14 Novembro 2024
"Há um cristianismo a ser reformado, antes que desmoronem a nossa casa comum e a humanidade de todos nós", escreve Paolo Gamberini, jesuíta italiano, capelão da Universidade La Sapienza (Roma) e ex-professor de teologia da Pontifícia Faculdade Teológica de San Luigi (Nápoles). Foi também professor convidado nos Estados Unidos, em artigo publicado por Rocca, n. 22, 11-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nosso mundo está mudando rapidamente e a Igreja ainda está discutindo sobre questões de ministérios, a relevância da teologia na arena pública, como dar bênçãos a pessoas do mesmo sexo sem acreditar que sejam verdadeiras.
Diante de tudo isso, nos perguntamos: devemos deixar a Igreja? Minha resposta é que devemos permanecer nela como pessoas maduras. Ser críticos até o fundo, mas ficar sempre “dentro da Igreja”.
Isso significa dialogar, protestar, confrontar-se, mas fazer isso dentro da instituição da Igreja e, se possível, com certa estima, mesmo quando o amor parece faltar. Quando se escolhe deixar a Igreja por motivos profundos, se expressa uma inquietação, um mal-estar, talvez até um dom profético. No entanto, é fundamental permanecer “dentro”. Assim como fez Jesus, que foi um profeta “dentro” do judaísmo de sua época, permanecendo um judeu observante sem se afastar da Torá ou da Halacha (lei judaica). Entretanto, ele reinterpretou essa tradição, restituindo seu significado autêntico: “Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Aqueles que criticam a Igreja e se dizem seguidores de Jesus deveriam seguir seu exemplo, tentando mudar as coisas a partir de dentro, sem abandonar a Mãe Igreja que os gerou.
Os estudos dos últimos cinquenta anos sobre o Jesus histórico concordam que ele era um judeu “reformado”. A ideia de um Jesus antijudaico foi construída para justificar a separação entre cristãos e judeus.
Pessoalmente, acredito em Jesus não apenas porque ele é judeu, mas porque ele é o “Cristo”. Não é necessário que eu, “cristão”, me torne um “judeu” porque Jesus era um judeu “por completo”. Ele pode continuar sendo o que é, mas entre ele e eu há 2.000 anos de história e cultura religiosa diferentes. Crer em Jesus não é crer “naquele” Jesus, mas no Jesus vivificado no Espírito (1 Pedro 3,18).
É essa ação do Espírito em Jesus que o torna “contemporâneo” a nós, para que possamos também “transgredir” o que Jesus disse e realizou, em prol de um maior entendimento e evolução espiritual: “Mas, quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade” João 16,13. E o Cristo não é apenas uma pessoa, mas muito mais um processo contínuo de transformação do ser humano. O Cristo (Universal) vai além de Jesus (o judeu): como uma videira, cujas raízes são “de Jesus/judaicas”, mas cujos ramos se estendem à linfa vital do Espírito. A realidade de Cristo transcende as raízes judaicas de Jesus. A videira, em sua totalidade, é “Cristo”. O Cristo “cósmico” de que fala Teilhard de Chardin.
A pergunta que faço a mim mesmo é a seguinte: a “velha” religião com seu teísmo está morrendo ou já está morta (R.I.P.)? A ciência parece ter se tornado a nova religião, com suas teorias servindo como novos mitos ou metanarrativas culturais. Essas novas narrativas buscam expressar a espiritualidade, um fogo que permanece sempre presente tanto na Igreja quanto na ciência. Em ambas, estamos nos movendo do certo para o incerto, do necessário para o provável, da definição para a intuição.
Falando de cristianismo, já no século passado Teilhard de Chardin percebeu que a religião estava perdendo “prestígio e fascínio”, não apenas para os leigos, mas também entre os católicos. Ele se perguntou: “O que está errado?” Sua resposta foi reconhecer que uma forma específica de cristianismo, o tradicional, estava em grande crise. Essa forma não é mais capaz de “conferir um sentido total ao universo que está sendo descoberto ao nosso redor” (La mia fede, Brescia, Queriniana, 1993, p. 149). Ele acreditava que ainda era possível dar sentido ao cristianismo a partir da categoria da evolução (ciência) e da experiência cristã do amor (fé).
Na encíclica Laudato Si', o Papa Francisco menciona diretamente Teilhard (n. 83), quando afirma que “o objetivo do caminho do universo está na plenitude de Deus, já alcançada pelo Cristo ressuscitado, o fulcro da maturidade universal”. A espiritualidade é um gênero, e o cristianismo ou qualquer outra expressão dele, até mesmo o ateísmo, é a diferença específica. Isso se tornou o fato “concreto” e não abstrato da cultura, pelo menos no Ocidente, onde precisamente o cristianismo em suas formas usuais está em crise. As recentes reflexões de Vito Mancuso (La Stampa, 07-08-2024), das quais também compartilho, pretendem fotografar a situação atual, antes de julgá-la. Neste ponto, retomo a pergunta básica de Mancuso que orienta sua resposta. Qual é a relação entre “cristianismo” e “exclusividade”? Certamente é uma pergunta “dogmática”, poderíamos dizer abstrata, mas da resposta a essa pergunta “dogmática” derivam consequências. A exclusividade ainda é essencial para a fé cristã ou é um aspecto cultural que remonta às origens da experiência cristã (cf. NT)?
É possível pensar na fé cristã “sem” a exclusividade do único nome de Jesus Cristo, assim como em outros monoteísmos há a unicidade da Torá ou a revelação última de Deus no Alcorão? As guerras de religião, certamente, não foram “causadas” apenas pela fé monoteísta, outras razões devem ser identificadas, entre as quais a econômica e de expansão militar são fundamentais, mas ainda assim são “motivadas” por essa fé.
Penso, e aqui me encontro na análise de Vito, de que a exclusividade é um atributo cultural, ou seja, uma maneira pela qual a fé cristã se pode expressar. Sem esse atributo, não se nega a fé cristã, mas ela é aberta para a espiritualidade no sentido que mencionei anteriormente. Portanto, concordo com as considerações de Stanislas Bréton sobre a singularidade do cristianismo. A fé cristã não é uma fé de excelência (ou exclusividade), mas de singularidade: uni-cum. Somos “únicos”, mas nunca sem os outros (Michel de Certeau). Assim também Cristo: não é “único” se não com outros, até mesmo com as outras religiões. A transição cultural que estamos vivenciando no Ocidente é exatamente isso: reformar o cristianismo nesse ponto.
Um cristianismo sem exclusividade é um cristianismo com mais humanidade. Cristandade, cristianismo são explicitações históricas de um evento muito preciso: a experiência que os homens da Galileia fizeram com Jesus no primeiro século. Sua história com eles causou um impacto em suas vidas. Eles também, como nós, eram homens em busca. “O que vocês estão buscando?” (Jo 1,38). A perda da paixão por essa busca faz com que o cristianismo perca seu sabor. Caso contrário, não estaríamos aqui nos perguntando por que as igrejas se tornaram albergues ou pubs em alguns países. Mais espiritualidade significa reacender com força a paixão pela verdade e autenticidade em nossa vida.
Foi exatamente sobre isso que o Papa Francisco falou durante o encontro inter-religioso com os jovens em Cingapura (13-09-2024). “Todas as religiões são caminhos para Deus”. Essas são “diferentes línguas que expressam o divino”. Essa declaração foi mal compreendida por alguns católicos, que interpretaram erroneamente as palavras do Papa, pensando que ele quisesse afirmar que todas as religiões são igualmente verdadeiras. Na realidade, o Papa Francisco queria ressaltar que cada religião oferece uma maneira de se comunicar com Deus, mas não que todas são idênticas ou equivalentes em termos de verdade. De fato, as religiões se contradizem entre si na superfície de seus ritos, textos sagrados, doutrinas e instituições, mas se encontram na humanidade vivida. “Às vezes pensamos que o encontro entre as religiões é uma questão que diz respeito a buscar a todo custo pontos em comum entre as diferentes doutrinas e profissões religiosas. Na realidade, pode acontecer que uma abordagem desse tipo acabe nos dividindo, porque as doutrinas e os dogmas de cada experiência religiosa são diferentes” (Jacarta, 05-09-2024).
Se, por outro lado, abordarmos as religiões a partir daquela fonte que é a “busca do encontro com o divino, a sede do infinito que o Altíssimo colocou em nossos corações, a busca de uma alegria maior e de uma vida mais forte do que qualquer morte, que anima a jornada de nossas vidas e nos impele a sair do nosso eu para ir ao encontro de Deus”, então descobriremos que elas “não” se contradizem, mas falam umas às outras, já que as religiões são a experiência de vida “o desejo de plenitude que habita a profundeza de nossos corações, descobriremos que somos todos irmãos, todos peregrinos, todos a caminho de Deus, para além do que nos diferencia” e saberemos como “buscar a verdade juntos, aprendendo com a tradição religiosa do outro” (Jacarta, 05-09-2024).
Uma sociedade é fundada no sentido da vida. Sem isso, tudo isso desmorona. O sentido da vida é “humanitas”, que a espiritualidade reacende em cada um: aquilo que faz o ser humano crescer. As religiões, nas várias épocas históricas, expressaram essa espiritualidade por meio de rituais, textos sagrados e instituições.
Em particular, o cristianismo aprofundou o significado de “humanitas” a ponto de se identificar com ele. Ser um homem significava ser cristão (Naturaliter christianus). Em meu dialeto romagnolo, por exemplo, a palavra “tscièn” não significa apenas cristão, mas ainda mais: homem. No passado, tanto a Igreja Católica quanto as outras igrejas cristãs se identificaram com o ser humano a tal ponto que acabaram monopolizando a espiritualidade, a ponto de identificar o cristianismo com a espiritualidade.
Ao fazer isso, a Igreja, especialmente a Igreja Católica, perdeu de vista o que antes era a teologia natural, com seu desiderium naturale videndi Deum, ou seja, a abertura do homem ao sentido da vida, que continua sendo a espinha dorsal de uma sociedade. Sem espiritualidade, uma sociedade está fadada a desmoronar.
Um exemplo pode explicar a ideia: se um incêndio se alastra em uma cidade, concentrar-se exclusivamente na própria casa (entendida como Igreja ou religião) sem olhar além da própria sobrevivência é uma atitude míope.
Não é esse o significado mais verdadeiro do anúncio da “segunda vinda” de Jesus Cristo? “tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver” (Mt 25,35-36). A segunda vinda de Jesus Cristo simboliza a colheita no final dos tempos, da qual Jesus fala em suas parábolas. “Toda a história do cristianismo já é a 'segunda vinda de Cristo', uma vinda no anonimato, nos outros, e o Juízo Final será apenas o ponto culminante dessa vinda e a abolição definitiva do anonimato de Jesus” (Tomaš Halìk, Il sogno di um nuovo mattino. Lettera al papa, Vita e Pensiero, 122).
Precisa ser redescoberta a singularidade do humano em Jesus, especialmente naqueles que “não têm nome nem corpo” (no-body). Essa é a seiva espiritual do cristianismo. É o que a Igreja Católica e outras igrejas são convidadas a viver antes de anunciar. Como diz Santo Inácio de Antioquia em uma passagem de sua Carta aos Efésios: “Melhor é calar-se e ser do que falar e não ser”. Não são apenas as lâmpadas da Igreja que precisam ser trocadas: estruturas ministeriais e sinodais, programações e estratégias pastorais, formação de clérigos. Há um cristianismo a ser reformado, antes que desmoronem a nossa casa comum e a humanidade de todos nós.
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A casa está desmoronando... mas nos preocupamos em trocar as lâmpadas. Artigo de Paolo Gamberini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU