10 Janeiro 2024
O teólogo Jean-Michel Garrigues analisa a cisão progressiva entre o movimento iniciado pelos discípulos de Jesus e o judaísmo. É a análise de uma teoria que alimentou a hostilidade cristã em relação aos judeus pelo menos até o século XX: a "doutrina da substituição", segundo a qual Deus enviou o Messias a Israel, que não o reconheceu.
Em 2000, em nome da Igreja católica, João Paulo II colocou entre as pedras do muro das Lamentações, em Jerusalém, uma nota de arrependimento, pedindo perdão por séculos de antijudaísmo cristão. O sacerdote e teólogo dominicano Jean-Miguel Garrigues contribuiu para a preparação daquele texto. Em seu livro L’impossible substitution. Juifs et chrétiens (Ier-IIIe siècles) - ed. As Belales Lettres 2023, trata da cisão progressiva entre a Igreja primitiva e o judaísmo, e em particular da “doutrina da substituição”.
A entrevista é de Cyprien Mycinski, publicada por Le Monde, 09-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jesus é judeu e “não fundou uma nova religião”, você lembra em seu livro. Então, como foi recebido o seu ensinamento por seus correligionários?
Jesus de Nazaré está plenamente situado no judaísmo, mas a sua palavra contrasta com o judaísmo de seu tempo. Jesus, de fato, reativa o profetismo, ou seja, fala em nome de Deus e atesta isso realizando “sinais”. Mas os últimos profetas reconhecidos pelo judaísmo - Ageu, Zacarias, Malaquias - tinham vivido cerca de quinhentos anos antes dele.
No século I, o profetismo de Jesus parece estar em desacordo com o judaísmo institucional. Isso surpreendeu e comportou a adesão de uma parte dos judeus de sua época, mas também despertou a hostilidade em outros. No início, Jesus e os seus discípulos constituem, portanto, uma nova corrente dentro do judaísmo que é então plural e inclui várias outras. Essa corrente, que mais tarde conduzirá ao aparecimento do cristianismo, é então designada "nazarena", uma vez que o termo “cristão” ainda não existe.
Quais são as outras correntes do judaísmo do século I? E que relações elas têm com os “nazarenos”?
Em primeiro lugar existe o grupo dos saduceus que reúne os sacerdotes do Templo de Jerusalém. Trata-se de uma elite social detestada pela população, por causa da sua riqueza, da sua corrupção e do seu conluio com as autoridades romanas. São eles que entregam Jesus aos Romanos. Os essênios, por sua vez, retiraram-se para o deserto, sem dúvida para Qumran, onde vivem uma forma de isolamento monástico. Os zelotes, querem antes de tudo libertar a terra de Israel da ocupação estrangeira com a luta armada.
A última corrente, a dos fariseus, é a mais importante, porque desempenhará um papel decisivo na evolução da religião judaica e na sua relação com o cristianismo nascente. Os fariseus acreditam que o essencial da vida religiosa esteja na meditação e na observância escrupulosa da lei. Tiveram inegavelmente contatos com Jesus e os seus discípulos: os Evangelhos recordam a refeição de Jesus com o fariseu Simão (Lc 7,36-49) ou o seu diálogo com Nicodemos, também fariseu (Jo 3,1-21).
Resta o fato que fariseus e nazarenos têm ideias radicalmente diferentes sobre a distinção entre justo e injusto. Jesus, de fato, acredita que em certos casos é possível afastar-se de um respeito literal das prescrições da Lei, como o descanso do sábado (Mc 2,23-28). Além disso, ele entra nas casas de pessoas “de má reputação” – Zaqueu, coletor de impostos, por exemplo (Lc 19,1-10) e aceita entrar em contato com pagãos, como o centurião cujo servo ele cura (Lc 7,1-10), ou a samaritana a quem revela ser o Messias (Jo 4,4-29) ou mesmo a mulher cananeia cuja fé ele elogia (Mt 15,21-28).
Para os fariseus, isso é muito problemático, porque torna confusos os limites estabelecidos pela Lei entre o puro e o impuro, e entre os judeus e os “gentios”, ou seja, os não-judeus. Mais tarde, São Paulo imporá a ideia de que os pagãos que aderem à mensagem de Jesus não são obrigados a circuncidar-se, o que significa que não devem tornar-se judeus. Assim, enquanto os fariseus evitam frequentar os não-judeus, a abertura dos nazarenos para os “gentios” aumenta. Dessa divergência nasceu a separação entre judaísmo e cristianismo.
Como acontece a separação entre as duas religiões?
São as duas revoltas judaicas de 66-73 e 132-135 que levarão a uma divisão progressiva e cada vez mais clara entre a Igreja e o judaísmo, até à cisão. Essas duas guerras, desencadeadas pelos zelotes para expulsar os romanos da terra de Israel, acabam em derrotas para os judeus. E têm pesadas consequências tanto para o judaísmo como para o cristianismo e para as relações entre as duas religiões.
Desembocarão num primeiro momento numa clara evolução do judaísmo. De fato, as correntes dos saduceus e zelotes desaparecem, a primeira porque o Templo de Jerusalém é destruído em 70, a segunda porque a luta armada contra Roma fracassa.
Tudo isso reforça automaticamente a influência da corrente farisaica no judaísmo. Sob sua proteção, a religião judaica se reorganiza fortemente. Não se concentra mais no culto divino celebrado pelos sacerdotes no Templo, mas na interpretação da Lei feita pelos rabinos nas sinagogas. De fato, é o judaísmo que nós conhecemos até hoje que nasce nessa época.
Aquele judaísmo de inspiração farisaica vê os nazarenos como desviantes e os exclui das sinagogas. Além disso, no final da segunda insurreição, a de Bar-Kokhba (132-135), Roma decide expulsar os judeus da terra de Israel. Entre eles estão os judeus que respeitam a Lei mosaica, mesmo proclamando a messianidade de Jesus de Nazaré. Esses “judeus-cristãos” que até aquele momento constituíam um elo entre o judaísmo e o cristianismo nascente, são então empurrados de volta para a Transjordânia, onde se tornaram um grupo marginal.
A Igreja em formação vê assim enfraquecer-se o seu vínculo com Jerusalém e com o judaísmo.
Agora já é essencialmente constituída por gentios e o seu chefe se estabelece em Roma. Em meados do século II pode-se então considerar que o cristianismo se separou do judaísmo.
E de parte dos primeiros cristãos havia o desejo de separar-se radicalmente da origem judaica do cristianismo?
Foi a tentação do marcionismo. Essa tendência apareceu por volta de 140, na esteira de um certo Marcião, que acreditava que o Deus da Lei revelado na Bíblia hebraica fosse absolutamente diferente do Deus de misericórdia do Evangelho. Ele, portanto, acreditava que a Igreja devesse recusar o antigo Testamento. Marcião foi excomungado em Roma e o marcionismo condenado como heresia.
No entanto, essa opinião conheceu desagradáveis "retornos" na história do cristianismo - pensamos nos militantes do Deutschen Christen, aqueles cristãos que compactuaram com o nazismo, buscando “desjudaizar” o cristianismo e o próprio Cristo. Parece também que não raramente aconteça de ouvir cristãos praticar marcionismo sem se dar conta, especialmente quando opõem radicalmente um suposto Deus vingador do Antigo Testamento a um Deus que seria apenas Amor no Novo.
Para além do marcionismo, como o cristianismo primitivo pensa a sua relação com o judaísmo do qual nasceu?
Na Igreja primitiva, após a marginalização do judaico-cristianismo, estrutura-se uma relação de hostilidade ao judaísmo, baseada na ideia de que os judeus se insurgiram contra Jesus e os apóstolos. Dessa oposição nasceu à "doutrina da substituição" por volta dos séculos II e III. De acordo com essa teoria, Deus enviou o Messias a Israel, mas Israel não o reconheceu, rejeitou-o e o condenou à morte.
Deicida, Israel é, portanto, agora rejeitado por Deus. De acordo com os defensores dessa teoria, a destruição do Templo e depois a dispersão do povo confirmam essa condenação divina. Deus havia dado a Terra da Promessa para Israel, mas tirou-a deles. O antigo povo escolhido - Israel - fica, portanto, substituído por um novo: a Igreja.
A “doutrina da substituição” leva definitivamente a considerar os judeus como o povo que levou as Escrituras, mas sem entendê-las. Várias passagens da Bíblia são utilizadas para justificar teologicamente essa doutrina. Por exemplo, ao se referir aos dois filhos de Isaque, que são Esaú e Jacó (Gn 25-27). Esaú é o primogênito, mas é Jacó quem recebe a herança e a bênção do pai. A Igreja interpreta a passagem afirmando que Esaú representa Israel, enquanto Jacó representa a Igreja. O povo “primogênito”, Israel, é, portanto, privado da bênção de Deus, que passou para o povo “menor”, a Igreja.
A “doutrina da substituição” pode ser considerada como um fundamento do antijudaísmo cristão?
Sim, pois esteve no âmago do “ensino do desprezo” [expressão popularizada pelo historiador francês Jules Isaac (1877-1963), autor, em 1962, de “L’enseignement du mépris. Vérité historique et mythes théologiques], que gerou séculos de sofrimento para os judeus no mundo cristão. E isso durou muito tempo.
É preciso lembrar como era a liturgia católica da Sexta-Feira Santa até meados do século XX.
Achamos difícil de imaginar, mas os católicos rezavam pro perfidis judaeis, “pelos judeus incrédulos, para que Deus retire o véu que cobre o seu coração e para que também eles reconheçam Jesus, o Cristo, nosso Senhor"...
A “doutrina da substituição” ainda está viva na Igreja hoje?
Felizmente não! Nas últimas décadas, a Igreja Católica, como outras confissões cristãs, reexaminou profundamente seu relacionamento com o judaísmo. Depois do Holocausto, que despertou entre os cristãos apelos ao arrependimento, o Concílio Vaticano II (1962-1965) renovou profundamente o ensinamento da Igreja sobre o judaísmo. A Declaração Nostra Aetate (1965) de fato condenou sem ambiguidade o antijudaísmo cristão tradicional.
A liturgia da Sexta-Feira Santa foi, portanto, profundamente reformulada, de forma que os católicos agora oram “pelos judeus a quem Deus falou primeiro”. João Paulo II (1920-2005) – acompanhado nisso pelo Cardeal Lustiger (1926-2007), um judeu que se tornou católico – foi mais longe. Em Roma e depois em Jerusalém, ele fez um ato de arrependimento pelo antijudaísmo dos cristãos ao longo dos séculos.
Ele também reconheceu uma forma de primogenitura genealógica do judaísmo em relação ao cristianismo. Os judeus, disse, são “nossos irmãos mais velhos na fé”.
A Igreja agora considera que a Nova Aliança que Deus concluiu com ela não veio para substituir, mas se acrescentar à Antiga Aliança previamente concluída com Israel, que não se tornou absolutamente obsoleta. Essa evolução teológica permite hoje diálogos e reaproximações fraternas entre estudiosos e responsáveis das duas religiões, totalmente inimagináveis há apenas algumas décadas atrás. Estou, portanto, bastante otimista: judeus e cristãos, respeitando as suas diferenças, estão redescobrindo juntos a relação familiar que os une.
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“Uma doutrina da Igreja primitiva gerou séculos de sofrimento para os judeus no mundo cristão”. Entrevista com Jean-Miguel Garrigues - Instituto Humanitas Unisinos - IHU