transferido um afresco de Melozzo da Forlì. Poucos, no fluxo dos visitantes, prestam atenção nela, ao contrário do sentimento que eu sinto pessoalmente por causa de uma parte relevante da minha vida dirigindo uma biblioteca histórica, a Ambrosiana de Milão.
De fato, essa pintura é semelhante a uma gigantesca fotografia que fixa de modo verídico o ato da Investidura do Plátina (esse é o título atribuído à obra). Aos pés do trono – onde se senta o Papa Sisto IV della Rovere (aquele que deu o nome à Capela Sistina), rodeado por nada menos do que quatro sobrinhos cardeais, aos quais se junta Giuliano della Rovere, o futuro Júlio II – está ajoelhado precisamente o Plátina que era o apelido de Bartolomeo Sacchi, nascido em 1421 na atual Piàdena, na província de Cremona, em latim Plàtina.
Pois bem, essa fotografia pictórica fixava a investidura do prefeito da Biblioteca Apostólica Vaticana, ocorrida em 1477, a instituição gloriosa fundada cerca de 30 anos antes pelo Papa Nicolau V Parentucelli. No palácio apostólico, esse pontífice havia encontrado apenas 350 códices, acrescentou imediatamente 50 pessoais e iniciou uma campanha de aquisições, tanto que, na sua morte em 1455, o inventário oficial da Biblioteca incluía mais de 1.200 manuscritos, um terço dos quais eram gregos.
É sob a insígnia da cena descrita acima e do evento germinal da Biblioteca Vaticana que propomos aos leitores um maravilhoso volume, sucintamente intitulado “Bibbia” [Bíblia] e especificado com dois termos igualmente essenciais, “Imagens e escritura”, naturalmente destinado a abrir o extraordinário baú dos textos bíblicos conservados naquela que é considerada um pouco como a rainha das bibliotecas.
Embora a Vaticana não seja uma coleção de recorte apenas religioso (pensemos, por exemplo, no precioso “Virgílio Romano” do século V, ou nas “Comédias” de Terêncio, copiadas por volta de 825 com 150 miniaturas, ou no tratado sobre falcoaria de Frederico II, ou na “Comédia” de Dante ilustrada por Botticelli e assim por diante), a Bíblia tem um primado de honra, e é precisamente esse volume suntuoso que atesta isso através de dois caminhos.
O primeiro é o fundamental e é constituído pelos 44 ensaios que compõem o aparato crítico elaborado por especialistas de alto perfil, começando pelo atual vice-prefeito, Timothy J. Janz, que recentemente substituiu o curador da obra, Ambrogio M. Piazzoni. As ramificações desse caminho introduzem-nos, acima de tudo, na difusão das Sagradas Escrituras nas várias culturas, através das versões dos originais hebraico e grego em latim, em copta, em árabe, em eslavo, em etíope, em siríaco, em armênio, em georgiano e em gótico.
Entre outras coisas, não devemos esquecer que existem na Biblioteca “coleções abertas”, aumentados no passado e ainda hoje, incluindo outras línguas como o turco, o persa, os idiomas do Extremo Oriente, o romeno, o ibérico, o samaritano, as várias coleções da Indochina, mandeias e assim por diante.
Uma outra ramificação desse caminho filológico aponta para os centros escriturais e artísticos cujos copistas e iluminadores montavam as joias textuais bíblicas em áreas e em épocas diferentes, da antiguidade bizantina e hebraica, passando pelo início da Idade Média (séculos VI-IX), a era otoniana e românica (séculos X-XII), passando pela importante era gótica (séculos XIII-XIV), até chegar ao Renascimento (século XV).
Obviamente, essas etapas são marcadas pela análise de exemplares frequentemente fascinantes (o Evangeliário Barberini e o Bretão, o Saltério de Bury, a Bíblia de Ripoll, as Bíblias atlânticas, a do Duque de Berry para o Papa Clemente VII, os manuscritos florentinos da biblioteca de Urbino de Federico da Montefeltro, apenas para citar algumas obras famosas).
Finalmente, um espaço específico e mais reduzido é reservado nesse primeiro itinerário às tipologias textuais e ao seu uso, por exemplo, litúrgico (evangelistários, epistolários, saltérios destinados ao culto), ou didático-moral ou pessoal (a Bíblia portátil), e aqui se chega à fatídica data de 1452-1455, quando Johannes Gutenberg, em Mainz, imprimiu a primeira Bíblia tipográfica, a chamada “B 42” devido ao número das suas linhas em duas colunas por página.
A Biblioteca Vaticana tem uma delas, em dois volumes, da mais antiga edição em pergaminho: curiosamente, o impressor talvez sentia a nostalgia do códice iluminado; é por isso que decorou o exemplar vaticano com dezenas de iniciais ornamentais em têmpera e ouro pintadas à mão.
Como é evidente, o mapa desse volume é fascinante não só para o estudioso, mas também para quem ama aquele “grande código” da cultura ocidental que são as Sagradas Escrituras.
Falávamos, porém, de dois caminhos: é no segundo que o fascínio aumenta, especialmente para o leitor profano. Trata-se do aparato iconográfico, um verdadeiro hortus deliciarum para os olhos que podem contemplar imagens irrevogáveis por beleza. Não é à toa que foi convocada uma autoridade no campo da miniatura, Francesca Manzani da “Sapienza” de Roma, para colaborar com Piazzoni na composição do plano dessa obra.
Mais do que um caminho, nesse caso devemos nos referir a uma peregrinação em um horizonte sacral onde a palavra “inspirada” divinamente floresce através da “inspiração” do artista. O nosso pensamento volta-se para a estupenda metáfora de Dante reservada a um miniaturista de códices do século XIII: “... ridon le carte / che pennelleggia Franco Bolognese” [“mais prazer disparte o que pincela o Franco bolonhês”, na tradução de Italo Eugenio Mauro, Ed. 34] (Purgatório XI, 82-83).
Na genealogia bíblica desenhada pelos vários ensaios, é possível identificar o primeiro elo ideal, ou seja, o manuscrito mais antigo: é o Papiro Hanna 1 (P75), originário do Egito, onde foi composto entre 180 e 220, inicialmente em 144 folhas dos quais permanecem hoje, em páginas desfolhadas, apenas cerca de 70. É a primeira atestação quase completa dos Evangelhos de Lucas e João, aos quais se associa por uma quase contemporaneidade o Papiro Bodmer 8, o mais antigo testemunho das Cartas de Pedro do Novo Testamento.
Mas, para os biblistas, o arquétipo supremo é o grandioso e extraordinário Codex Vaticanum (ou B), confeccionado em pergaminho apenas um século depois do Papiro Hanna 1. A sua imponência já impressiona em um nível quantitativo: 759 folhas (das cerca de 800 originais) em um total de 1.518 páginas em escritura maiúscula regular, que contêm o Antigo e o Novo Testamento, o primeiro na versão grega dos Setenta (com exceção dos livros dos Macabeus).
E o último elo dessa genealogia de textos bíblicos? Querendo permanecer nos manuscritos, é a Bíblia copiada e ilustrada em sete volumes do estadunidense Donald Jackson que, seguindo as técnicas dos antigos copistas, trabalhou entre 1998 e 2012, usando a New Revised Standard Bible. A Biblioteca conserva o seu fac-símile, enquanto o original está em Collegeville, Minnesota.
Mas, querendo entrar no reino da informática, a surpresa está em um disco de quartzo fundido de 22 milímetros de diâmetro: lá foi concentrada em 2017 toda a Nova Vulgata latina, texto oficial no culto católico. Foram os laboratórios da universidade inglesa de Southampton que executaram a obra, segundo a tecnologia denominada “5D optical”. Os especialistas estão convencidos de que essa Bíblia – legível por meio de um microscópio específico – não se deteriorará por milhões de anos, mesmo sendo lida. A hybris um pouco ingênua dos técnicos que a prepararam levou-os a chamá-la de “Holy Bible Preserved for Eternity” [Bíblia Sagrada Preservada para a Eternidade]!
No entanto, se poderia observar que, para a Bíblia, é apenas a Palavra de Deus em si mesma que “permanece eternamente”. Afinal, até mesmo na quilha do Titanic estava gravado o lema “Só Deus pode me afundar!”. Infelizmente, como se sabe, Deus aceitou o desafio...
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Grandes Bíblias em miniatura. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU