11 Setembro 2024
“Figari era fã da ditadura de Francisco Franco, de Hitler, de Primo de Rivera, fazia seus fiéis cantarem Cara al Sol e falava em ser 'meio monge, meio soldado'”. A jornalista peruana Paola Ugaz fala com precisão, sem omitir detalhes. Estudou aprofundadamente Luis Fernando Figari (Lima, 08-07-1947), fundador do Sodalício, hoje expulso da Igreja Católica. A investigação que realizou juntamente com Pedro Salinas revelou um inferno de pedofilia e todo o tipo de abusos que escandalizaram o Vaticano a tal ponto que o Papa enviou pessoas da sua maior confiança para investigar este poderoso grupo religioso com seguidores em 25 países.
Em conversa com elDiario.es, Ugaz analisa as chaves do poder, domínio e submissão que permitiram que os líderes deste ultragrupo fossem reconhecidos e protegidos durante anos pelo Vaticano. Além disso, revela a perseguição sofrida durante a investigação e que atingiu os próprios enviados de Bergoglio.
A entrevista é Jesús Bastante, publicada por El Diario, 09-09-2024.
O que significa a expulsão de Figari do Sodalício?
É de capital importância para nós, como investigadores deste caso, para os sobreviventes e para o Peru, país onde esta organização foi fundada em 1971 e onde mantém muito poder político, econômico, social e também jurídico, apesar do fato de que as queixas contra ele datam de 20 anos atrás. O Sodalício funcionou impunemente na sociedade peruana e só foi graças ao Papa Francisco que o Vaticano interveio. Isto mostra que, globalmente, outras organizações que usaram o nome da Igreja Católica para aceder ao poder e abusar dos seus membros não podem descansar.
Como tem sido realizado o trabalho dos pesquisadores do Vaticano?
Tem sido fundamental. Sem Charles Scicluna e Jordi Bertomeu nada teria acontecido. Eles vieram ao Peru com grande humildade e empatia para sentar e ouvir todos os sobreviventes, os camponeses de Piura de quem o Sodalício havia tomado suas terras no norte, a todos, coletando muitas informações que levaram até o momento da expulsão.
Tanto Scicluna como Bertomeu tiveram de suportar duras pressões, no Peru e na Cúria Romana. Eles, enviados do Papa, foram acusados e atacados, o que equivale a atacar o Papa. E a bandidagem também faz parte do Sodalício, que chegou ao fundo do poço ao acusar a missão designada pelo próprio Papa. E devemos agradecer ao trabalho destes dois religiosos e ao do Pontífice pela empatia que teve ao encontrar um simples jornalista que investigava a pedofilia clerical.
Teve a oportunidade de falar com o Papa sobre este escândalo…
Sim, sou a primeira jornalista a encontrar-se com o Papa para falar sobre estes temas, para falar das vítimas. Em novembro de 2022 pedi ao Francisco que fizesse alguma coisa e daí surgiu a investigação confiada a Scicluna e Bertomeu. Falei com o Papa sobre as vítimas: José Enrique Escardo, o primeiro denunciante do Sodalício; de Renzo Orbegoso, de Rodrigo Labor, de tantas pessoas que sofreram tanto... E graças a essa escuta, enviou os investigadores e finalmente decidiu-se expulsar Figari.
Que decisões foram tomadas com base na investigação dos enviados do Vaticano?
Foi um trabalho meticuloso. Eles vieram entrevistar todas as vítimas e deram-lhes outra imagem do que é a Igreja Católica depois de anos sem fazer absolutamente nada. Desde o início mostraram que queriam fazer justiça, mudar as coisas, num país onde os poderes constituídos geram impunidade para o Sodalício. Junto com eles, devemos destacar o trabalho do arcebispo de Lima, D. Carlos Castillo, do cardeal Pedro Barreto e de D. Reinaldo Nann, que são as exceções, porque o restante dos bispos do Peru não ouviu as vítimas durante anos.
Figari fundou a organização aos 24 anos, quando nasceu a Teologia da Libertação, como resposta ideológica da direita. Muitas autoridades religiosas olharam com bons olhos para este 'braço armado' que nasceu no Peru e abriram-lhe as portas do Vaticano.
Primeiro chegaram, viram e depois, ao regressar a Roma, tomaram decisões: destituíram Dom Rodríguez Carballo [atual arcebispo de Mérida-Badajoz], que era secretário do dicastério do qual dependia o Sodalício e que não tinha feito absolutamente nada; também mandaram para casa o arcebispo de Piura, D. José Antonio Eguren, que havia deixado de lado os camponeses cujas terras foram tomadas pelo Sodalício. O Vaticano agora é capaz de fazer alguma coisa. Esta é uma reivindicação simbólica para todas as vítimas.
Durante anos, Figari foi protegido, não só no Peru, mas também no Vaticano...
Figari fundou a organização aos 24 anos no Peru, quando a Teologia da Libertação nasceu pelas mãos do padre peruano Gustavo Gutiérrez. Foi uma resposta ideológica da direita a uma teologia que falava dos pobres. Figari era fã da ditadura de Francisco Franco, de Hitler, de Primo de Rivera, fazia seus fiéis cantarem Cara al Sol, e falava em ser “meio monge, meio soldado”. E muitas autoridades religiosas olharam com bons olhos para este “braço armado” que nasceu no Peru. E abriram-lhe as portas do Vaticano. Quando Ratzinger chegou ao Peru em 1986, o grupo que o recebeu foi o Sodalício.
Luis Fernando Figari era o queridinho do Vaticano. João Paulo II nomeou-o consultor do Pontifício Conselho para os Leigos e deu ao movimento o posto pontifício em 1994. Eles se moviam por Roma como Pedro pela sua casa: Figari estava confiante de que nada aconteceria com ele porque ele tinha amigos poderosos no Vaticano. O fato de ter caído por causa de um documento assinado pelo próprio Papa dá dimensão à decisão que foi tomada.
Quem é Figari para você?
Para mim, Luis Fernando Figari é um produto peruano do abuso, da impunidade, um exemplo de como alguém que acumula tanto poder pode fazer tanto mal. Figari não é o lobo solitário, não é o monstro que veio e fez o mal. Ele é um líder que conseguiu criar essa ficção do carisma do Sodalício, já tendo abusado de algumas pessoas antes, buscando um espaço seguro para continuar abusando e ser reconhecido na esfera pública, para ter poder, luxos... enquanto em sua vida interna ele continuou a ser um valentão, um abusador que transforma seus seguidores em escravos. Gostava de filmes de ação, mas aquelas noites eram de terror para os escravos que viviam com ele. Além disso, ele era um misógino: para ele as mulheres eram o pior dos piores, eram seres inferiores.
Por enquanto Figari continua na Itália. Você acha que ele será julgado no Peru?
Figari só será julgado no Peru se um Ministério Público se atrever a investigar ex officio, ou se o Ministério Público que solicitou a sua prisão preventiva em 2017 o solicitar novamente. Até agora, absolutamente nada aconteceu com ele na justiça peruana, e a decisão do Vaticano apenas confirma que a solução tinha que vir de fora do país, porque dentro do país, Sodalício ainda é um movimento muito poderoso.
E agora? Poderá o Sodalício sobreviver ao seu fundador? Que medidas devem ser tomadas?
O Sodalício não pode sobreviver ao fundador porque ele não era um monstro trazido de fora, fazia parte da mesma organização, criada com o seu carisma, e que tinha dentro dela muitos abusadores. E a impunidade com que agiram os abusadores físicos, psicológicos e sexuais faz parte do seu DNA. Além disso, o desejo de se vingar de quem os denunciou. Seus membros tornaram-se robôs preparados para destruir uns aos outros só porque o fundador assim o disse, porque “quem obedece nunca se engana”, como diziam.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Luis Fernando Figari era um monstro, um abusador, um misógino, e o queridinho do Vaticano”. Entrevista com Paola Ugaz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU