Atualizar Deus. Artigo de Paolo Gamberini

Recorte da ilustração da capa do livro "Deus duepuntozero. Ripensare la fede nel post-teismo". (Foto: Reprodução da Capa)

09 Julho 2022

 

"A presente revolução teológica pretende repensar o Deus sem Deus da secularização, fenômeno este típico da contemporaneidade moderna, na direção de uma atualização pós-secular da ideia de Deus", escreve Paolo Gamberini, jesuíta italiano, capelão da Universidade La Sapienza de Roma e que já ensinou teologia na Pontifícia Faculdade Teológica de San Luigi de Nápoles e foi professor convidado nos Estados Unidos, em artigo publicado por Rocca, Nº 14, 15-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O título do meu novo livro Deus. DuepuntoZero. 2.0 sugere uma atualização, um update do conceito de Deus. O subtítulo do livro é repensar a fé no pós-teísmo.

 

Deus duepuntozero. Ripensare la fede nel post-teismo

 

O texto nasceu de uma série de encontros de um Seminário Online (Deus dp: depois da pandemia) oferecido durante o ano da pandemia, ou seja, de outubro de 2020 a junho de 2021. Durante as sessões desse seminário, surgiu cada vez mais a exigência de oferecer também àqueles que não haviam participado do Seminário o que nós havíamos vivido: ou seja, como lentamente estava amadurecendo a necessidade de passar a uma nova concepção de Deus.

 

Ao mesmo tempo orientar-se para uma concepção atualizada de Deus que estivesse em continuidade com aquilo que é o depósito da fé, o kerygma, nos testemunha, sem se fechar às inovações que vêm das ciências, em particular, da biologia, da física quântica, das neurociências, bem como da sabedoria de outras tradições religiosas. Como diz o Papa Francisco, este é um tempo que exige uma transformação na forma de pensar e viver a religião.

 

A consciência de fé das novas gerações resulta cada vez mais secularizada, como se Deus não existisse mais; é uma geração agnóstica, indiferente. Daqui a urgência de como e qual Deus anunciar neste tempo e sociedade pós-secular. É interessante que nesse ínterim - nesta sociedade pós-secular – a mística e os recentes avanços científicos na física quântica e nas neurociências, por exemplo, estão descortinando uma visão da realidade que está em sua essência entendida como conectada. Essa visão da realidade "interconectada" não é apenas proposta por muitos teóricos da física quântica, mas também sempre foi a visão mística das grandes religiões. A fundo e em profundidade, toda a realidade está interconectada e saturada de consciência.

 

Deus não está separado do mundo

 

Ao contrário do ateísmo dos séculos XIX e XX, o pós-teísmo não rejeita nenhum tipo de transcendência, mas apenas aquela transcendência na qual Deus é concebido como "separado do mundo", "intervindo" de tempos em tempos tempo com alguma revelação sobrenatural e ação milagrosa. Assim o teísmo pensou os eventos fundadores do Êxodo e da ressurreição de Jesus de Nazaré: intervenções divinas do alto, de fora do cosmos, interrompendo assim as leis da natureza, para salvar o mundo da morte.

 

Na visão pós-teísta, no entanto, o cosmos não é mais concebido como fora do ser de Deus, mas radicalmente dentro de Seu ser. Nesse sentido fala-se de pan-en-teísmo: expressão cunhada pelo filósofo alemão Karl Krause (Lições sobre o sistema da filosofia, 1828) para indicar sua própria doutrina teológica, que pretendia mediar entre panteísmo e teísmo. Todas as coisas estão em Deus e Deus está em todas as coisas. Deve-se notar que essa visão da realidade já estava presente em muitos autores, inclusive Inácio de Loyola que na contemplação para alcançar o amor nos Exercícios Espirituais convida o praticante a ver Deus, presente e atuante em todas as coisas.

 

Como podemos compreender as verdades da fé cristã, do pecado original à ressurreição corporal de Jesus, da encarnação do Verbo à concepção trinitária de Deus, do sacrifício da cruz à unicidade salvífica de Cristo, em modo tal que essas verdades sejam entendidas a partir de um conceito de "Deus" e de "salvação" não mais teísta? Como compreender as verdades essenciais da fé cristã à luz de uma versão atualizada de Deus, Deus 2.0?

 

O que é o pós-teísmo

 

Mas o que é o pós-teísmo? O pós-teísmo realiza o que o ateísmo, bem frisado com o alfa privativo (a-teísmo), já havia tentado fazer, ou seja, negar o "Deus" da religião.

 

No entanto, aquela do ateísmo foi uma tentativa - na minha opinião parcial - de negação, porque na verdade negou uma imagem particular e específica de Deus, precisamente aquela teísta, mas não quis negar a realidade de Deus, como fundo original da realidade.

 

Essa questão ficou, digamos, suspensa. Basta pensar na categoria de "transcendência sem qualquer transcendência celestial" no Princípio Esperança de Ernst Bloch. Trata-se de uma negação da transcendência do transcendente, e não da transcendência como tal. O pós-teísmo abraça essa visão "imanente" de Bloch ao negar o Deus transcendente do teísmo, entendido como alguém que está fora e separado do cosmos, e o cosmos como algo externo, fora da transcendência.

 

Para além da imagem teísta de Deus

 

Ao criticar a imagem teísta de Deus, recorro à ajuda de Dietrich Bonhoeffer, que em Resistência e rendição muitas vezes fala de Deus como um tapa-buracos: um Deus concebido como um tutor, aliás, poderíamos dizer, um tumor para a consciência religiosa. Deus é entendido como suporte, um preenchimento para as deficiências do ser humano. Nesse sentido, esboço uma espiritualidade que chamaria de pós-secular, buscando apoio no misticismo judaico, recuperando o famoso conceito do zimzum, do retirar-se de Deus do mundo, e fazendo referência às questões levantadas pelos teóricos da física quântica, pelos neurocientistas e pelos biólogos evolucionistas, em sua tentativa de compreender a substância da realidade. Trata-se das grandes questões da origem do universo, da estrutura da realidade e, para os teólogos, a questão do mal que tem sido um dos pontos mais fortes da crítica dirigida ao conceito tradicional de Deus.

 

Para resolver essas várias questões é indispensável - em minha opinião inevitável - empreender uma mudança de paradigma na maneira de imaginar Deus. À luz dos frutíferos estudos exegéticos iniciados a partir da publicação da encíclica Divino afflante spiritu (1943) e das descobertas arqueológicas, os crentes estão relendo a Bíblia com novos olhos, poderíamos dizer desmitificada, dessacralizada. Os crentes estão saindo do feitiço da fé.

 

A Bíblia é palavra plenamente humana, e nós cristãos e conosco nossos irmãos judeus do Primeiro Testamento vemos esse texto também como plenamente divino. Mas como conjugar essas duas perspectivas na abordagem do texto sagrado? Vou me deter para distinguir duas maneiras de ler o texto sagrado. A Bíblia não pode ser reduzida a um texto de verdades cientificamente verificáveis, mas é um texto destinado a se tornar carne e vida para quem a lê. Nela, os crentes veem os vestígios daquele Deus que se revela nas profundezas de sua vida.

 

Retomando o que foi dito até aqui, é imprescindível analisar a imagem crente de Jesus. A igreja primitiva deu uma interpretação da história do Nazareno, utilizando a linguagem e as categorias religiosas do judaísmo do Segundo Templo, marcado por uma visão apocalíptica da história. A leitura posterior dos grandes concílios cristológicos do século IV ao VII d.C. foi a recepção eclesial dessa primitiva interpretação por meio de novas categorias culturais, oriundas da cultura helenística. O kerygma, de fato, deve ser continuamente repensado, para que possa ser compreendido em cada século. Só assim podemos permanecer seguidores - de forma crente e inteligente - daquele homem Jesus que viveu na Galileia no I século d.C.

 

A ressurreição sem milagre

 

Nesse sentido, é fundamental o que o apóstolo Paulo afirma do fundamento da fé cristã. Se Cristo não tivesse ressuscitado dos mortos, nossa fé seria vã.

 

A abordagem com que encaro o evento da ressurreição é "sem milagre". A intenção é fazer um balanço da historicidade da ressurreição, entendendo esse evento não da mesma forma ou análogo a outros eventos mundanos. A palavra "ressurreição", de fato, refere-se à realidade de Deus. Se Deus é um ser transcendente, segue-se que a realidade da ressurreição deve ser entendida como um evento relativo a Deus. O caráter histórico da ressurreição, portanto, não é análogo ao do sepulcro vazio, das aparições, e nem mesmo do nascimento da fé. Estes são todos "sinais", mas não "provas" da ressurreição. As várias experiências pós-pascais são experiências do Espírito Santo e, portanto, de fé, e nos falam do caráter simbólico e metafórico com que os Evangelhos falam desses eventos, incluída a narração no sepulcro vazio.

 

Não apenas Jesus

 

O Jesus ressuscitado se torna e aparece como o Cristo. A distinção entre "Jesus" e "Cristo" permite uma compreensão do termo "Cristo" em chave cósmica, portanto com este termo referimo-nos não apenas à incorporação dos crentes ao Corpo de Cristo que é a igreja, mas - seguindo Teilhard de Chardin e Karl Rahner - a unidade de matéria e espírito, divino e humano. Ao revisitar a ideia de mediação, o homem Jesus não pode ser isolado do contexto cósmico com o qual se dá a realidade de Cristo. Importantes neste sentido são aqueles elementos da física quântica e especialmente as reflexões filosóficas sobre a teoria quântica que estimulam a uma visão crística de toda a realidade.

 

Além disso, é essencial repensar a unicidade salvífica de Jesus Cristo e superar a tradicional distinção entre filiação divina e adoção como filhos e, finalmente, revisitar a doutrina da impecabilidade de Jesus.

 

Quanto à salvação, em especial a salvação da cruz, é preciso revisitar a palavra "sacrifício" através das análises psicanalíticas de Massimo Recalcati sobre o fantasma sacrificial.

 

Ao repensar o sacrifício à luz da categoria de dom, será possível falar de salvação sem sacrifício a partir de uma perspectiva pós-teísta.

 

A doutrina trinitária e a purificação da imagem de Deus

 

A doutrina trinitária como metáfora entre Deus e o mundo permite transcender as formas não duais da relação entre Deus e o mundo. É preciso transcender as formas antropomorfizantes com as quais Deus foi pensado, imaginado e até mesmo acreditado. Para realizar essa purificação da imagem de Deus, é necessário haurir diretamente à sua realidade, assim como sugere Meister Eckart, concebendo a divindade para além de toda determinação e limitação, mesmo pessoal deus-trinitas, buscando recurso naquela realidade que Meister Eckhart chama de profundidade, as profundezas da alma, onde se dá a forma mais elevada de unidade entre Deus e o homem que é o espírito.

 

Finalmente, a interpretação metafórica da doutrina trinitária permite repensar o que significa dizer que Deus é pessoa e pessoal e, por fim, a identidade entre ver Deus e tornar-se Deus.

 

Qual oração?

 

Durante o tempo da pandemia e agora com a guerra na Europa, a questão da oração voltou ao centro. Por que Deus não intervém na vida dos homens? Por que ele não responde às nossas orações? O amadurecimento da fé, também na forma de conceber a oração de pedido, implica um caminho de transformação que nos faz passar da oração entendida principalmente como conversa ou diálogo com um Tu para uma lenta e profunda transformação do orante no próprio ser de Deus.

 

Nós nos tornamos aquilo que contemplamos; cada homem, cada mulher é chamado a tornar-se Cristo, plenamente Deus.

 

A necessidade de atualizar a imagem de Deus está subjacente à nossa compreensão da fé. Nos primeiros séculos do cristianismo, especialmente durante o período dos grandes concílios como o de Nicéia e da Calcedônia, a fé cristã deu uma guinada decisiva: do rígido monoteísmo judaico, a uma forma relativa de monoteísmo que mais tarde veio a se expressar na doutrina trinitária.

 

A ideia da encarnação foi fundamental para realizar essa transformação. Esse desenvolvimento nunca foi considerado pela igreja como uma traição à fé bíblica: aliás, poderíamos dizer em um sentido evolutivo que foi seu cumprimento. O que impulsionou nos primeiros séculos do cristianismo para fazer evoluir a ideia cristã de Deus, na atual virada pós-teísta é o que impulsiona vários autores a fazer a forma monoteísta da fé cristã dar um passo a mais em direção ao além de Deus.

 

A presente revolução teológica pretende repensar o Deus sem Deus da secularização, fenômeno este típico da contemporaneidade moderna, na direção de uma atualização pós-secular da ideia de Deus.

 

Deus. DuepuntoZero.

 

 

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