A questão de Deus num contexto pós-teísta. José María Vigil no IHU

Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" entre maio e julho de 2022

Foto: Jesus Vidal | Unsplash

Por: Patricia Fachin | 12 Mai 2022

 

"Os tempos mudaram, e mudou o conceito que hoje temos da religião. Ela deixou de ser identificada com a espiritualidade, com a dimensão espiritual profunda da humanidade, sendo conceituada simplesmente com uma de suas formas de expressão, que apareceu há apenas cinco milênios, com o surgimento de um tipo de sociedade vinculado à Revolução Agrária. Hoje, cada vez mais, a religião cede sua preeminência em favor da espiritualidade, que não tem poucos milênios, mas é permanentemente coetânea com o ser humano. E a visão religiocêntrica dá lugar a um paradigma chamado pós-religioso". O diagnóstico do teólogo espanhol naturalizado nicaraguense, José María Vigil, embora date de 2013, há quase dez anos, expressa o que diversos círculos cristãos têm vivenciado e percebido exatamente nos dias de hoje: "os sinais de um crescente abandono da religião" e, ao mesmo tempo, a vivência crescente da "espiritualidade", ainda que compreendida e vivida de modo difuso.

 

 

Como ramificação do paradigma pós-religioso e da disseminação de uma "pluralidade espiritual", surge também o paradigma pós-teísta, que não tem Cristo como ponto central e referencial. Nesse novo cenário, para o cristianismo, "impõe-se com nova relevância a necessidade de analisar, debater e apontar perspectivas a respeito das possibilidades, chances e desafios para apresentar a pessoa de Jesus Cristo, com sua mensagem, de forma que faça sentido hoje". Nessa direção, o "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, propõe refletir, de modo transdisciplinar, sobre "as condições e possibilidades da existência cristã e eclesial e da teologia no contexto das transformações socioculturais e religiosas que resultam numa caracterização da sociedade e da cultura atual como pós-teísta, pósreligiosa e pós-cristã". O Ciclo será realizado através de conferências online até 01-07-2022. A primeira será ministrada hoje, 12-05-2022, por José María Vigil, membro da Associação de Teólogos do Terceiro Mundo - ASETT/EATWOT, no Panamá. A palestra, intitulada "A questão de Deus num contexto pós-teísta", será transmitida na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no Canal do IHU no YouTube, às 10h.

 

 


Teologia do pluralismo religioso

 

No atual momento histórico, marcado por transições, transformações e incertezas, inclusive no campo religioso e espiritual, Vigil acentua a necessidade de desenvolver uma "teologia do pluralismo religioso". Segundo ele, desde suas origens "as religiões têm vivido a sua história toda sobre a convicção de serem, cada uma, a única, a verdadeira, a universal, a perfeita, a que sabe tudo e não tem nada a aprender de ninguém... Não todas da mesma maneira, obviamente". Entretanto, esclareceu em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2011, "as religiões não são iguais nem dizem a mesma coisa, como o igualitarismo pretenderia". Apesar das transformações ocorridas na sociedade e nas práticas religiosas, pontua, há uma questão central com a qual as religiões se defrontam e precisam responder: "O que fazer com aquela herança que as religiões receberam como intocável, por ser revelada e imutável? Eis aí o problema, que é interno, independentemente da boa ou má relação com a religião vizinha, independentemente das boas ou más propostas da ONU para uma Aliança de Civilizações e religiões... É outro nível".

 

 

É justamente para resolver esse tipo de questão que a teologia do pluralismo religioso é necessária. Ele explica: "Isto se chama 'teologia do pluralismo religioso': consiste em 'teologizar', ou seja, refletir sobre o significado que pode ter o pluralismo religioso, a pluralidade de religiões: por que existem religiões e não só a minha religião que eu fui ensinado que era a 'única verdadeira'? As outras têm valor? Têm valor por si mesmas ou o recebem da minha? Posso reconhecê-las como válidas, ou tenho que procurar convertê-las? E se posso reconhecê-las, como ficam então a unicidade e 'absoluticidade' que a minha religião sempre proclamou? Nessa reflexão toda consiste a teologia do pluralismo religioso".

 

 

A teologia do pluralismo religioso, que propõe em última instância um diálogo filosófico-teológico entre as diferentes religiões, inclusive entre as de matriz cristã, conforme esclarece o teólogo, não pode ser confundida com o diálogo inter-religioso. "Como se vê, não é a mesma coisa que o 'diálogo inter-religioso'. Uma coisa é refletir sobre a pluralidade religiosa ('teologia do pluralismo religioso'), e outra, dialogar mesmo com outra religião. Sem a transformação de mentalidade que essa reflexão vai provocar, não será possível 'dialogar' verdadeiramente com outra religião, porque será um diálogo de surdos, aparente diálogo daqueles que pensam – cada um – que só eles têm a verdade e que o outro não é interlocutor religioso válido. Por isso nós dizemos que a teologia do diálogo inter-religioso é um 'intradiálogo', um diálogo que uma religião deve fazer consigo mesma antes de dialogar com outra, para que o diálogo possa ser viável e frutífero".

 

 

A teologia do pluralismo religioso proposta por Vigil também é útil para refletir, do ponto de vista teológico-filosófico, sobre a contribuição do cristianismo para problemas que estão na ordem do dia, como a promoção da paz, tendo em vista não só a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas as diversas guerras que perduram em outras partes do mundo, gerando inúmeras consequências sociais e morais, e a questão climática, considerando igualmente os efeitos sociais gerados pelo novo regime climático, especialmente em regiões que são mais atingidas por catástrofes ambientais, onde cresce o número de refugiados, as desigualdades sociais e a pobreza.

 

 

Teologia do pluralismo religioso e a promoção da paz

 

A paz, disse Vigil na entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, "não é só a ausência de guerra... A paz não é um conceito negativo, mas extremamente positivo. Poderíamos dizer que a paz seria o shalom (judeu), ou o shalam (árabe), que não são conceitos negativos. Pelo contrário, são conceitos de plenitude: a paz é o resumo de todos os bens salvíficos". Essa compreensão acerca da paz, sublinha, "também se reflete na teologia do pluralismo religioso, que teria como funções ou tarefas: uma primeira, negativa, de desconstrução, de desmonte dos obstáculos, dos preconceitos geradores de conflitos, dos axiomas superados que hoje viraram daninhos inclusive no mundo mundializado atual; e uma segunda tarefa, positiva, a de reconstrução, o encontro prazeroso das convergências religiosas, da muita riqueza comum, das inesgotáveis peculiaridades que cada religião tem como lampejos únicos da luz única e eterna do Mistério, a função mesma de 'religação' por cima da imensa 'hierodiversidade' ou 'diversidade do sagrado'".

 

Teologia do pluralismo religioso e a questão ambiental

 

Do mesmo modo, acrescenta, a teologia do pluralismo religioso pode contribuir "para o bem comum da humanidade e da vida no planeta. Já não podemos ter só o objetivo da humanidade, como o antropocentrismo religioso nos educou. O bem comum da humanidade ficaria absolutamente curto e mal-entendido se deixasse de buscar o bem comum da vida no planeta (além dele é pretensioso dizer que podemos fazer alguma coisa, hoje ao menos)". Nesse sentido, a fé cristã também oferece contribuições aos efeitos da crise climática, não só por seu entendimento de natureza como criação de Deus, mas também pelo sentido amplo do que caridade significa - ou deveria significar - em uma perspectiva cristã. "Se 'a caridade começa pela própria pessoa', hoje a caridade realista deveria começar pelo planeta: todos os nossos objetivos estão ameaçados de morte, ante o que está vindo. Em rigor, estamos caminhando para a extinção da nossa espécie. Se não mudarmos – e já tem quem duvide que seja possível mudar a tempo – o sistema atual de vida (economia, produção, consumo, contaminação ambiental, destruição da ecologia...), estamos nos aproximando a cada dia do nosso fim. Não é exagero, é literalmente real, e mais provável do que o contrário", sugere. E acrescenta: "Enquanto houver pobres ou injustiçados no mundo e houver simultaneamente fé, terá de haver ‘fé libertadora’, e sua auto-reflexão será a teologia da libertação”.

 

 

Conferencistas do Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas

 


José María Vigil (Foto: Wikipedia)

 

José María Vigil é formado em Teologia pela Universidad Pontificia de Salamanca. Na Universidade de Santo Tomás de Roma, licenciou-se em Teologia Sistemática. Em Salamanca, Madrid e Manágua estudou Psicologia. É doutor em Educação pela Universidade La Salle de San José, Costa Rica e pós-doutor em Estudos da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, Brasil. É autor de diversos livros, como "Teologia do Pluralismo Religioso: Para uma Releitura Pluralista do Cristianismo" (São Paulo: Paulus Editora, 2006). É organizador do livro "Después de las religiones: una nueva época para la espiritualidad humana" (Madrid: Bubok Publishing, 2020).

 


Ferdinando Sudati (Foto: Reprodução do YouTube)

 

Ferdinando Sudati é teólogo e presbítero na Diocese de Lodi, Itália. É curador na Itália da obra do teólogo anglicano pós-teísta John Shelby Spong. Em 25-05-2022, ele ministrará a conferência "A fé cristã na ressurreição e a crise da linguagem religiosa na pós-modernidade", às 10h.

 

 


Paolo Gamberini (Foto: ApertaMente)

 

Paolo Gamberini é doutor em Teologia pela Philosophisch-theologische Hochschule “Sankt Georgen”, Frankfurt, Alemanha. É professor na Università La Sapienza, Roma, e pesquisador na área de Teologia Sistemática, com especial enfoque em Cristologia, Doutrina da Trindade, Eclesiologia Ecumênica, Teologia do Diálogo Inter-religioso, Teologia Comparada das Religiões, Teologia Fundamental e Teologia Pós-teísta. Ele ministrará a conferência intitulada "A Teologia cristã em paradigma pós-teísta" em 15-06-2022, às 10h.

 

 


Fulvio Ferrario (Foto: Reprodução do YouTube)

 

Fulvio Ferrario é doutor em Teologia e pesquisador nas áreas de História da Teologia (Lutero, Barth e Bonhoeffer) e de Teologia Sistemática, a relação entre fé e razão e escatologia. Atualmente, leciona na Faculdade de Teologia Valdese, Roma. Ele ministrará a conferência "Desafios e oportunidades para as comunidades de fé numa sociedade pós-cristã" em 24-06-2022, às 10h.

 

 

Mais informações sobre o "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" estão disponíveis aqui.

 

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