08 Junho 2022
Negacionismo, ódio racial, o retorno de slogans e expressões da língua do Terceiro Reich advertem que não estamos diante do folclore de nostálgicos ignorantes, como sugere e prega a sereia da indiferença. Uma nova forma de indiferença está triunfando.
O comentário é da advogada italiana Chiara Graziani, pesquisadora na Universidade de Gênova, em artigo publicado em L’Osservatore Romano, 03-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Terceiro Reich da utopia homicida nazista, a palavra “memória” exigia duas outras para significar o seu contrário. Noite e neblina, Nacht und Nebel. Na língua do Terceiro Reich (Lingua Tertii Imperii era como o filólogo judeu Victor Klemperer a chamava nos seus cadernos clandestinos) o contrário de fazer memória era o vazio de uma grande escuridão, envolta na neblina.
Nos decretos de prisão da Gestapo, e portanto do aparato de espionagem totalitário do partido, a definição “noite e neblina” indicava o cancelamento literal de um ser humano da comunidade, sem pré-aviso nem explicação. A pessoa desaparecia de noite – judeus, padres, antissociais, comunistas –, e todos sabiam que a vida de cada um continuaria apenas com a condição de considerar como inexistente aquele vizinho que faltava à chamada na manhã seguinte. Não perguntar, não pensar, não lembrar.
O “tratamento” noite e neblina teria sido uma refinada invenção de Reinhard Heydrich, chefe dos serviços de espionagem e do aparato de controle dos inimigos do Reich.
O objetivo declarado desse “tratamento” era cultivar a indiferença coletiva em relação ao destino alheio, daqueles prisioneiros que acabavam marcados com um duplo N no casaco, invisíveis condenados à morte e ao esquecimento.
A indiferença é uma tendência bem enraizada no ser humano: a sua importância era plenamente avaliada em um regime que necessitava do controle total das consciências, das quais era preciso apagar todo sentimento de culpa e responsabilidade. Foi a indiferença, elevada a instrumento de construção social, que permitiu toda sorte de abominações contra pessoas que tinham o único mal de terem vindo ao mundo.
E é a palavra “indiferença” que o memorial da Shoá em Milão joga no rosto de quem visita a plataforma de onde partiam, rumo ao extermínio, os nossos vizinhos, os nossos colegas de escola, os professores, os amigos de infância ou meros conhecidos, rebaixados com o nosso consentimento a não pessoas inexistentes. Quem se lembrará delas, dissera Hitler? Elas serão esquecidas, como os armênios, havia profetizado.
A profecia não se concretizou. Mas a conspiração da indiferença, para apagar a memória, não é uma história do passado. Negacionismo, ódio racial, o retorno de slogans e expressões da língua do Terceiro Reich advertem que não estamos diante do folclore de nostálgicos ignorantes, como sugere e prega a sereia da indiferença.
As testemunhas sobreviventes temem, e com razão, que com a sua voz também se apague a memória. Uma nova forma de indiferença está triunfando. Mais do que pelo medo, ela passa pela solidão. Chamaram de “solidão digital” aquela solidão dos jovens sempre conectados e cada vez mais distantes, convencidos de que podem controlar um ambiente cada dia mais novo e complexo, e que é capaz de influenciar as consciências, fazendo-as rolar junto com a inércia coletiva de uma pedra em declive.
A senadora Liliana Segre, sobrevivente de Auschwitz, tem a urgência de deter essa pedra, essa inércia, cultivando a memória que permite que cada consciência dê a sua resposta individual e responsável. Isso para além dos limites naturais da vida de quem viu e sabe.
Os “novos deuses” que poderiam dar sua opinião, disse ela, estão aí e são chamados de influenciadores. São assim chamados porque as suas escolhas são consideradas uma referência e geram hábito, mentalidade. E são os “novos deuses” pela sua possibilidade de facilitar a petrificação das consciências na pedra do consentimento cego ou indicar o modelo da escolha individual que não esquece o que já foi vivido e o valoriza.
Liliana Segre convidou a mais influente das influenciadoras para o memorial, aquela Chiara Ferragni, que é tendência massiva entre os jovens, quer visitando a Galleria degli Uffizi, quer autografando ovos de Páscoa. Com o seu amor e a sua ternura pelos jovens, Liliana Segre pediu que ela fosse àquela plataforma 21 onde os homens e as mulheres deixavam de existir. A memória precisa ser confiada, além dos limites da vida das testemunhas. A esperança é que os influenciadores de hoje sejam melhores do que os de ontem. E que façam a escolha, nada fácil, pela memória. Que nos torna livres.
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Noite e neblina: de ontem e de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU