10 Abril 2023
A parábola de Judas soa de uma forma muito poderosa para nós no terceiro milênio, razão pela qual o ranking dos mais ricos da Forbes é um catálogo de modelos existenciais; estamos prontos a votar em massa no Rockefeller de plantão, e os mais jovens crescem ouvindo trap music cuja tríade é dinheiro-sexo-drogas.
O artigo é de Stefano Massini, escritor e dramaturgo italiano, publicado por La Repubblica, 06-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para entender algo sobre Judas Iscariotes, precisamos de Donald Trump. Reza a lenda que, quando questionado se estava amargurado com as seis falências que colecionou na virada para o século XX, ele respondeu rindo que era apenas dinheiro e, como tal, não passava pelo seu coração, mas apenas pela sua carteira.
Uma pena que, na televisão, ele repetidamente pregou que o dinheiro representaria 90% da existência de uma pessoa. Síntese: no catecismo de Trump, 90% de um ser humano não passa pelo coração, e fim da história.
Há dois mil anos, esse construto encontrava seu paradigma perfeito primeiro no Getsêmani e depois no Calvário. Porque, se olharmos bem, mesmo que tivesse sido escrito por Mamet ou por Scott Fitzgerald, o epílogo dos Evangelhos é todo uma nojentíssima questão de dinheiro.
Parece que estamos em uma série de TV, em uma Suburra, em uma Gomorra palestina, onde os maços de dinheiro pontuam a trama: bem-vindos a esta Jerusalém/Gotham City onde se fazem negócios até mesmo dentro do Templo, e não é à toa que a sarabanda começa justamente quando o profeta de Nazaré enfurecido ousa expulsar os mercadores (aliás, é o mesmo que os fariseus tentaram pegar em falso justamente a partir de uma moeda romana com a efígie de César).
Lá como aqui e agora, o dinheiro servia para comprar objetos e iludia que era possível adquirir um acesso 24 horas à beleza. Com o dinheiro, a pessoa transcendia a fronteira da criatura e se elevava a criadora, moldando a realidade ao seu redor a seu gosto, inclusive a paisagem humana, da qual era possível adquirir, se necessário, a cumplicidade de um aliado, o silêncio de uma estrela pornô, o esquecimento de uma fraude, tudo em um deserto de miséria recíproca que, de fato – Trump tem razão –, nunca será preciso se submeter a implicações emocionais.
É o que de mais semelhante ao inferno se possa conceber, pois é o grau máximo de distância entre o ser humano e seu sentimento, o afélio da nossa rotação interior, razão pela qual não é de se admirar que, entre os pagãos, Pluto, deus da riqueza, tenha sido confundido por muito tempo e finalmente sobreposto a Plutão, deus dos infernos.
E eis-nos novamente em Judas, o traidor. Ou, melhor, deveríamos dizer o “vendedor”. Aqueles famosos 30 denários foram o preço com que o discípulo negociou a entrega do mestre, e mais uma vez parece que estamos vendo a cena transliterada em um filme de Scorsese, com o venal Jude que, em contraluz, dentro de alguma boate, com o cigarro na boca, contando notas de dinheiro, sussurra: “Vocês o reconhecerão porque vou lhe dar um beijo”. E a contribuição narrativa do personagem poderia até terminar aqui, no close daquele beijo que vale um Oscar de Melhor Roteiro.
Mas não. Em vez disso, há uma sequência, fundamental: Judas, até agora um devoto escolar de Trump, forjado por ele na cínica forja de “O Aprendiz”, comete o erro gigantesco de não guardar o dinheiro na carteira, mas evidentemente permite que passe pelo coração, faz-se algumas perguntas, não consegue aplicar o supremo dogma do cinismo.
E aí o rapaz desmorona, tanto que devolve os malditos 30.000 dólares e se enforca em um poste de luz de East River.
Isso me lembra aquele livrinho precioso que von Chamisso dedicou a Peter Schlemihl, o pobre homem cuja sombra Satanás obteve para si em troca de uma bolsa mágica da qual fluiria ouro em profusão, em um tripúdio de riqueza que não só não o faz feliz, mas também o afunda no desespero. E Schlemihl também, assim como Judas (e como o lendário rei Midas), tem que se livrar da bolsa que o está arrastando para o fundo.
Nesse sentido, a parábola de Judas soa de uma forma muito poderosa para nós no terceiro milênio, razão pela qual o ranking dos mais ricos da Forbes é um catálogo de modelos existenciais; estamos prontos a votar em massa no Rockefeller de plantão, e os mais jovens crescem ouvindo trap music cuja tríade é dinheiro-sexo-drogas, e as correntes de ouro maciço proliferam no pescoço dos rapsodos desde a capa daquele famoso LP de Eric B & Rakim, datado de 1987.
Depois, nos surpreendemos se a curva dos suicídios sobe, na inumerável matança dos Judas que, por 30 denários, venderiam qualquer um, sem perceber que estão vendendo a si mesmos. Mas é o preço silencioso desse sistema marcado pelo plutômetro, com os bancos que explodem pelos ares na Bolsa, como petardos, porque até para eles o torneio é insustentável.
Chega, estamos no epílogo deste filme sobre o Iscariotes que se envenenou com o arsênico do dinheiro. E, enquanto seu corpo pende enforcado, ainda há lugar para alguns fotogramas impiedosos sobre a tirania do dinheiro: o primeiro é o dos soldados jogando pôquer sobre as roupas dos crucifixos; o segundo é nada menos do que o final antes dos créditos, quando, nos andares superiores, decide-se encobrir a ressurreição de Jesus com fake news (“pagaram alguns para dizer que seus discípulos tinham roubado o corpo”).
Nenhuma surpresa, afinal a verdade também é uma mercadoria.
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Judas: vender ou trair é sempre uma questão de dinheiro. Artigo de Stefano Massini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU