06 Abril 2023
O modo como os autores do Evangelho contaram a história da Paixão de Cristo, ao longo dos séculos, incrustou no imaginário religioso cristão a noção binária de que “judaísmo” e “cristianismo” são existencialmente opostos um ao outro.
O comentário é de Philip A. Cunningham, professor de teologia e diretor do Instituto para as Relações Judaico-Católicas da St. Joseph’s University, na Filadélfia, EUA. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 05-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Durante a Semana Santa deste ano, as assembleias católicas ouvirão e, em alguns casos encenarão, as narrativas da Paixão dos Evangelhos de Mateus e João.
Mateus 27, 25 descreve de forma singular uma multidão de judeus gritando: “Que o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos!”. Essa frase foi a base da ideia posterior – difundida entre os cristãos e suas lideranças por séculos – de que os judeus, em todos os tempos e lugares, eram amaldiçoados por Deus e enviados para vagar, impotentes, entre as nações.
O Evangelho de João se distingue pelo seu frequente uso coletivo da expressão “os judeus” como inimigos implacáveis de Jesus, estabelecendo um dualismo que permitiu aos cristãos tornarem os judeus símbolos das trevas e do mal. Em sua narrativa da Paixão, “os judeus” declaram: “Nós temos uma lei, e segundo a lei ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus” (João 19,7).
A história mostra que, sem orientação, os cristãos facilmente leem esses textos como justificativas para a raiva e a hostilidade contra os judeus. Isso ocorre porque eles assumem que os Evangelhos são transcrições de testemunhas oculares de eventos históricos, e não narrativas impulsionadas pela fé na ressurreição.
Ao contrário dos fundamentalistas que não levam em conta o desenvolvimento da tradição do Evangelho, mas confundem ingenuamente a fase final dessa tradição (o que os evangelistas escreveram) com a inicial (as palavras e os gestos do Jesus histórico), as comissões vaticanas instruíram os católicos de que os Evangelhos podem refletir as relações cristão-judaicas muito tempo depois da época de Jesus.
Escritos décadas depois da crucificação, os Evangelhos surgiram em uma época em que os fiéis faziam afirmações sobre o status divino de Jesus que não convenciam muitos judeus. Esses argumentos moldaram as narrativas dos Evangelhos das histórias da Paixão de Jesus, contribuindo para fomentar retratos raivosos dos antagonistas judeus não dos tempos de Jesus, mas dos próprios escritores do Evangelho.
Quantos católicos conhecem essa complexa história dos Evangelhos? Felizmente, a partir de 2024, o texto da narrativa da Paixão de João nos Missais será imediatamente precedido por uma nota baseada na declaração Nostra aetate do Concílio Vaticano II:
“Os crimes durante a Paixão de Cristo não podem ser atribuídos, nem na pregação nem na catequese, indiscriminadamente a todos os judeus da época nem aos judeus de hoje. O povo judeu não deve ser referido como rejeitado ou amaldiçoado, como se essa visão viesse das Escrituras.”
A colocação dessa nota logo antes do texto da Paixão de João é uma melhoria em relação às notas anteriores que eram menos prováveis de serem notadas, porque estavam situadas dentro das capas dos Missais.
Mas há uma questão maior em jogo. O modo como os autores do Evangelho contaram a história da Paixão de Cristo, ao longo dos séculos, incrustou no imaginário religioso cristão a noção binária de que “judaísmo” e “cristianismo” são existencialmente opostos um ao outro.
Isso fica evidente no rascunho de uma encíclica preparada em 1938 para o Papa Pio XI, cuja morte afundou a iniciativa: “Como resultado da rejeição do Messias por Seu próprio povo (...) encontramos uma histórica inimizade do povo judeu ao cristianismo, criando uma tensão perpétua entre judeus e gentios que a passagem do tempo nunca diminuiu”.
Os cristãos que operam com esse tipo de “imaginário oposicionista” acham difícil visualizar Jesus vivendo judaicamente. Uma espécie de processo de “desjudaização”, como os bispos dos Estados Unidos afirmaram em uma declaração de 1975 sobre as relações católico-judaicas, está em ação. Em sua forma mais perigosa, o resultado é o Jesus ariano dos nazistas. Mas, de forma menos extrema, certas passagens do Evangelho podem ser lidas por meio de lentes oposicionistas, como se Jesus fosse um estranho ao judaísmo em vez de um judeu devoto da Torá e de sua interpretação adequada.
Os cristãos que têm esse imaginário oposicionista podem tender a contrastar os ensinamentos de Jesus com certos textos do Antigo Testamento que retratam um Deus irado ou punitivo, negligenciando aqueles versículos excessivamente numerosos que resumem a experiência por parte de Israel de um Deus vivido como alguém “misericordioso e clemente, lento para a cólera, e abundante em amor e fidelidade” (Êxodo 34,6).
Eles também tendem a ignorar as referências do Novo Testamento a um Deus punitivo, como Apocalipse 20. Aqueles que fazem tais contraposições estão, sem se darem conta, exibindo uma forma de marcionismo, uma antiga heresia que defendia que a deidade do Antigo Testamento não era o Deus de amor revelado por Jesus Cristo.
Durante a Semana Santa, os cristãos que imaginam o judaísmo e o cristianismo como opostos lerão ou ouvirão as narrativas do Evangelho da Paixão de forma a destacar os papéis das figuras judaicas e a minimizar o caráter essencialmente romano da crucificação. Algumas versões das narrativas da Paixão, por exemplo, podem caracterizar os líderes religiosos judeus observando Jesus “com suspeita” e destacando a “oposição” como a causa da morte de Jesus.
A expressão “líderes religiosos”, de modo automático e a-histórico, transfere a responsabilidade das figuras romanas para as figuras judaicas. Ao não especificar os líderes judeus como sacerdotes, fariseus, herodianos ou agitadores antirromanos (alguns dos quais se opunham a Jesus, alguns dos quais o admiravam), essa formulação refere-se ao judaísmo em geral. Também perpetua uma caricatura cristã da observância judaica da Torá e situa Jesus em oposição fundamental a ela.
No entanto, certos fatos históricos impossibilitam considerar a execução de Jesus como uma questão predominantemente “religiosa” e, portanto, “judaica”. Primeiro, não se pode dizer que “os judeus rejeitaram” Jesus por qualquer razão, porque a maioria dos judeus nunca ouvira falar dele quando foi executado; o dobro de judeus vivia fora da terra do Israel bíblico do que dentro dela na época.
Em segundo lugar, Jesus foi executado durante o tempo da Páscoa, quando os judeus de todo o Mediterrâneo afluíam a Jerusalém para celebrar a libertação da escravidão estrangeira. As tropas romanas reprimiam brutalmente qualquer sinal de resistência a seu governo que normalmente irrompiam durante a festividade.
Em terceiro lugar, ao longo do tempo, as forças romanas crucificaram dezenas de milhares de judeus para aterrorizar o povo e esmagar a rebelião. A execução de Jesus foi horrivelmente rotineira e, de fato, mais breve do que a maioria das crucificações. O fato de Jesus ter sido torturado publicamente e não executado silenciosamente mostra que, para os romanos, ele era apenas mais um judeu para servir de exemplo.
Em quarto lugar, o sumo sacerdote do Templo de Jerusalém desempenhava esse papel a pedido de Pôncio Pilatos. Pilatos acabou sendo deposto por Roma depois de massacrar centenas de samaritanos, enquanto os temores do sumo sacerdote de que os romanos pudessem eventualmente destruir o Templo (cf. João 11,48-50) se concretizaram 40 anos depois.
A questão é que o meritório ensinamento católico de que “não se pode imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão [de Cristo] se perpetrou”, faz pouco para contrabalançar a influência nefasta do imaginário oposicionista.
Se a pregação e o ensino de modo regular e impreciso apresentam Jesus em oposição ao legalismo judaico, mostrando “líderes judeus” não especificados rejeitando-o por razões pós-ressurrecionais, e desconsiderando os interesses romanos, então o longo hábito de pensar nos judeus como inimigos de Cristo e da Igreja persistirá. A apreciação da Igreja Católica do “‘vínculo’ singular que nos une como Igreja aos judeus e ao judaísmo”, como uma instrução do Vaticano afirmou, será rebaixada.
Esse perigo não é apenas um problema na Semana Santa, mas também durante todo o ano.
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Leituras antijudaicas das Escrituras não são apenas um problema da Semana Santa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU