29 Mai 2023
O psicanalista tunisiano Gérard Haddad põe contra as cordas o conceito de Complexo de Édipo teorizado por Sigmund Freud, mas sem propor um nocaute teórico, afirma que no mundo atual não se mata o pai, mas, sim, mata-se entre irmãos. Este conceito é conhecido como Complexo de Caim ou complexo fraterno. E assim intitula seu novo livro, El Complejo de Caín, ¿un punto ciego en la teoría freudiana? (Editora Pontevedra), onde aborda e busca responder ao ódio entre adversários e à violência que esta atitude acarreta. Como se pode notar, nada mais atual, ainda que recorra a textos religiosos.
Haddad formou-se engenheiro agrônomo, mas após sua análise com Jacques Lacan estudou medicina e psiquiatria e transformou sua vida, tornando-se analista e escritor. “Minha análise com Lacan transformou tudo em minha vida: no nível intelectual e espiritual, no nível profissional e, finalmente, no nível amoroso. Minha vida atual é a extensão de minha análise; não é uma memória, mas, sim, uma experiência”, destaca na entrevista ao Página/12.
Gérard Haddad nasceu na Tunísia. Depois de estudar e trabalhar com agronomia na África, conheceu Jacques Lacan e, em 1969, iniciou uma análise com o grande psicanalista francês por doze anos, cujo depoimento foi publicado no livro O dia em que Lacan me adotou. Aos 30 anos, Haddad começou a estudar medicina e, algum tempo depois, especializou-se em psiquiatria. Realiza trabalhos sobre psicanálise e religião condensados em uma quantidade significativa de escritos. Entre seus principais ensaios, destacam-se Manger le libre, Les Biblioclastes, Freud en Italie, Lumière des astres éteints e Dans la main droite de Dieu.
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 22-05-2023. A tradução é do Cepat.
Lacan o incentivou a escrever?
Eu queria escrever desde a minha infância. Esse desejo de escrever nunca diminuiu. É uma das minhas razões de viver. Aos 15 anos, comecei a escrever um romance que encontrou uma editora importante e foi publicado. Então, esse desejo adormeceu. A partir dos primeiros meses da minha análise, despertou. Comecei escrevendo um longo artigo que agradou a Althusser e que o levou a ser publicado na grande revista marxista La Pensée, com o título A literatura na ideologia.
Lacan não me incentivou, apoiou-me. Além disso, nunca me deu nenhum conselho concreto. Atuou para tornar meu desejo realidade. Inicialmente, pensei em ser romancista e, finalmente, sou ensaísta. Não me queixo: esses ensaios têm um forte sabor de narrativa. O dia em que Lacan me adotou é uma espécie de romance. Escrevi três romances, o último acaba de ser publicado com o título Le cheval de trois. Estes são livros inspirados em minha prática como analista.
Lacan foi uma pessoa fundamental na sua formação como analista?
Minha formação como analista é uma só: a que tive em minhas análises, a que adquiri com ele. Talvez seja uma falha, um ponto fraco de minha formação, mas é assim.
O que o motivou a pesquisar o complexo de Caim?
Aconteceu por si só, gradualmente, seguindo minha reflexão sobre fanatismo e terrorismo. Chamou-me a atenção o fato de que os terroristas islamistas eram geralmente irmãos. Não sei explicar brevemente, mas um dia minha repressão sobre esse assunto caiu, uma repressão amplamente compartilhada pelos psicanalistas.
Se a psicanálise deseja falar a nossos contemporâneos que sofrem todos os tipos de violência, temos que passar pelo complexo de Caim. Os terroristas não matam seu pai, mas seus irmãos. Isso não anula o complexo de Édipo, mas é preciso aprender a articular os dois.
Geralmente, tende-se a considerar o analista como ateu. Como a religião e a psicanálise convergem em você?
Por que essa posição ideológica? Acho a afirmação curiosa e diria que não é científica. Deus não é um dado objetivo da ciência, mas um valor como a justiça e a honestidade. Freud se declarou ateu, mas Pfister, um de seus amigos, era psicanalista e pastor. A École Freudienne de Paris tinha muitos cristãos sinceros, jesuítas - por exemplo -, e Françoise Dolto.
As crenças de cada psicanalista são um assunto pessoal e, inclusive, íntimo. Perguntamos a Einstein ou a Newton se eram crentes? É ridículo, os valores exigem uma livre adesão subjetiva. O que é imperativo é o laicismo. Nossos valores religiosos ou políticos nunca devem interferir em nossa prática ou em nossa pesquisa.
Desconfio tanto de um psicanalista pregando seu ateísmo como de um que utiliza sua fé ou suas posições políticas em suas curas. Uma exceção pode ser no plano político: qualquer ideologia totalitária deve ser condenada na medida em que, como o fanatismo religioso, não respeita a liberdade de consciência, a livre escolha de valores.
Em tal sistema, a psicanálise é impossível, pois impede a livre associação, que é a única regra da psicanálise. A história da psicanálise na América Latina, tanto no Brasil quanto na Argentina, esteve marcada por essa questão. Por outro lado, acredito que é necessário analisar na cura, sobretudo didática, o sentimento religioso. Pelo menos foi o que eu fiz na minha. Por isso, considero-me o menos religioso de todos os meus colegas.
Como a relação entre psicanálise e religiões se reflete em sua ideologia ou em sua visão de mundo como analista?
Minha visão de mundo? Teria que ter apenas uma? O sentimento religioso é universal e assume as mais variadas formas. O entusiasmo por um time de futebol, para citar um caso extremo, tem algo de religioso, ou por um partido político, eu deixo você escolher qual.
A Argentina e seus múltiplos psicanalistas deveriam se questionar sobre este ponto. Por que um país tão rico e tão magnífico não consegue sair de suas dificuldades econômicas? Acredito que tem a ver com o que dizemos. A própria psicanálise, para alguns, tornou-se uma religião e as associações psicanalíticas são como igrejas, disse Lacan, falando da Associação Psicanalítica Internacional.
Mas é ainda pior com as chamadas associações lacanianas que se formaram, após seu desaparecimento. Por isso, é importante analisar esse sentimento religioso, com respeito. Não o reprimir sob um pseudoateísmo. Esse preconceito prejudicou muito as curas e os avanços da teoria. As neuroses obsessivas se viram, assim, reforçadas.
Por outro lado, a crença de que o sentimento religioso está ligado à questão paterna deve ser revista. René Girard escreve sobre esta questão. O sentimento religioso é o que permite moderar o ódio ao irmão. Lacan me incentivou muito a explorar esse caminho. Agora, sinto-me mais leve nesse assunto, muito mais aberto a outras religiões e menos propenso a cair nas garras de um guru ou de alguma ideologia política sedutora.
O vínculo entre a questão fraterna e o terrorismo é um dos eixos propostos em seu livro?
Aliás, é um dos temas de que falo em El complejo de Caín, ¿un punto ciego en la teoría freudiana? e é mais desenvolvido em meu livro Psicoanálisis del fanatismo, recentemente traduzido ao espanhol e publicado na Argentina graças ao meu amigo Cristian Rodríguez, mas também em árabe, no Líbano.
Este foi o ponto de partida da aventura teórica que vivo há dez anos e que para alguns me torna um “herege”, enquanto estou convencido de estar criando as condições para a sobrevivência da psicanálise, graças ao meu trabalho teórico, iniciado com Comer o Livro, que em breve será reeditado pela Editora Pontevedra, em seu país.
Como você analisa a questão do judaísmo na figura de Freud e como buscou dialogar com ela?
Tem sido a questão central de todo o meu trabalho por quase cinquenta anos. Contudo, isso não teria acontecido sem Lacan, que toda a sua vida lutou com essa questão e da qual dá testemunho o texto Radiofonia, publicado na revista Scilicet. Ele me passou na transferência e, graças ao magnífico trabalho de minha falecida esposa Antonietta, tornou-se o livro O pecado original da psicanálise.
O que a psicanálise deve ao judaísmo não está no esoterismo cabalístico, como gostamos de fazer, onde devemos buscá-lo. Podemos encontrá-lo no Midrash (como disse Lacan em Radiofonia), nessa forma tão singular com que os judeus interpretam o texto bíblico, desde a antiguidade. Algumas das técnicas de interpretação dos sonhos de Freud são repetidas neste midrash, sem dúvida, de forma inconsciente.
A psicanálise pretende ser uma disciplina da razão, como escreveu Freud a Romain Rolland. Também percebi em minha obra o importante legado de Maimônides que Lacan aconselhava a ler. Contudo, a maioria dos que estão interessados nesta questão tem uma abordagem superficial, preferem os textos esotéricos.
Se meu trabalho tivesse que ser definido em uma frase, eu diria que é uma leitura cruzada de Freud e a biblioteca hebraica. Mas não é exclusivo. Tento, dentro de minhas possibilidades e de minha cultura, não excluir nada. Meu recente interesse por certas análises de René Girard e Michel Foucault atesta esse fato.
Por que acredita que o modelo freudiano de parricídio não é uma ferramenta eficaz para interpretar o mundo atual?
O Complexo de Édipo é fundamental para entender a subjetividade individual, mas não é suficiente para interpretar o mundo atual. Você acredita que os islamistas que massacraram mais de cem jovens sentados em cafés ou em um show de rock, em Paris, queriam matar um pai? Não, mataram irmãos que eram considerados incrédulos.
Mostrei em muitos exemplos como a psicanálise tradicional é cega para a questão do fratricídio. Como não ver que Hamlet e A Tempestade (Shakespeare) estão baseados em fratricidas, sem falar da Bíblia? É muito óbvio. Como não analisam seu complexo de Caim, em seu tratamento didático, os psicanalistas veem reforçada sua neurose obsessiva.
Já conhecemos os conflitos entre eles, não quero insistir nesse assunto. O que proponho é a interação dos dois complexos: Caim e Édipo, uma visão binocular que dá alívio. É assim que todas as ciências operam. Meu trabalho enriquece o esquema freudiano ao qual tanto devemos, não o suprime. Assim como Einstein não destruiu a física de Galileu ao incluí-la em um modelo maior, a psicanálise precisa ampliar sua visão.
Acredita que, ao contrário do que disse Lacan, às vezes, não nos inclinamos a ver que o racismo tem suas raízes no conflito fraterno?
Essa frase de Lacan é muito importante e me inspirou muito. Porém, isso é um breve comentário no final de um seminário. Por que ele não o desenvolveu, não fez uma teoria do complexo de Caim? No entanto, em meu tratamento com ele, esteve muito atento a esse aspecto.
Contudo, avançar nesse campo não está isento de perigo: o de se separar da família dos analistas. Tenho a sorte de estar cercado por um grupo muito ativo no Instituto Gérard Haddad, que me apoia em minha pesquisa.
Para este tema, você afirma que o fanatismo é a exacerbação do complexo de Caim?
Obrigado por sugerir esta fórmula. Eu a adoto! Sim, o fanatismo em todas as suas formas é uma exacerbação do complexo de Caim. Vejo que você me entendeu perfeitamente.
Considera que é possível alcançar a igualdade de oportunidades para mulheres e homens no mundo muçulmano? O que a psicanálise diz acerca desse conflito, em um mundo onde as mulheres adquirem conquistas e direitos?
O mundo muçulmano é um mundo complexo. Cada um dos países que o compõem tem suas particularidades e uma história que tendemos a unificar. Teve diferente momentos. Esquecemos que o Paquistão, com Benazir Bhutto, e a Turquia tiveram mulheres presidentes, mas o essencial não está nisso. O atraso do mundo muçulmano em relação ao mundo ocidental, marcado pela ciência, explica-se em parte por esse status de inferioridade concedido à mulher.
Escrevi um livrinho, Ismaël et Isaac, no qual ofereço esta explicação do declínio da prodigiosa civilização muçulmana por meio de dois fracassos: o da revolução científica e o da revolução feminista. Alguns intelectuais árabes entenderam bem isso. Na Tunísia, foi Tahar Haddad e depois Bourguiba, que efetivou as propostas deste último.
A igualdade de gênero é forte na Tunísia e os islamistas não conseguiram miná-la. A Tunísia continua sendo um caso especial. Durante muito tempo, a psicanálise interpretou essa inferioridade do status feminino pelo medo masculino da castração. Este é provavelmente um mal-entendido sem solução a nível social.
Contudo, em todas as partes do mundo muçulmano, as mulheres lutam corajosamente e alcançam resultados, inclusive na Arábia Saudita e no Irã. É uma luta longa e difícil, de extensa duração, na qual os ocidentais não devem se intrometer.
Como é esta situação na Tunísia?
É difícil para mim julgar a situação atual, não está nada clara. Aparentemente, é muito frágil, com uma situação econômica precária. Eu vou lá regularmente para conferências. As conquistas das mulheres não são questionadas.
Entende a guerra entre as religiões como real ou há algo que possa simbolizar tanta violência?
As guerras inter-religiosas são muitas vezes fachadas para guerras nacionalistas e imperialistas. O mais grave dos fanatismos é o nacionalista que se enfeita com cores religiosas. O islamismo não é uma exceção. A humilhação que os muçulmanos sentem se expressa na radicalização religiosa, é vingança.
A rivalidade entre irmãos, o complexo de Caim transferido ao estranho, parece-me ser a fonte de toda violência. Freud entendeu isso e escreveu sobre a questão a Thomas Mann, em uma carta de 1936. Contudo, não se manifestou publicamente a esse respeito, nem teorizou. É um mistério cujo véu levanto com tremor.
Considera que algum dia se alcançará o diálogo entre muçulmanos e judeus?
Já existe entre alguns muçulmanos e alguns judeus. Há um judeu argentino que teve um papel muito importante nesse diálogo, o grande músico Daniel Barenboim. No passado, houve diálogos admiráveis entre judeus e muçulmanos em Bagdá, Andaluzia, Tunes. Pensemos em Samuel ha-Nagid e Maimônides, entre outros.
No ano passado, recebi uma homenagem em forma de um simpósio na Biblioteca Nacional da Tunísia. Antes, havia sido prestada uma homenagem ao escritor Albert Memmi, outra à eminente advogada Gisèle Halimi. Considero meu trabalho um diálogo com a Tunísia.
São o nacionalismo, o sionismo e o nasserismo que colocam a perder esse diálogo. No entanto, continua e se desenvolve. Judeus e muçulmanos precisam desse diálogo e muitos o buscam. Estou feliz por isso.
Acredita que a psicanálise tem algo a contribuir para essa reconciliação?
No meu caso pessoal, é óbvio. É através da psicanálise que se estabelece o rico diálogo que mantenho com intelectuais muçulmanos, na Tunísia, no Líbano. Mas, a psicanálise só existe através dos analistas. Precisam se desfazer de sua arrogância de suposto conhecimento. Têm muito a aprender nesse diálogo. O simpósio de 2021 sobre o complexo de Caim, na Tunísia, confirmou isso para mim.
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“O fanatismo é uma exacerbação do complexo de Caim”. Entrevista com Gérard Haddad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU