15 Agosto 2025
No céu da pátria nesse instante é um documento que mergulha nas eleições de 2022 para radiografar o Brasil cindido. Há um tom jornalístico, mas sua força está em “filmar o inimigo” sem ridicularizá-lo: deixá-lo falar, se expor, se revelar…
O comentário é de José Geraldo Couto, publicado por Blog do Cinema do IMS, e reproduzida por Outras Palavras, 14-08-2025.
Eis o comentário.
Visto de fora, de maneira apressada e superficial, o documentário No céu da pátria nesse instante, que entra em cartaz nesta quinta-feira, talvez cause a impressão de déjà-vu. Afinal, trata-se de acompanhar as eleições de 2022, desde o início das campanhas eleitorais até seu rescaldo violento, a invasão dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023.
Mas o filme de Sandra Kogut, premiado no festival de Brasília em 2023, segue atual, em primeiro lugar, porque a cisão do país em duas metades aparentemente inconciliáveis está mais viva do que nunca – no parlamento, nas ruas, nas redes. Acresce a isso que o próprio conceito de pátria está em discussão desde que o campo bolsonarista, autoproclamado como “patriota”, passou a apoiar – e até a pedir – sanções contra o Brasil, suas instituições e sua economia.
Balizas político-ideológicas
Mas o que torna o documentário singular e instigante (agora que o adjetivo caiu de moda podemos voltar a usá-lo) é o modo como lida com a falsa questão da “neutralidade” ou da “objetividade” ao abordar uma realidade político-ideológica conflagrada.
Desse ponto de vista, são particularmente interessantes as duas participações da diretora, em áudio, uma no começo e a outra no final do filme. Na primeira, ela conversa com uma família de bolsonaristas paranaenses, liderada pelo caminhoneiro Ferreirinha. Eles se mostram satisfeitos de participar do documentário e até sugerem gravar em vídeo conversas informais do grupo para o filme. No último diálogo, de Sandra Kogut com Ferreirinha, já depois da vitória eleitoral de Lula, fica clara a divergência entre a diretora e o caminhoneiro, que tenta convencê-la sem argumentos de que a eleição foi fraudada.
O parágrafo acima é impreciso. Antes da conversa inicial de Sandra Kogut com o grupo paranaense, ainda com a tela preta, ouvimos uma mulher não identificada dizer que topa participar do documentário desde que a diretora “não seja uma esquerdinha, como a maioria do pessoal que faz cinema, porque se for pra favorecer os vermelhos eu tô fora”. Segundo essa pessoa, “quem está contra Bolsonaro está contra o Brasil”. Fim de papo.
E a citada conversa da diretora com o caminhoneiro também não é a última do filme. Depois dela, Sandra fala com Juliano Maderada, o compositor da música satírica “Tá na hora do Jair já ir embora”, cujo refrão contagia, em tom de apoteose, os créditos finais.
Essas são, digamos, as balizas político-ideológicas do documentário, tornando transparentes as posições da diretora e de seus personagens “do outro lado”.
Filmar o outro
Claro que o filme tem muito mais coisas interessantes: os bastidores da campanha de Marcelo Freixo ao governo do Rio, o esforço de funcionários da justiça eleitoral para levar urnas e garantir o funcionamento da votação nos confins do país, a ação dos cabos eleitorais, os acampamentos bolsonaristas depois da derrota, o quebra-quebra de 8 de janeiro visto de outros ângulos, etc. Mas isso tudo se insere, digamos, no campo do jornalismo, com câmera na mão, agilidade na montagem, profusão de informações. Algo que nos habituamos a ver em bons programas como “Profissão repórter”.
Do ponto de vista cinematográfico – e também político – o que me parece mais forte é sua maneira de “filmar o inimigo”, para usar a terminologia do cineasta francês Jean Louis Comolli. “Filmar o inimigo”, diz Comolli, “é fazê-lo entrar em um filme junto comigo (…), permitir que ele faça sua própria mise-en-scène”. É isso o que faz, a seu modo, Sandra Kogut em No céu da pátria nesse instante.
Para questionar seus personagens e afirmar sua própria visão do mundo, a diretora não recorre a um discurso extrafílmico, não distorce ou ridiculariza a visão do “outro”. Simplesmente deixa que esse outro fale, se exponha, deixe claras suas ideias, ou a falta delas.
A esposa de Ferreirinha diz a certa altura que tinha vergonha do pai sem-terra, porque uma professora na escola “ensinou” a ela que os sem-terra eram “vagabundos que queriam terra sem trabalhar”. O próprio Ferreirinha, acompanhando pela TV a apuração dos votos, comenta mais ou menos o seguinte: “Tem que dividir mesmo o Brasil. Esse pessoal do Nordeste tem mais é que se ferrar, bando de vagabundo”. No culto evangélico de que participam, o pastor diz que as eleições são importantes porque não podemos deixar que o Brasil vire uma Cuba, uma Venezuela.
Um Brasil, outro Brasil
Fica evidente a discrepância lógica entre duas visões do país. O próprio Ferreirinha explicita isso na última conversa com a diretora: “Vai ser difícil debater um assunto, porque parece que eu estou em um Brasil e você está em outro Brasil”.
A cisão trágica continua em carne viva, a despeito da catarse final da canção carnavalesca. Para quem considere parcial ou tendenciosa a abordagem de Sandra Kogut, sempre há a possibilidade de recorrer aos vídeos e documentários da produtora direitista Brasil Paralelo.
De quem é a pátria, afinal? De todo mundo a quem, por sorte ou azar, calhou viver neste enorme país ao sul do Equador. Como escreveu Mário de Andrade, “pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der”. O que fazer com ela são outros quinhentos (anos?).
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