No final de abril deste ano, o teólogo italiano Vito Mancuso refletiu sobre a necessidade de "reconstruir a humanitas", título de seu artigo publicado no jornal La Stampa e reproduzido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
A necessidade de reconstruí-la, segundo ele, segue-se do seguinte diagnóstico:
"Depois de décadas em que se pretendeu desconstruir, abater, revelar falsidades recônditas; depois da vontade de desmantelar o trabalho dos séculos anteriores fazendo filosofia 'com o martelo', como diz o subtítulo do 'Crepúsculo dos ídolos', de Nietzsche; depois de um século como o XX, em que o pensamento se propôs a 'combater o sistema', isto é, a dinâmica das forças econômicas, sociais, espirituais, culturais cujo concerto se chama política; depois da proclamação da morte de Deus e da instauração já universal da secularização e não raramente do niilismo; depois de demonstrações analíticas da falta de fundamento da subjetividade consciente e do livre arbítrio, razão pela qual parece não fazer mais sentido falar de liberdade, escolha, responsabilidade, com a consequente morte da ideia de ser humano; depois de tudo isto, ao que hoje se juntam as imagens de escombros e de morte da guerra ucraniana, é quase natural, eu diria até fisiológico, sentir a necessidade do procedimento contrário. Portanto, reconstruir."
A reconstrução da humanitas, conforme ele explica, implica reconstruir "a religião, a ética, o direito, a política, a família, a escola, a educação, a sexualidade, a linguagem" a fim de sanar a "sensação persuasiva de decadência" que "se dá pelo fato de não nos sentirmos mais sócios uns dos outros, de não estarmos mais reunidos em um projeto comum, em uma societas". Segundo o teólogo, "não nos sentimos mais sócios porque ficamos desprovidos de um ideal maior do que o interesse pessoal que conecte as nossas consciências".
As propostas de reconstrução ou de novas desconstruções para erigir novas construções são elaboradas por intelectuais de todos os campos, que geralmente assentam os alicerces de suas teorias a partir das disciplinas nas quais estão diretamente implicados.
Entre as diversas propostas em curso, uma surgiu a partir de um grupo de teólogos que, ao constatar a crise do cristianismo e os inúmeros problemas socioambientais da nossa era, sugere um "humanismo bio-eco-cêntrico e libertador", levando em conta o desenvolvimento das últimas pesquisas científicas e tendo um "modelo de atitude", isto é, de ação, "inspirado na sabedoria de Jesus de Nazaré". A proposta foi explicada pelo teólogo espanhol Santiago Villamayor, em artigo recente, publicado na página eletrônica do IHU: "Falamos de um modelo humanista centrado na vida e no cuidado da comunidade de todos os viventes e de todos os seres da nossa casa comum. Como projeto universal e como modelo de atitude inspirado na sabedoria de Jesus de Nazaré."
Este será o tema da conferência virtual de Villamayor no Instituto Humanitas Unisinos - IHU durante o "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas", que está ocorrendo até 01-07-2022.
A palestra intitulada "O pós-teísmo como superação dialética do teísmo" será ministrada na próxima terça-feira, 07-06-2022, às 10h, e transmitida na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no canal do IHU no YouTube.
Segundo Villamayor, a nova era na qual vivemos e viverão as gerações futuras necessita igualmente de uma nova "cosmovisão". Isso porque, conforme ele lembra, as anteriores, além de não fazerem sentido para o homem moderno, foram responsáveis pelos problemas nos quais estamos imersos. "A cosmovisão dominante nas culturas teístas de cerca de 7.000 anos atrás, e especialmente na tradição bíblica de cerca de 3.000 anos atrás, era profundamente teocêntrica e teocrática. Concebia-se a vida humana segundo o mito bíblico como um castigo e um trânsito de redenção à espera de conquistar um mundo mais digno do que este. O mandato do Gênesis, 'multipliquem-se, encham e submetam a terra' concedeu ao ser humano uma pequena delegação de poder que logo se tornou domínio sobre a natureza e os outros seres, inclusive os humanos, considerados inferiores, e de modo especial sobre as mulheres. Finalmente, a experiência de progresso acelerado, iniciada com a revolução industrial, culminou na passagem do teocentrismo para o antropocentrismo. No entanto, em meados do século passado, começou-se a questionar o triunfalismo desenvolvimentista sem limites e começou a tomar forma uma perspectiva humanista bio-eco-cêntrica com uma crescente consciência de nossos limites e uma busca por relações harmoniosas e sustentáveis com todos os seres", afirma.
É a partir desse raciocínio e dessa compreensão da realidade, esclarece, que "nasceu a corrente de pensamento do humanismo bioecocêntrico. Uma corrente plural alimentada por múltiplas tradições e novas sensibilidades ecológicas, pacifistas, feministas e também pelo legado de valores de Jesus de Nazaré em que queremos nos inspirar. Um legado que é em si aconfessional e inclusivo e pode coexistir com várias formas de teísmo, o ateísmo e o pós-teísmo".
Entre os modelos da ação humana de Jesus que podem nos inspirar nas próximas décadas, Villamayor destaca a parábola do Bom Samaritano, que "pode ser uma bela ilustração da sabedoria e da práxis humanista de Jesus", mas "não é a única". Para Jesus, menciona, "a chave é sentir-se e tornar-se próximo de cada ser humano necessitado. A práxis samaritana é movida pelo olhar compassivo, e o olhar compassivo se expressa no aproximar-se do ferido, curá-lo com óleo e vinho, cuidar das feridas, colocá-lo na montaria, levá-lo à hospedaria, cuidá-lo e fazê-lo cuidar e pagar na volta. É um amor que, quando se torna cultura, é semente de solidariedade universal. É esta noção ética que foi tomada nas últimas décadas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos como base para sustentar que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos".
Na interpretação dele, o ensinamento de Jesus sobre o amor ao próximo "nos transmite como seu legado a milenar Regra de Ouro, dizendo-nos: '...o que vocês desejam que os outros lhes façam, também vocês devem fazer a eles' (Lucas 6, 31). Esse princípio ético, formulado praticamente nos mesmos termos, encontramos em múltiplas tradições religiosas e laicas: hinduísmo, budismo, jainismo, taoísmo, confucionismo, zoroastrismo, judaísmo, islamismo, filosofia grega, Kant etc. Se essa regra fosse praticada universalmente, estaríamos construindo um mundo mais humano e feliz", assegura.
O Papa Francisco também tem refletido sobre a necessidade de reconstruir a humanitas, como pode ser observado em sua mensagem no encerramento da Assembleia Plenária do Conselho Pontifício para a Cultura, em novembro do ano passado. O pontífice, assim como alguns intelectuais, constatou que "a pandemia pôs em crise muitas certezas em que se fundamenta o nosso modelo social e econômico". Mas a fragilidade vivida neste período, o conduziu a propor outro tipo de pergunta, que é, segundo ele, uma das "interrogações fundamentais da existência: a pergunta sobre Deus e o ser humano".
O tema da Assembleia do Conselho Pontifício para a Cultura foi "o humanismo necessário". Sobre a pauta em discussão, o Papa reconheceu a urgência de "novos programas econômicos", "mas sobretudo de uma nova perspectiva humanista, baseada na Revelação bíblica, enriquecida pela herança da tradição clássica, assim como pelas reflexões sobre a pessoa humana presentes nas diferentes culturas".
Na ocasião, o pontífice lembrou o discurso pronunciado por São Paulo VI no encerramento do Concílio Vaticano II, em 7 de dezembro de 1965, destacando um traço daquela, mas também da nossa época: "A religião de Deus que quis ser homem e a religião (porque é assim) do homem que quer ser Deus encontraram-se. (...) Paulo VI convidou aquela humanidade fechada à transcendência a reconhecer o nosso novo humanismo, pois — disse — 'também nós, e nós mais do que ninguém, somos cultores do homem'".
Na época do Concílio, lembrou, "confrontavam-se um humanismo secular, imanentista, materialista, e o cristão, aberto à transcendência. Contudo, ambos podiam compartilhar uma base comum, uma convergência fundamental sobre algumas questões radicais, relacionadas com a natureza humana. Hoje isto esvaeceu por causa da fluidez da visão cultural contemporânea. É a era da liquidez ou do gasoso. No entanto a Constituição conciliar Gaudium et spes continua a ser relevante a este respeito. Com efeito, lembra-nos que a Igreja ainda tem muito a oferecer ao mundo, obrigando-nos a reconhecer e avaliar, com confiança e coragem, as realizações intelectuais, espirituais e materiais que sobressaíram desde então em vários campos do conhecimento humano".
Neste novo contexto, pontuou, a questão do humanismo, para reconstruir a humanitas, "brota desta pergunta: o que é o homem, o ser humano? (...) Ao lado da questão sobre Deus — que permanece fundamental para a própria existência humana, como muitas vezes recordou Bento XVI — hoje levanta-se de modo decisivo uma questão sobre o próprio ser humano e a sua identidade. Qual é a condição específica do ser humano, que o torna único e irrepetível em relação às máquinas e até às demais espécies animais? Qual é a sua vocação transcendente? De onde deriva a sua chamada a construir relações sociais com os outros?"
Especificamente sobre a necessidade de enfrentar a crise ecológica na qual a humanidade está imersa, o Papa Francisco dirigiu seu apelo na Carta Encíclica Laudato Si'. Sobre o cuidado da casa comum: "O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados setores da atividade humana, estão a trabalhar para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos".
Para Francisco, apesar das imensas crises em que o ser humano e as demais espécies estão imersos, e da própria crise da hermenêutica bíblica, que gera fundamentalismos de todo tipo, o "humanismo de cunho bíblico" ainda é "fecundo". "O humanismo de cunho bíblico, em diálogo fecundo com os valores do pensamento clássico, grego e latino, deu vida a uma elevada visão do ser humano, da sua origem e do seu destino último, bem como do seu modo de viver nesta terra. Esta fusão entre sabedoria antiga e bíblica permanece um paradigma ainda fecundo."
As próximas conferências previstas para o "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" são as seguintes:
"A Teologia cristã em paradigma pós-teísta", em 15-06-2022, às 10h, ministrada por Paolo Gamberini, jesuíta italiano, doutor em Teologia pela Philosophisch-theologische Hochschule “Sankt Georgen”, Frankfurt, Alemanha.
Gamberini leciona na Università La Sapienza, Roma, e é pesquisador na área de Teologia Sistemática, com especial enfoque em Cristologia, Doutrina da Trindade, Eclesiologia Ecumênica, Teologia do Diálogo Inter-religioso, Teologia Comparada das Religiões, Teologia Fundamental e Teologia Pós-teísta.
Paolo Gamberini (Foto: ApertaMente)
"Desafios e oportunidades para as comunidades de fé numa sociedade pós-cristã", 24-06-2022, às 10h, com Fulvio Ferrario, doutor em Teologia e pesquisador nas áreas de História da Teologia (Lutero, Barth e Bonhoeffer) e de Teologia Sistemática, a relação entre fé e razão e escatologia. Atualmente, Ferrario leciona na Faculdade de Teologia Valdese, Roma.
Fulvio Ferrario (Foto: Reprodução do YouTube)
"Crer em Deus e crer em Jesus hoje: para além das crenças", em 01-07-2022, às 10h, com José Arregi Olaizola, doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Deusto.
José Arregi Olaizola (Foto: M. Mielniezuk)
Na página do evento "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" estão disponíveis as conferências ministradas até o momento. Acesse aqui.