Brasil, nação “interrompida”? Artigo de Valerio Arcary

Foto: Ricardo Stuckert | PR

17 Mai 2025

O Brasil, o país mais importante ao sul do Equador, é uma sociedade fraturada por uma aberração histórica: séculos de escravidão e uma desigualdade anacrônica. Muitos autores, marxistas e liberais, tentaram decifrar o enigma da emancipação brasileira, mas poucos entenderam que ela só será viável se for ambientalista, educacional, democrática, agrária, negra, feminista, operária, popular, anticapitalista e anti-imperialista.

O artigo é de Valerio Arcary, historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor do livro O martelo da história: ensaios sobre urgência da revolução contemporânea (Sundermann, 2016), publicado por Jacobin, 15-05-2025. 

Eis o artigo. 

"Melhor uma crítica sensata que um elogio exagerado." Provérbio popular português

Uma nação não é mesmo que um Estado. Há nações oprimidas sem Estado, como os palestinos e curdos. Há Estados que exercem poder sobre várias nações, como o Espanhol, que oprime catalães, bascos, e galegos, entre outros. Toda nação tem determinações objetivas – uma geografia e uma história, espaço e tempo - mas é, sobretudo, a construção histórica da consciência que um povo tem de si mesmo. Uma nação está formada quando se consolida uma identidade nacional. Ou quando um povo se reconhece a si mesmo como uma “comunidade de destino compartilhado”, segundo Benedict Anderson.

Nessa dimensão, a nação é uma consciência de pertencimento. O Estado é um aparelho de coerção e representação do poder político. O país é uma síntese do Estado-nação. A maioria das nações foram construções políticas, porque os Estados anteciparam a nação. Em outras palavras, o padrão histórico foi a consolidação de Estados nacionais como instrumentos da transformação da sociedade, com suas estratificações raciais, sociais, regionais, linguísticas e culturais em uma nação. O sujeito social desta mobilização ideológica de um povo em nação foi, historicamente, a burguesia que, além de dominar, ambicionava conquistar hegemonia e dirigir.

A construção da nação foi uma das tarefas das revoluções democráticas. Mas assumiu formas diferentes em cada país. Nos países centrais aconteceu de forma pioneira, em comparação com a lentidão dos países na periferia do sistema internacional, e serviu para legitimar ideologias imperialistas. Já entre as ex-colônias, embora as variações tenham sido muito grandes, se compararmos América Latina, África e Ásia, o nacionalismo assumiu uma dupla e até contraditória dimensão: validou a dominação burguesa, mas teve, também, um papel progressivo de luta pela independência nacional.

Nação brasileira e revolução

Existe uma nação brasileira, porque o povo se identifica com um destino comum, mas o seu processo de formação foi muito complexo e conflitivo por, pelo menos, três fatores:

1) trezentos anos de escravidão onde foi imposto à maioria negra e indígena condições desumanas de superexploração e opressão;

2) um processo lento de construção do Estado Nacional;

3) o terrível atraso e incompletude da revolução burguesa.

A ideia original de uma nação em processo, porque a revolução burguesa ficou “inacabada” foi formulada por Caio Prado Jr.. A interpretação de uma nação “interrompida” responde à condição dependente diante da ordem imperialista, mas, também, à principal peculiaridade da história brasileira: a extrema desigualdade social.

O Brasil, o país mais importante ao sul do Equador, é uma sociedade fraturada por uma aberração histórica: um grau de injustiça social absurdo e monstruoso. O Brasil é o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das dez maiores economias do mundo, com vinte e duas cidades com um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população economicamente ativa em centros urbanos. Um laboratório histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Uma união do obsoleto e do moderno, um amálgama de formas arcaicas e contemporâneas. Insere-se no mundo como um híbrido de semicolônia privilegiada e submetrópole regional. Mas o desafio de uma interpretação marxista do Brasil é a resposta ao tema da principal peculiaridade nacional: a desigualdade social extrema. Essa é a nossa excepcionalidade. Essa é a chave da revolução brasileira.

Escravidão, desigualdade e burguesia

Se a chave de interpretação do Brasil é a desigualdade social, a chave da desigualdade é a escravidão. Sem compreender o significado histórico da escravidão é impossível decifrar a especificidade do Brasil. O capitalismo brasileiro perpetuou a escravidão até quase o fim do XIX. Uma escravidão tão longa e em escala tão grande deixou uma herança social que não é, somente, uma curiosidade histórica.

A população indígena, estimada em três milhões, dois milhões ao longo da costa, e um milhão nos interiores, foi dizimada quando da invasão. O Brasil conheceu a escravidão indígena até às reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII. A escravidão negra surge com as primeiras fazendas de monocultura de açúcar, a partir de 1530, e persistiu durante, aproximadamente, três séculos e meio. Estima-se que a população escrava não deve ter sido menor que um terço do total até 1850, e pode ter sido próxima à metade, ou pelo menos 40% no século XVIII, no auge da exploração do ouro das Minas Gerais.

No Brasil a burguesia surgiu no século XVI e o proletariado no final do XIX. Na Europa a burguesia se forjou, também, como classe muitos séculos antes da existência do proletariado moderno, mas como classe média proprietária, porém, oprimida, não como classe dominante, e teve que lutar pelo poder. A burguesia brasileira teve duzentos e cinquenta anos para se formar como classe dirigente, ainda que subordinada à metrópole.

O “caráter nacional” do povo brasileiro

Todas as nações capitalistas, no centro ou na periferia do sistema, são desiguais, e a desigualdade está aumentando desde a década de oitenta. Mas o capitalismo brasileiro tem um tipo de desigualdade anacrônica. Por que os graus de desigualdade social foram sempre tão, desproporcionalmente, elevados, quando comparados com as nações vizinhas, como Argentina, ou Uruguai?

Hipóteses reacionárias variadas foram elaboradas, ao longo de décadas. As mais influentes eram fundamentadas em premissas racistas, inspiradas pela eugenia, em um debate que não é somente histórico, porque nos informa sobre um traço, especialmente, aberrante da mentalidade de frações da classe dominante que ainda subsiste. Obras lusofóbicas como Evolução do Povo Brasileiro, de 1923, de Oliveira Viana, que defendia a necessidade do “embranquecimento” do povo, pretenderam explicar a desigualdade pelo atraso, e o atraso pela miscigenação de raças. Outras, como Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire, adepto da lusofilia, apresentam a miscigenação como uma chave de distinção progressiva no Brasil entre os países, como os Estados Unidos, em que se impôs a apartação racial, o apartheid.

A burguesia brasileira buscava intérpretes de sua história que pudessem legitimar uma demanda ideológica para o seu nacionalismo. A ideia de uma “nação de sangue” como fundamento da interpretação do caráter de um povo revelaria um destino histórico para a sociedade. A investigação do que seria o caráter do povo brasileiro passou então a ser o centro de um projeto ideológico.

A visão do Brasil como um país de povo dócil e intensamente emocional correspondia às necessidades da classe dominante de encontrar o “caráter nacional” do povo brasileiro, em uma época em que a sociologia estudava o caráter “enérgico” dos alemães ou “passional” dos italianos. A obra de Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, apresentou a ideia do “brasileiro cordial”. Mas Sergio Buarque estava preocupado em compreender, sobretudo, a aversão da classe dominante ao critério meritocrático liberal.

A mobilidade social do Brasil agrário era muito baixa e lenta. O Brasil era uma sociedade muito desigual e rígida, quase estamental. Era estamental porque os critérios de classe e raça se cruzavam, forjando um sistema híbrido de classe e casta que congelava a mobilidade. A ascensão social era somente individual e estreita. Dependia, essencialmente, de relações de influência, portanto, de clientela e dependência através de vínculos pessoais: o pistolão. O critério de seleção era de tipo pré-capitalista: o parentesco e a confiança pessoal.

Publicada, em 1936, e resgatada do esquecimento por Antonio Cândido nos anos sessenta, Raízes do Brasil exerceu influência, inclusive, na esquerda. A avaliação da resistência ideológica ao liberalismo era o centro de seu pensamento: alguns interpretaram, erroneamente, que ele estaria defendendo que o conceito de “homem cordial” era uma imagem que remetia somente a uma afetuosidade natural, uma gentileza autêntica, uma presteza no trato. Mas Sergio Buarque sublinhou a prevalência durante muitas gerações de uma inserção social quase hereditária de castas: os filhos dos sapateiros, ou dos alfaiates, ou dos comerciantes, ou dos médicos, engenheiros, advogados herdavam o negócio dos pais. A grande maioria do povo não herdava nada, porque eram os afrodescendentes do trabalho escravo, predominantemente, agrário.

Marxismo brasileiro

A assimetria do processo histórico-social de formação das duas classes mais importantes da atual sociedade brasileira potencializou no marxismo três posições opostas.

A escola influenciada pelo PCB defendeu a tese de que ela teria sido feudal.

Alberto Passos Guimarães e sua obra Quatro séculos de latifúndio conseguiu grande repercussão. Nelson Werneck Sodré, que exerceu grande influência no ISEB até à sua proibição em 1964, publicou Formação Histórica do Brasil, que obteve boa recepção. O diálogo dos estalinistas, a corrente política da esquerda mais forte, nos anos cinquenta, com os estruturalistas, a escola teórica mais influente, fez esta interpretação prevalecer até os anos sessenta. Não admitiam a possibilidade da existência de uma colonização capitalista desde a invasão portuguesa. Defenderam que uma sociedade deve ser caracterizada, historicamente, pelas relações sociais de produção dominantes. Afirmaram, como um dogma, que o que caracteriza o capitalismo é, em primeiro lugar, o trabalho assalariado. Se o trabalho assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista. Insistiram durante décadas na defesa esdrúxula de que teria existido feudalismo no Brasil. Jacob Gorender contribuiu para o debate com uma elaboração mais inspirada, compartilhada por Ciro Flamarion Cardoso, sugerindo que o Brasil teria conhecido um modo de produção próprio, o escravista colonial.

Gunder Frank respondeu aos cepalinos dualistas defendendo que a colonização da América Latina teria sido diretamente capitalista, ao fundamentar sua versão da teoria da dependência com a famosa fórmula de que o futuro do capitalismo seria o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Mas esta formulação, uma posição simétrica à dos estruturalistas, era, também, unilateral.

Gunder Frank teve o mérito de ser um pioneiro entre os circulacionistas. Afirmava que a colonização teria sido, sumariamente, capitalista, desprezando o fato monumental de que, por exemplo, no Brasil, o escravismo criou raízes profundas em quase quatro séculos de existência. Duas décadas depois, os circulacionistas, porque defendiam que a integração das colônias à circulação mundial do capital era um critério suficiente para definir a colonização como capitalista, passaram a ser mais conhecidos como a escola do sistema-mundo, inspirados em Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi.

A terceira corrente foi a dos marxistas de tradição trotskista, como o argentino Nahuel Moreno e o chileno Luís Vitale que, inspirados pela teoria do desenvolvimento desigual e combinado, reconheceram que a colonização teria sido um processo mais complexo, porque resultado de um amálgama entre interesses capitalistas, relações sociais escravistas e formas legais feudais, portanto, uma formação social original, um híbrido histórico e alertavam que:

“se a colonização foi desde o princípio capitalista não cabe mais que a revolução socialista na América Latina, e não uma combinação e subordinação da revolução democrático burguesa à revolução socialista”

O marxismo latino-americano foi educado sob a influência de um pseudomarxismo que tinha bebido nas fontes dos historiadores liberais. Eles pregavam que uma suposta colonização feudal pela Espanha e Portugal tinha sido a origem do nosso atraso relativo aos Estados Unidos. Este falso esquema da colonização foi suplantado em alguns ambientes marxistas por outro tão perigoso quanto o anterior: a colonização da América Latina teria sido diretamente capitalista. Gunder Frank foi um dos representantes mais importantes desta nova corrente de interpretação.

Como bem respondeu George Novack para Gunder Frank: “o capitalismo começa a penetrar, formar, a caracterizar por completo a América Latina (…) já, no século XVI. Produção e descobrimentos por objetivos capitalistas; relações escravas ou semiescravas; formas e terminologias feudais (igual que o capitalismo mediterrânico) são os três pilares em que se assentou a colonização da América (…) Não inauguraram um sistema de produção capitalista porque não havia na América um exército de trabalhadores livres no mercado. Foi assim como os colonizadores, para poder explorar, capitalísticamente, a América, viram-se obrigados a recorrer a relações de produção não capitalistas: a escravidão ou uma semiescravidão dos indígenas.”

Nesta chave a revolução brasileira será a simultaneidade de várias revoluções: será ambientalista e educacional, democrática e agrária, negra e feminista, operária e popular, anticapitalista, mas, também, anti-imperialista. Ela virá.

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