22 Outubro 2024
Esta organização religiosa ultraconservadora do Peru inventou uma fé que encobre os seus crimes e a sua ambição de domínio político e econômico.
O artigo é de D. Carlos Castillo Mattasoglio, arcebispo de Lima e cardeal eleito, publicado por El País, 19-10-2024.
Em 1967, aos 17 anos, fui presidente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC). Em várias escolas de Lima surgiu a ideia de realizar uma “jornada de trabalho estudantil”. O objetivo, como fizeram outros jovens na Suécia, era arrecadar dinheiro com o nosso trabalho e doá-lo para que uma escola pudesse ser construída numa cidade pobre do Peru.
No final da minha presidência na JEC, no verão de 1968, esta iniciativa foi avaliada numa grande casa em Chorrillos. Durante a sessão plenária entraram dois jovens, vestidos de preto, mais velhos que nós. Quiseram intervir, mas introduzindo questões que não pertenciam ao objetivo daquela avaliação. Eram Luis Fernando Figari, então com 21 anos, e Sergio Tapia, que mais tarde, a partir de 1978, seria advogado próximo da Marinha e se dedicaria ao comércio de instrumentos de rastreamento. Ofereceram-nos para sermos militantes da sua “União Revolucionária”, de tendência fascista. Eles foram atraídos pela parafernália da Falange Espanhola, como nos assegurou um rapaz que assistia às suas reuniões. Procuravam crianças da escola italiana Antonio Raimondi e das escolas peruano-alemãs Alexander Von Humboldt e Santa Úrsula.
Tapia era da escola marista Champagnat. Já Figari veio da escola Santa María de los Marianistas. Lá conheceu o Pe. Óscar Alzamora SM, que em 1983 seria nomeado bispo da província de Tacna e se destacaria por suas críticas a tudo relacionado às demandas feministas e de gênero. Figari também conheceu outro religioso, o Pe. Gerald Haby SM, que promoveu uma iniciativa marianista que veio dos anos sessenta: a Congregação da Virgem Maria.
Depois de um tempo, Luis Fernando Figari, Sergio Tapia e Gerald Haby seriam os fundadores do Sodalitium Christianae Vitae ou Sodalício da Vida Cristã. Embora, em 1977, Figari se apropriasse dela definitivamente, Tapia, mais ideológico, tinha orientação política. Figari, por outro lado, disfarçou-se de religião: estudou direito na Pontifícia Universidade Católica do Peru e teologia na Universidade Católica Santo Toribio de Mogrovejo, sem concluir nenhuma das licenciaturas. Ele usou a religião como chapéu, pois seu projeto era sobretudo político e, mais tarde, de arrecadação de dinheiro.
É verdade que sempre houve a tentação por parte da esquerda de politizar as três “jornadas estudantis do trabalho”, mas os primeiros manipuladores foram os membros da “União Revolucionária”, na qual Figari e Tapia atuaram. Os dois, naquela assembleia de 1968, foram vaiados e rejeitados abertamente, e foram convidados a abandonar uma reunião para a qual não tinham sido convidados. Lembro-me que se despediram de forma desafiadora e com as mãos levantadas, gritando palavras de ordem fascistas.
Entre 1969 e 1970, no segundo e terceiro ano de universidade, conheci Gustavo Gutiérrez que, aos 41 anos, era conselheiro nacional da União Nacional dos Estudantes Católicos (UNEC). Depois de participar da Conferência Episcopal de Medellín, em julho de 1968, o Pe. Gutiérrez escreveu um texto para um congresso teológico em Genebra, na Suíça, sobre Teologia do desenvolvimento. Com dois colegas da UNEC ficamos encarregados de publicar esse texto através de um ciclo de estilização. Enquanto trabalhávamos, um dia Gustavo apareceu e nos disse: “não se chamará 'Rumo a uma Teologia do Desenvolvimento', mas 'Rumo a uma Teologia da Libertação'”.
Como estudantes universitários comprometidos com os pobres, observamos a profunda mudança que estava acontecendo em nossa sociedade peruana: a cada dia surgiam novas cidades com invasões de terras por pessoas que migravam de diferentes províncias. Fomos particularmente questionados pelo dramático acontecimento do terremoto de 30 de Maio de 1970, que deixou mais de 80.000 mortos. Aqueles que chegaram a Lima exigiram de nós maior consciência e compromisso social. Neste contexto, em 1971, foi publicada “Teologia da Libertação. Perspectivas”, na versão peruana.
Depois de terminar o bacharelado em sociologia, em 1973, decidi sair da capital para conhecer mais sobre meu país. Fui morar onde consegui um emprego como professor de sociologia, em Cerro de Pasco, área de mineração a 4.300 metros acima do nível do mar. Desde pequeno queria ser padre, mas meus companheiros espirituais insistiram para que primeiro conhecesse a realidade peruana que teria que servir. Em Cerro de Pasco coincidiram a Universidade Daniel Alcides Carrión e o mundo do trabalho, da mineração e da agricultura. Num contexto de forte tensão social e em meio a um debate teológico cada vez mais intenso, a Igreja cresceu nas comunidades populares das periferias.
Estando em Cerro de Pasco, desde 1974 observei a reação, especialmente em Lima, contra a “Teologia da Libertação” de Gustavo Gutiérrez. Principalmente em 1978 com a publicação do livro “Como lobos vorazes: Peru, uma igreja infiltrada?” por Alfred Garland. Atrás estava Figari. Aí começou todo o drama da injusta perseguição contra o Pe. Gustavo Gutiérrez. Desde o início, aquela resposta insana foi, em essência, um ataque ao cardeal Juan Landázuri, considerado demasiado aberto para eles. Atacaram Helder Camara ou Hans Kung, mas sobretudo Gustavo Gutiérrez, considerado um esquerdista. Pelo contrário, foi apenas um homem aberto ao Evangelho e aos sinais dos tempos, que atualizou a fé para o nosso continente pobre e profundamente crente. Questionou-se se, depois da Conferência de Medellín, a Igreja do continente se inseriu na vida e no sofrimento dos pobres, especialmente dos camponeses, chamados por Paulo VI de “sacramento de Cristo”.
Em 1979 voltei a Lima e compareci perante o Cardeal Landázuri, que conhecia desde os 15 anos como delegado da JEC. Candidatei-me para os estudos de filosofia no Seminário. Eu queria ser padre. Naqueles anos fui orientado pelo missionário do Sagrado Coração, Pe. Germán Schmitz, bispo auxiliar de Lima desde 1970, especialmente preocupado com a formação dos agentes pastorais e um dos principais editores do Documento de Puebla. A sua “opção preferencial pelos pobres”, pela sua fidelidade a Deus e aos homens, contrastava fortemente com as notícias que me chegavam sobre a formação que o Sodalitium oferecia aos seus seguidores: slogans ideológicos elitistas, pensamentos simplistas, rejeição da análise racional. Fiquei também sabendo que o Sodalício, com a intervenção do jovem padre Jaime Baertl, havia convertido um terreno de Lurín, bairro ao sul de Lima doado pela Família Aguirre Roca, em um cemitério privado isento de impostos. Começou assim a descolagem econômica do Sodalício.
Naqueles anos, este grupo, até então desconhecido, começou a ter nome em Roma. Fui testemunha de primeira mão, tendo estudado lá de outubro de 1979 a junho de 1987. Alguns prelados da Cúria referiam-se a Figari como um “leigo exemplar”, “vanguarda da solução” para os problemas daquele período pós-latino-americano. Igreja conciliar, porque diante de uma “Teologia da Libertação” suspeita de esquerdismo, este fundador leigo propôs uma “Teologia da Reconciliação”.
Nesses anos começou a perseguição contra Gustavo Gutiérrez e o Sodalício interveio. O Cardeal Ratzinger pediu aos bispos peruanos que examinassem os escritos do Pe. Gustavo. Um dia, em 1984, ano da minha ordenação, Gutiérrez me ligou de Lima e me disse que estava enviando um pacote cheio de documentos que eu deveria entregar diretamente ao Cardeal Ratzinger. Antes disso, Gutiérrez havia sido questionado com diversas perguntas pelo próprio cardeal, que sempre foram respondidas.
Fui recebido por Dom Joseph Clemens e, depois de uma longa espera, ele me encaminhou ao Cardeal Ratzinger: “O que é isso?” “São os documentos que ele escreveu escreveu em resposta às perguntas que lhe enviou. Ele os enviou através de mim porque estava preocupado em não receber nenhuma resposta sua”. Depois o Cardeal Ratzinger acrescentou: “Isso significa que os documentos que deveriam ter chegado através da Nunciatura não chegaram”. E acrescentou: “Eu já sabia que algo estava acontecendo, porque o Pe. Gutiérrez é extremamente sério e não poderia ter falhado”. Houve um curto-circuito na Nunciatura ou em outro lugar. Embora a primeira opção fosse a mais provável, já que um membro do Sodalício apoiava externamente o trabalho na Nunciatura.
Ali também disse a Ratzinger que Gutiérrez tinha escrito o seu livro sobre espiritualidade intitulado “Beber no seu próprio poço”, que a editora Queriniana estava preparando para ser publicado no próximo mês de junho de 1984 e que o teólogo Rossino Gibellini queria apresentá-lo em Roma com a presença do Pe. Gustavo. O cardeal alemão assentiu e me disse: “Também publico pela Queriniana, e Rossino sempre publica textos sólidos. Vou mandar alguém. Quando é a apresentação?” Eu disse a ele em 7 de junho. “Dois dos meus colaboradores estarão lá”, respondeu ele. Despedimo-nos educadamente e então descobri que a apresentação tinha sido um sucesso. No dia 8 de junho deixei Roma para ser ordenado no dia 15 de julho.
Em outubro de 1984, toda a Conferência Episcopal do Peru chegou a Roma. O “caso Gustavo Gutiérrez” terminou com um documento elaborado pelo marianista Óscar Alzamora, amigo de Gutiérrez, mas também de Sodalicio. Neste documento, como disse o Pe. Gutiérrez, não foi ele quem foi condenado, mas Jesus. Gutiérrez, demonstrando grande obediência e amor à Igreja, refez o rascunho do seu texto, submeteu-o ao parecer de D. Schmitz e apresentou-o à Assembleia reunida em Roma. Finalmente a verdade veio à tona e Gustavo Gutiérrez foi salvo. As manchetes diziam: “Landázuri e Wojtila salvam Gutiérrez”. Embora Ratzinger não tenha sido mencionado, ele salvou Gutiérrez, que conhecia bem os professores de Gutiérrez.
Sem dúvida, D. Alberto Brazzini, Óscar Alzamora SM, Ricardo Durand Flórez SJ, Fernando Vargas SJ e o Sodalício, já então próximos da geopolítica que mais tarde se concretizaria no pontificado de João Paulo II com os cardeais Sodano e López Trujillo, estavam prestes a fazer algo sério com o Pe. Gutiérrez. Entretanto, a “Teologia da reconciliação” permaneceu um puro slogan.
O Sodalício oficializou-se com o Cardeal Landázuri e cresceu com o Cardeal Vargas Alzamora. A princípio convenceram vários leigos e padres com influência nas classes altas de Lima, como Harold Griffith, Armando Nieto SJ e Alberto Brazzini. No fim, com exceção de Brazzini, todos acabaram se desencantando. Os Núncios também os apoiaram: Tagliaferri e Dossena, no seu processo de reconhecimento canônico, cheio de irregularidades; depois Passigato e Musaró, consolidando sua estrutura econômica.
Em 1987, quando voltei como padre a Lima e era vigário juvenil da pastoral universitária, tive uma altercação com os sodalitas, porque queriam tomar as capelas universitárias e ali impor os seus símbolos. Eles me acusaram de proibi-los de ter espaço por não deixá-los colocar a placa. Fizeram uma denúncia contra mim, denunciando-me perante o Cardeal Augusto Vargas. Ele me disse: “O pessoal do Sodalício acabou de chegar aqui e eu disse a eles que esta não é a Gestapo”. Ele estava farto de tanta instrumentalização por parte desse grupo religioso hermético e elitista. O cardeal não viu isso porque morreu em 2000, mas os anos seguintes confirmariam que aquela aparência de perfeição eclesial, elogiada e celebrada por parte da hierarquia, escondia uma realidade obscura e perturbadora.
Finalmente, em 2019, assim que fui nomeado arcebispo de Lima, um jesuíta me informou que um menino precisava falar comigo. Ele havia sido afetado por um sodalita, deram-lhe comprimidos para esquizofrenia, que ele nunca teve antes e que lhe causaram a mesma. Ele teve que pagar a dívida que contraiu na compra desses medicamentos e não foi suficiente. “Eles fizeram experiências comigo”, ele me disse. Este menino me pediu ajuda porque só lhe deram alguns milhares de soles para reparos. Além disso, acumulou dívidas pelo que gastou durante o tempo em que foi sodalita. Escrevi ao Superior Geral: “meu paroquiano de Lima, que agora mora em Santiago do Chile, maltratado por sua experiência em seu psiquismo, precisa desta ajuda e exijo que você, pelo menos, pague esta dívida mínima”. Eles deram-lhe o dinheiro.
Como teólogo e sociólogo comecei a me perguntar o que realmente são o Sodalitium e movimentos eclesiásticos similares. Não é apenas política, como no seu início. Agora é a religião instrumentalizada para um plano político. Figari coincide com Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, que é pessoalmente depravado e tem um projeto político-econômico escondido atrás de uma fachada religiosa. “Por que eles fizeram experiências com esse garoto?”, perguntei a mim mesmo. Ele não foi o único. Foi o que fizeram com vítimas como Rey de Castro, conhecido por ser um “escravo de Figari”: servilismo e controle mental. Lembrei-me, então, de algo que estudei em minha tese: “os conquistadores, como todos os tiranos, sempre tentam desordenar o entendimento dos índios fazendo-os covardes para que não pensem na sua liberdade”, de “História da Índias” de Bartolomé de las Casas. O Sodalício destruiu pessoas, submetendo-as aos seus interesses de conquista. Não há nada de cristão nisso.
Minha hipótese é que o Sodalício obedece a um projeto político. É a ressurreição do fascismo na América Latina, usando a Igreja de forma tortuosa, através de métodos sectários, experimentando o quão forte você é ou forçando você a dormir de bruços nas escadas para construir o caráter. Isto é, puro ascetismo pelagiano. Tudo isso leva ao controle mental das pessoas que acabam se tornando exércitos de robôs que conquistam e dominam. A minha ideia é que, se a América Latina é uma reserva católica sujeita a mil e um interesses externos, entidades como o Sodalício impedem que nela se desenvolva uma mudança. Conseguiríamos esta mudança se anunciássemos o amor livre de Cristo e, em liberdade, onde cada um tem “todo o tempo da vida para se converter”, como gostava dizer Las Casas. Os jesuítas e os dominicanos eram um exército e as suas reduções procuravam a mudança social com a contribuição da fé. Mas estes movimentos são de redução total e a mudança política que procuram, a sua luta contra o marxismo, neste caso, envolve a subjugação das pessoas.
O uso da religião para outros fins que não a extensão das boas novas de Jesus é o que há de mais destrutivo para a Igreja Católica. Portanto, cheguei à conclusão de que não há carisma no Sodalitium. Só há carisma quando a pessoa recebe um dom do espírito para toda a Igreja e as suas obras são boas. O fundador e o grupo podem cometer erros e pecar, mas o saldo é altamente positivo devido às boas obras geradas. Já Figari, verificado como abusador, e com ele grande parte do núcleo fundador e outros, inventou um suposto carisma para proteger um projeto político e sectário. Esta experiência foi comprada por pessoas bem intencionadas que acreditaram que era um bom projeto para lutar pelo Peru. Mas este não é o caminho. Não o da manipulação sectária.
O Sodalício e os outros grupos fundados por Figari não são aproveitáveis porque nasceram mal e os seus frutos nos últimos cinquenta anos demonstram isso. A serviço da Guerra Fria Latino-Americana, tem sido uma máquina que destrói pessoas, inventando uma fé que encobre os seus crimes e a sua ambição de domínio político e econômico. Não há nada de espontâneo em seus membros. Não há liberdade e sem ela não há fé. Por ser uma experiência fracassada, deveria ser suprimida pela Igreja.
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Sodalício, uma experiência fracassada da guerra fria na América Latina. Artigo de Carlos Castillo Mattasoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU