30 Outubro 2013
Segundo Agamben, o processo e a morte de Jesus seriam definidos no pressuposto de um dualismo terra-céu sem encontro, nem hierarquia entre si. A Pilatos, o julgamento; ao Cristo, salvação: e ponto final.
A opinião é do constitucionalista italiano Gustavo Zagrebelsky, ex-presidente do Tribunal Constitucional Italiano e professor da Universidade de Turim. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 28-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As narrações evangélicas dos ditos e dos fatos relacionados a Jesus são desde sempre um fundo inexaurível de interpretações teológicas, políticas e teológico-políticas de todos os tipos. Isso vale particularmente para o processo diante de Pilatos e a morte na cruz do Nazareno. Giorgio Agamben, em um recente e muito denso pequeno livro seu, intitulado Pilato e Gesù (Nottetempo), realiza, em torno desses eventos, uma pesquisa arqueológica no sentido de que ele, nos seus estudos, atribui ao arché das coisas.
O que vale para o arqueólogo que se põe no rastro das civilizações sepultadas, que desenterra os restos, que os limpa do pó, da areia e das incrustações e que os leva de volta ao estado primitivo, também vale para o arqueólogo que vai em busca não de coisas, artefatos ou acontecimentos individuais, mas sim do significado primigênio das coisas.
Não se trata do prazer erudito pelas antiguidades. Ao invés, é busca dos significados originais, ocultos, deturpados, manipulados ao longo do tempo, mas, no entanto, subjacentes e prontos para reemergir, se e quando alguém os traz à luz e, assim, à vida.
Segundo a interpretação recebida, Jesus foi submetido a um processo promovido pelos sinedritas por razões de natureza religiosa (blasfêmia), que envolviam ser posto à morte. Porém, como na província romana da Palestina a autoridade local tinha perdido o poder de vida e de morte, e o jus gladii tinha passado para as mãos do procurador de César, eles se voltaram para Pilatos, movendo uma acusação de sedição. Pilatos, na conclusão de um processo realizado entre dúvidas, hesitações e vilania, pressionado pela multidão incitada pelos sacerdotes, talvez contra a sua própria vontade, o condenará à crucificação com base na lex Julia maiestatis.
A regularidade dos procedimentos foi objeto de furiosas discussões, segundo o direito romano do tempo e segundo os preceitos vigentes na Judeia da época (a discussão mais aprofundada a respeito é, a meu conhecimento, a do jurista israelense Chaim Cohn, Processo e morte di Gesù, Turim: Einaudi, 2000).
Agamben não entra no mérito dessa discussão, porque não precisa. A sua tese, fundamentada em uma leitura do Evangelho de João, é que não se tratou, de fato, nem podia se tratar, de um julgamento, com ato de acusação, discussões entre as partes, sentença de condenação.
A chave para a compreensão da tese de Agamben está em Jo 3, 17: "Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgá-lo, mas para salvá-lo". Pilatos, por sua vez, ao invés, está na Palestina para julgar, não para salvar. Entre salvação e juízo, há a distância que separa dois mundos incomensuráveis que não podem se encontrar, ao menos até a consumação dos tempos. A salvação diz respeito ao reino de Deus, do qual o Cristo se proclama senhor: refere-se à "economia da salvação", o mundo lá de cima; o juízo, ao invés, diz respeito ao reino dos homens, cujo senhor é o César de Roma, e, em seu nome, o procurador na Palestina, o mundo aqui de baixo.
No face a face entre Pilatos e Jesus, portanto, teria havido apenas um contato exterior desses dois mundos, mas não uma relação capaz de gerar um autêntico juízo (justo ou injusto: não é isso que interessa). Todo verdadeiro julgamento tem uma estrutura bilateral que se compõe em unidade na sentença. Se fosse unilateral, não haveria sentença, mas violência.
"Aqui verdadeiramente [no litostrato, pavimento de pedra] (...) dois reinos estão um à frente do outro, sem conseguirem chegar a cumprimento. Também não está claro quem julga quem, se o juiz legalmente investido do poder terreno, ou o juiz por zombaria [referência ao manto de púrpura, à cana como cetro, à provocação: "Julgue-nos!" posta na boca dos judeus] que representa o Reino que não é deste mundo. É possível, de fato, que nenhum dos dois pronuncie verdadeiramente um juízo" (p. 53).
A recíproca estranheza impede, portanto, que Pilatos pronuncie a sentença. Como poderia, como governador do reino daqui de baixo, julgar o reino lá de cima? O procedimento, de fato, segundo Agamben, conclui-se com um fato material: a mera entrega de Jesus – traditio – aos seus carnífices (Jo 19, 16).
Por outro lado, Jesus toma a palavra apenas para afirmar a estranheza do seu reino ao de Pilatos e a comum descendência de um e do outro da vontade do Pai. Mas, naquele que deveria ter sido o seu processo, ele se cala completamente. Testemunhar, aqui e agora, a verdade do Reino que não está aqui e agora seria aceitar que o que queremos salvar pode nos julgar, que as criaturas julguem o eterno: isto é, aceitar como verdade que estas não querem ser salvas.
Como nos juízos terrenos não pode haver palavras de salvação, ao Cristo não é dado entrecruzar as suas palavras com as deles. Simetricamente, porém, a Pilatos também é tolhida a palavra, porque o juízo não pode ter a ver com a salvação. Pilatos, sob esse aspecto, evitando pronunciar a sentença, mostra-se consciente da natureza da questão que pende diante dele.
"Aqui está a cruz, aqui está a história", conclui Agamben assim, com uma pequena frase em que se compendia uma incompreensão, uma impossibilidade de encontro, plurimilenar.
Se compreendemos bem quaisquer que sejam as razões textuais sobre as quais se baseia a interpretação de Agamben, outra peça no processo interpretativo dos acontecimentos do processo e da morte de Jesus vem se colocar ao lado de inúmeras outras. Não só isso: trata-se de uma visão que vai muito além disso. Geralmente refere-se à relação nunca resolvida entre os dois reinos: o reddite Caesari e o reddite Deo de Mt 22, 21.
Segundo a vulgata, Jesus é condenado por todos os poderes da terra, simbolizados pelo acordo de Pilatos, das autoridades do Sinédrio e da multidão, coalizados contra a irrupção, que eles rejeitam, do divino na história humana. Nessa interpretação, há conflito, porque César prevarica sobre Deus: um mundo (os poderes da terra) entra no outro mundo (a misericórdia divina) e o derrota com uma sentença de morte. Mas, o caminho, no entanto, está aberto para a solução oposta à do conflito: a derrota do mundo por parte da misericórdia divina: "Pai, perdoa-lhes...".
Segundo Agamben, o processo e a morte de Jesus, ao invés, seriam definidos no pressuposto de um dualismo terra-céu sem encontro, nem hierarquia entre si. A Pilatos, o julgamento; ao Cristo, salvação: e ponto final. Se são comparados, "acabam em um comum, indeciso e indecidível non liquet" (p. 63), porque ambos têm as suas autossuficiências que não só não se encontram e não se chocam, mas também têm o mesmo, altíssimo, fundamento em Deus: "Tu não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do alto" (Jo 19, 11).
O mesmo conceito é desenvolvido por São Paulo no celebérrimo capítulo XIII da carta aos Romanos, cujo sentido se compendia no "nulla potestas nisi a Deo", que tem, como corolário, o convite dirigido aos cristãos de permanecer submetidos às autoridades constituídas.
Esse dualismo sem interferências, porém, leva a um impasse moral, a um paradoxo que pode se revelar trágico em situações extremas, como foi a de um fiel cristão que também era cidadão leal ao poder. Lembramos a sua história para mostrar como as discussões teológicas mais aparentemente abstratas podem incidir na carne viva das pessoas.
Um homem de fé evangélica certa – Kurt Gerstein (recentemente mencionado em um livro de Marco Rizzo, Cesare e Dio, Bolonha: Il Mulino, 2009) –, no momento da tomada do poder por parte de Hitler, tinha aderido ao nazismo, alistando-se nas SS. Como fundamento da sua escolha, estava o "dar a César o que é de César" e o "nulla potestas nisi a Deo".
Em 1938, porém, estourou a contradição. Realmente, ele se perguntou, a palavra de Deus "se encontra nas estrelas", como diz Schiller; realmente, a justiça de quem falam os poderosos da terra é somente uma "prostituta de Estado"; e, realmente, a voz de Deus não tem nada a dizer a respeito, reservando-se para o momento final da consumação dos tempos?
Atormentado por uma consciência presa entre duas fidelidades contraditórias, a Deus e a Hitler, encontrou no fim a saída tirando-se a vida. Eis o que pode significar para um cristão que leva a sério sua fé a ideia de que o céu está em olhar para a terra, no tempo em que nos cabe viver sobre a terra. Se assim fosse, o cristão que se interroga sobre o que o seu Deus pede dele deveria reconhecer que essa sua pergunta cai no vazio e deveria se desesperar: o seu Deus não lhe fornece critérios de justiça, porque sua é apenas a salvação, e a salvação está no céu, não na terra. Faltar-lhe-ia todo ponto de apoio moral. Cairia no vazio o lema dos apóstolos, levados a se justificar diante do Sinédrio: "É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens" (At 5, 29).
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Diante de Pilatos. Comentário do último livro de Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU