23 Dezembro 2022
Ela foi frontalmente impactada pela flexibilização. Sem postos qualificados e programas de apoio, restaram-lhe jornadas brutais, precarização da vida e desesperança. Só uma nova política criará tempo para educação, lazer e vida social
O artigo é de Euzébio Jorge Silveira de Sousa, Adriana Marcolino e Lúcia dos Santos Garcia, publicado por Outras Palavras, 21-12-2022.
Euzebio Jorge Silveira de Sousa é presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ), professor na FESPSP e na STRONG ESAGS e de Carlos Eduardo Siqueira e professor da rede estadual de ensino de São Paulo.
Adriana Marcolino é técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese/subseção CUT).
Lúcia dos Santos Garcia é economista, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, especializada em estudos do trabalho. Trabalha no Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos – Dieese desde 1994, com dados e pesquisas de mercado de trabalho. Também é professora da Escola Dieese de Ciências do Trabalho, mestre em Desenvolvimento Econômico/Programa de Pós-graduação em Economia da UFRGS.
Este artigo foi publicado originalmente com o título “Juventude e a desconfiguração da jornada de trabalho no Brasil”, como um capítulo do livro O futuro é a redução da jornada de trabalho (CirKula, 2022). Leia aqui todos os artigos da série.
Enquanto categoria sociológica, a “Juventude” está longe de se constituir um consenso entre os estudiosos do tema. Permeada por divergências inerentes a uma abordagem centrada em perspectiva geracional ou de classe, muitos são os dissensos quanto ao grau de homogeneidade existente para que este grupo etário seja compreendido como uma unidade, não estática, de análise.
Em 1983, Bourdieu concedeu uma entrevista, intitulada “A Juventude é só uma palavra”, na qual apresentou as particularidades da Juventude como um grupo etário, constituído pelo período da vida em que a pessoa não se encontra mais na infância e que ainda não completou a transição para a vida adulta. Como etapa transcorrida em uma realidade objetiva, essa fase não é configurada apenas por peculiaridades biológicas, mas, sobretudo por características sociais que sofrem alterações em distintos períodos históricos e grupos sociais.
Desta forma, quando sugere que juventude é só uma palavra, Bourdieu (1983) não despreza a necessidade de definir adequadamente essa categoria etária, mas identifica a existência de uma substancial dissonância entre jovens das diferentes classes sociais. Aponta que a juventude burguesa e a trabalhadora ocupam polos opostos na construção de suas experiências sociais, estando os jovens do primeiro grupo voltados à construção de sua vida educacional e aquisição de títulos e o segundo em busca de acelerar seu ingresso no mundo do trabalho. Ainda segundo o autor, entre os dois extremos polares existe uma diversidade de formas de ser jovem.
Acompanhando este entendimento, para além da definição etária formal estabelecida pelo Estatuto da Juventude [1] no Brasil, que compreende pessoas com idade entre 15 e 29 anos, a juventude, neste capítulo é assumida como o período da vida em que os indivíduos estão realizando experiências, construindo autonomia e transitando para a etapa adulta. Em específico, aborda-se a pressão enfrentada pelos jovens pobres que, condicionados a conciliar estudo e trabalho, tornam-se precocemente trabalhadores e equilibristas do tempo que dedicam à formação e à sobrevivência. Sobretudo, o estudo procura construir o quadro que emoldura a presença fluida da juventude no contingente economicamente ativo do país e a despadronização das jornadas que praticam, imerso no contexto de descenso de direitos e degradação econômica acentuado após 2015.
Para conduzir este debate, o presente capítulo, além desta introdução e de uma síntese à guisa de considerações finais, está organizado em três partes: a primeira dedicada ao papel central da transição escola-trabalho na definição do ser jovem; a segunda trata da desordem causada pela erosão do fordismo a esta transição; e, por fim as percepções sobre o contexto de crise do trabalho e perspectivas que a juventude brasileira traça para sua geração.
Como ressaltado por Sousa (2020), a escola tem grande importância na construção da categoria sociológica Juventude. Ao subordinar os indivíduos de uma mesma faixa etária à educação voltada à formação de trabalhadores, a vivência escolar, por meio do condicionamento à hierarquia, ao trabalho em grupo e rotinização dos corpos, proporciona e ambienta o compartilhamento de valores, códigos sociais e utopias entre jovens. Desta forma, a escola alarga as percepções de mundo herdadas pelo segmento juvenil de seus ascendentes e, simultaneamente, recepciona e molda a interação entre as classes sociais. Em conjunto, estes elementos estão na raiz das diferentes trajetórias educacionais/formativas e profissionais.
Destarte, duração e intensidade do tempo disponibilizado para a preparação à vida adulta, bem como os itinerários formativos serão distintos dentre a juventude conforme determinantes de classe. Enquanto as famílias com rendas maiores compram o tempo livre de seus filhos para que realizem experimentações, prolonguem o período de educação formal e de cursos complementares com reconhecimento social, os filhos das famílias de menor renda precisam acelerar a construção de autonomia e de transição para a vida adulta. Desta forma, a escola e o mundo do trabalho exercerão distintos papéis na conformação das experiências juvenis dos diferentes grupos sociais, constituindo uma relação mais ou menos funcional com sua trajetória formativa. Entre os jovens das famílias de menor renda o senso de urgência os impele a um ingresso precoce no mundo do trabalho, seja para contribuir na composição da renda familiar, ou para arcar com os bens de consumo inerentes ao “ser jovem”.
A inserção do jovem no mundo do trabalho, por outro lado, constitui um relevante elemento da transição para a vida a adulta, por abrir a possibilidade de consolidação da autonomia material, permitindo definir bens de consumo, constituição de família própria e saída da casa dos pais (ou responsáveis) (GUIMARÃES, 2006). Esta transição também possui importância simbólica e cultural, dado que a conquista do trabalho atribui um tipo particular de reconhecimento social e constituição de nexos inerentes ao ideário da maturidade. A incorporação da juventude ao universo do labor remunerado, porém, é marcado por intensa dificuldade, comumente descrito pela elevada proporção dentre os trabalhadores desempregados, sujeição à rotatividade ou ocupação por meio de vínculos precários e de menor remuneração.
Beck (2000) sugere que a inserção dos jovens do mundo do trabalho é delineada por trajetórias instáveis, que os coloca em uma condição de “multiatividade nômade”, distinta de outros grupos etários e caracterizada por movimentos de ingresso, saída e reingresso na força de trabalho. Em busca de realizar experimentações, a juventude se envolveria com escolhas imprecisas entre trajetórias formativas e inserções produtivas, que se manifestaria na participação fluida no mercado de trabalho, mesmo em países industrializados. A ausência de experiência profissional, tendência a menor escolaridade e alocação em postos com vínculos mais frágeis, por vezes informais, contribuem para que os jovens registrem maiores taxas de rotatividade. São essas características de inserção no mercado de trabalho que autorizam apontar a inserção laboral dos jovens como um importante indicador de tendências do mercado de trabalho como um todo.
Com vínculos mais frágeis e uma participação errática na força de trabalho, sobretudo quando se trata de pessoas no início da juventude, os motivos para o ingresso ou não na força de trabalho estão subordinados a estratégias de formação educacional e profissional, expectativas de sucesso na busca de uma ocupação e pressão para contribuir na composição da renda familiar. Assim, a inserção laboral dos jovens fornece indicadores mais sensíveis tanto das variações conjunturais de mudanças econômicas, quanto nos tipos de ocupação prevalente em cada mercado de trabalho. Outro motivo evidente da relevância da inserção dos jovens na determinação da dinâmica do mercado de trabalho como um todo é sua relevância numérica, sobretudo em países subdesenvolvidos.
No Brasil a população com idade entre 15 e 29 anos ultrapassa 47 milhões de pessoas, o que corresponde a aproximadamente 23% da população do país. Com uma das mais elevadas taxas de participação juvenil no mercado de trabalho na América Latina, estando abaixo apenas do Paraguai (CEPAL, 2018 [2]), os brasileiros de 15 a 29 anos representam menos de 1/3 da força de trabalho, mas somam metade dos trabalhadores desocupados. Quando segmentados por subfaixas etárias juvenis se observa que só as pessoas de 18 a 24 anos correspondiam a 29% do número de desempregados do país no 1º trimestre de 2021. Com uma elevada taxa de participação, precariedade material crescente e insuficiência de políticas públicas, o desemprego entre os jovens no Brasil supera muito a taxa média nacional. Enquanto a taxa de desemprego no país correspondia a 14,7% no 1º trimestre de 2021, entre os jovens de 18 a 24 anos ela atingiu 31% e entre os adolescentes chegou a 46,3%. Quanto maior a profundidade da crise, maior a taxa de desocupação dos jovens, sobretudo entre jovens na idade escolar.
As características da inserção dos jovens no mundo fornecem elementos para observação de características estruturais do mercado de trabalho e suas particularidades históricas. Ainda que a dinâmica de inserção na vida laboral guarde similaridades em todo o mundo, é possível identificar padrões distintos em países subdesenvolvidos e países do capitalismo central. Os elementos de dessemelhanças não residem apenas nas taxas de desocupação e participação no mercado de trabalho, uma vez que países como a Itália, Portugal, Espanha e França comumente possuem taxa de desocupação superiores às verificadas em países periféricos da África ou América Latina, no entanto as características da desocupação são substancialmente distintas.
Como pode ser observado no Gráfico 1, enquanto a taxa de desemprego em 2019 entre jovens de 15 a 24 anos na Itália era de 29,1%, na Espanha 32,61% e na Grécia 35,1%, em países como Brasil, Peru, e Bolívia eram respectivamente de 27,47%, 7,37 e 6,7%3. Se nos países desenvolvidos o desemprego de longa duração é mais frequente que em países latino-americanos, nos países subdesenvolvidos a taxa de rotatividade e de subutilização da força de trabalho é expressivamente mais elevada. A desigualdade e pobreza nos países periféricos, associada a inexistência ou insuficiência de políticas públicas não permitem que os jovens passem longos períodos buscando ocupações de melhor qualidade e maiores salários. A precariedade material gera um senso de urgência que garante a reprodução do excedente estrutural de força de trabalho via elevadas taxas de participação entre os jovens. Quando Kalecki (1943) se pergunta: “Por que os capitalistas fazem de tudo para não promover o pleno emprego?” A resposta foi: “Porque enfraquece seu poder sobre os trabalhadores”.
Nos países desenvolvidos, durante o período de intenso crescimento econômico no pós-guerra, a transição da escola para o trabalho ocorria quase que imediatamente, fenômeno atribuído tanto à ampliação dos postos de trabalho oriundos da expansão econômica quanto à correspondência direta entre os conhecimentos adquiridos no sistema de ensino e as habilidades demandadas no mercado de trabalho. Com este padrão, a partir da década de 1970, a ideia de transição da escola para o trabalho foi reconfigurada, devido às transformações produtivas e tecnológicas, desconstituição do estado de bem-estar e supremacia do mercado na mediação das relações sociais. Segundo Giddens (1998), esta mudança de paradigma rompeu com o modelo de jornada de trabalho por tempo completo, com os contratados por tempo indeterminado e com a estabilidade das remunerações, produzindo o que Dedecca (2005, p. 237) identificou como um caleidoscópio de relações de trabalho, fazendo referência a inexistência dos padrões estabelecidos no período anterior. Longe de libertar o trabalhador das jornadas extenuantes, a erosão do fordismo ampliou a incerteza quanto ao acesso e permanência do emprego e afastou a perspectiva de níveis salariais suficientes. Assim, é pertinente apontar, como fizera Silva (2003), que o período escolar contribui para a definição da condição juvenil, propondo, por conseguinte, que a transição da escola para o mundo do trabalho marca a aproximação com a vida adulta e consolidação da autonomia.
No Brasil, entretanto, este fenômeno vem adquirindo outro grau de complexidade, uma vez que a precariedade material das famílias exige um ingresso precoce dos jovens no mundo do trabalho, o que foi associado ao avanço da universalização do Ensino Básico na década de 1990. Dessa forma, conciliação de trabalho e estudo se tornou o arranjo mais comum da transição juvenil, especialmente entre adolescentes de menor renda familiar. Assim, a proporção desses jovens conciliando trabalho e estudo será tanto maior quanto melhor forem as políticas públicas de Educação que os possibilitem continuarem a trajetória escolar. A jornada destes jovens trabalhadores precisará ser conciliada com a educação formal e com a tentativa de realizar as experiências inerentes ao “ser jovem”, como a interação com família e amigos, as experiências amorosas e a busca de alguma forma de associativismo.
Diferentemente do que pode ser encontrado em países desenvolvidos, no Brasil a maior parte da Juventude é trabalhadora e busca continuar estudando. Ainda que a taxa de participação juvenil tenha declinado no período de crescimento econômico dos anos 2000, a partir da crise política e econômica aprofundada em 2016 os jovens voltaram a pressionar por um espaço no mercado de trabalho, o que contribui para a explosão do elevado nível de desemprego. Assim, como afirma Guimarães (2004) o trabalho continua tendo centralidade na vida dos jovens, ainda que seja via desemprego e ocupações precárias e irregulares. Em 2017 mais de ¼ dos trabalhadores de 15 a 29 anos conciliavam trabalho e estudo, segundo a PNADC. Quando observado a proporção dos adolescentes trabalhadores de 15 a 17 anos que conciliam trabalho e estudo a proporção cresce para 77,9%, o que contribui para a compreensão sobre os motivos da menor quantidade média de horas trabalhadas neste grupo etário.
O Gráfico 2 evidencia que a conciliação trabalho e estudo é relevante entre jovens pertencentes a todos os quintos de renda per capita, no entanto de forma distinta a depender da fase da vida. A área azul nos gráficos corresponde à proporção de jovens estudando e pode ser observado que graças à universalização da educação pública existe uma grande proporção de estudantes em todos os quintos de renda, no entanto a proporção de estudantes declina rapidamente após os 17 anos, o que não ocorre no outro extremo da distribuição de renda, já que os jovens de classe média tendem a ingressar no Ensino Superior. Uma vez que a qualidade das ocupações dos jovens das famílias de menor renda gera maiores obstáculos para a permanência na escola, a primazia do trabalho frente ao estudo e as longas jornadas dificultam a conciliação trabalho e estudo, o que pode ser observado tanto no contingente de trabalhadores que não estudam nem trabalham, quanto na elevada proporção de trabalhadores tidos como informais. Na parcela com maior renda per capita é observado o prolongamento do período escolar, conciliação trabalho e estudo e emprego formal. O que se constata de modo geral é que a trajetória profissional dos jovens se inicia precocemente e é conciliada com a educacional de modo mais ou menos prolongada, a depender da renda das famílias.
Como pode ser observado no Gráfico 3, a jornada semanal de horas trabalhadas é maior entre pessoas que não estudam em todas as faixas etárias, fenômeno que possui causas distintas a depender da idade e da classe social. Em si, a conciliação trabalho e estudo é traduzida em jornadas diárias mais longas, uma vez que se soma ao tempo dedicado às atividades laborais e educacionais o tempo de deslocamento da casa para o trabalho, do trabalho para a escola e da escola para casa. Nas regiões metropolitanas a segregação espacial e a deficiência do aparato de mobilidade urbana ampliam a jornada diária dos jovens das famílias com menor renda, por residirem nas periferias e gastarem mais tempo com deslocamentos. Ainda que a jornada diária destes jovens seja longa, não pode dedicar toda sua jornada diária ao trabalho, a menos que abandonem a escola, o que explica a expressiva diferença na jornada de trabalho dos jovens que estudam e dos que não estudam. Entre crianças e adolescentes o ingresso na vida laboral é uma imposição das condições materiais que coloca o trabalho como prioridade e os impele às ocupações de pior qualidade, com jornadas de trabalho mais extensas. É possível identificar que quanto mais jovem o grupo etário, maior é a diferença entre a jornada de trabalho dos que frequentam e os que não frequentam a escola. Como evidenciam os Gráfico 2 e 3, quanto menor a renda familiar per capita, maior é a probabilidade de os jovens abandonarem a escola para trabalhar em jornadas mais longas e extenuantes.
A partir de um estudo econométrico, Duryea, Lam e Levison (2007) identificam uma elevada correlação entre crise econômica, piora nos indicadores educacionais e ingresso de crianças e adolescentes no mercado de trabalho. Segundo os autores, o desemprego do chefe de família pode elevar entre 30 e 50% a probabilidade de pessoas com idade de 10 a 16 anos ingressarem na vida laboral, o que afeta também seu desempenho escolar. Os autores constataram que o desemprego do chefe de família também amplia a probabilidade de piora no desempenho escolar entre 14 e 34%, mesmo que as crianças e adolescentes não ingressem no mercado de trabalho, já que a piora nas condições econômicas da família amplia as responsabilidades domésticas dos jovens. Sendo assim, a instabilidade no mercado de trabalho obriga que as famílias organizem as jornadas de trabalho heterônomo e as tarefas de reprodução da vida de modo a romper com a precariedade material e reduzir os riscos do desemprego entre diferentes membros da família. Como apresentado por Lee, Mccann e Messenger (2009), a despadronização do mercado de trabalho dos países subdesenvolvidos produz economias polarizadas, ocorre jornadas de trabalho com durações excessivas, enquanto parte da força de trabalho encontra-se na desocupação e/ou subocupados por insuficiência de horas trabalhadas, quadro evidente entre a juventude.
A heterogeneidade da estrutura laboral pode ser melhor observada a partir da taxa de subutilização da força de trabalho, que é capaz de captar melhor que apenas a taxa de desocupação, as distorções do mercado de trabalho. Em mercados atravessados pelo subemprego, atividades plataformizadas, jornadas de trabalho e remunerações irregulares a taxa de subutilização permite captar as oscilações no contingente de pessoas que trabalharam menos do que gostariam e as que deixaram de buscar uma ocupação por desalento ou ausência de condições materiais para continuar buscando um emprego (SOUSA e ORTIZ, 2020). A elevada taxa de subutilização no Brasil é um indício da incapacidade de a economia gerar ocupações decentes e da ausência ou insuficiência de políticas públicas de emprego.
A taxa de subutilização é expressivamente superior entre os jovens. Enquanto a taxa combinada de desocupação e subocupação por insuficiência de horas trabalhadas era de 18,4% no país, se recortamos apenas os jovens de 18 a 24 anos a citada taxa chega a 34%, atingindo a marca de 52% entre jovens de 14 a 17 anos. Este dado contribui para identificar o motivo para a menor jornada de trabalho dos jovens. O agravamento da crise econômica reduz a renda das famílias, impele os jovens para o mercado de trabalho, e estes se deparam com o desemprego ou bicos que não lhes garante rendimentos dignos e jornadas regulares. Na ausência de ocupações dignas e rendimentos adequados, os jovens buscam atividades plataformizadas ou outras atividades por conta própria.
Outras fontes de informação confirmam estas tendências, dando maior nitidez a seus contornos. Segundo a pesquisa realizada em 2019 pela Aliança Bike com entregadores de comida por aplicativo por bicicleta na Cidade de São Paulo, 75% desses possuíam até 27 anos, sendo que metade dos entregadores tinha menos de 23 anos. O que evidencia as longas jornadas de trabalho é que a metade dos entregadores trabalham mais de 10 horas por dia, enquanto 25% destes trabalham mais de 12h por dia. A maioria destes jovens (57%) trabalha todos os dias da semana, vencendo, diariamente, longa quilometragem para receber uma remuneração média de R$ 936,00, ganho inferior ao salário-mínimo de 2019 (R$ 998,00) (SOUSA e ORTIZ, 2020). Se estes jovens trabalhassem apenas as 44 horas da Constituição da República, em seu artigo 7º, inciso XIII, a remuneração mensal da maioria destas pessoas não chegaria a R$ 600,00.
Segundo a pesquisa de Garcia e Calvete (2022), no texto deste livro intitulado “Perfil socioeconômico dos trabalhadores ocupados em plataformas digitais e sua relação com o tempo de trabalho”, o rendimento dos trabalhadores plataformizados não só é expressivamente menor que o rendimento mensal dos demais trabalhadores por conta-própria, como teve a distância salarial ampliada entre 2012 e 2019. Em 2019 os trabalhadores plataformizados possuíam remunerações mensais que correspondiam a apenas 58% da remuneração dos demais trabalhadores por conta própria. As extensas jornadas e baixos salários expressam outras distorções difundidas no mercado de trabalho no Brasil, tendo em vista que a maioria destes jovens residem nas periferias da cidade, 71% são negros e a maioria estava desempregada (ALIANÇA BIKE, 2019). As longas jornadas não são escolhas de trajetórias profissionais, mas sim uma imposição da desestruturação do mercado de trabalho e precariedade material das famílias.
Segundo de Garcia (2021), os jovens com até 29 anos representam um quarto dos potencialmente ocupados na economia de plataforma no Brasil. Desses, a proporção de negros é de aproximadamente 60%, menos de 10% realizam contribuição previdenciária e recebem menos que os trabalhadores com carteira assinada (DIEESE, 2021; GARCIA, 2021). Os jovens com idade entre 25 e 29 anos recebem 89% do salário-hora recebido pelos trabalhadores com carteira assinada. Quando observada a média de rendimentos mensais é possível identificar uma drástica desigualdade, com os jovens entre 14 e 29 anos nas atividades potencialmente plataformizadas recebendo menos de 60% dos salários dos jovens com carteira (GARCIA, 2021).
Guimarães (2006, p. 172) identifica que as características atribuídas à inserção dos jovens no mercado de trabalho, quais sejam, “fragilização dos vínculos e intensificação das transições ocupacionais” se generalizam no mercado de trabalho independente da faixa etária, especialmente a partir da racionalização produtiva e desestruturação da estrutura ocupacional da década de 1990. A crescente similaridade na qualidade das ocupações de jovens e adultos indica em primeiro lugar que a precariedade de vínculos no mercado de trabalho obstaculiza a possibilidade de progressão de carreira e remunerações.
A capacidade de os jovens interagirem com vínculos frágeis atravessados por subocupações torna-se aceitável quando observado em perspectiva, entendendo que a trajetória do trabalhador se inicia com incertezas, experimentações e assimilação de experiências difusas. Neste contexto, uma baixa curva de aprendizado e um baixo teto salarial desencoraja projetos formativos e de experiências profissionais mais ousados ou que demandem maiores investimentos de tempo e recursos. A forma possível de acessar rendimentos maiores em um mercado de trabalho com prevalência de ocupações de baixa produtividade é ampliar a jornada de trabalho. Quando não existe a expectativa de rendimentos maiores no futuro, mercado de trabalho atomizado, expansão das ocupações por conta-própria e incerteza sobre a viabilidade de acessar a previdência pública, a alternativa é ampliação da jornada de trabalho.
Embora a disponibilidade de dados de natureza probabilística sobre a realidade socioeconômica da juventude no Brasil seja farta, o reconhecimento das dinâmicas que norteiam seu engajamento fluído na força de trabalho e suas jornadas laborais despadronizadas carece, muitas vezes, da escuta do discurso juvenil. Esta lacuna, porém, foi recentemente coberta pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), que atualizou este quadro analítico mais abrangente, em que reflexões teóricas, condições objetivas e percepções dos jovens trabalhadores se associam. A iniciativa se baseou em um levantamento primário realizado entre fins de 2020 e primeiro trimestre de 2021 [4] e trouxe em seus resultados tanto a vigência da transição entre escola e trabalho para a compreensão das primeiras incursões produtivas, quanto à contundência trazida pela crise a este trânsito no cotidiano, imaginário e projeções feitas pela juventude.
Os dilemas identificados pelos jovens brasileiros estão nitidamente pontuados nas dificuldades e necessidades de conciliar trabalho remunerado com os estudos, no desarme dos desejos relacionados à tão sonhada profissão frente à aceitação da ocupação possível e na disposição para ações coletivas nas diversas dimensões da vida social e política. Ou seja, constituem uma força de trabalho, contemporânea ou potencial, consciente de sua realidade, valendo pontuar que incorporam à percepção da desigualdade que enfrentam no acesso e permanência ao mercado de trabalho, outras formas de exclusão a que estão submetidos, enquanto juventude negra, periférica, rural, feminina, já responsável por filhos e LGBTQIA+.
O fardo que recai sobre a juventude atual é traduzido em números, pois na enquete do estudo 29,6% dos respondentes não frequentavam a escola porque tinham que trabalhar e outros 2,2% não estudavam porque estavam em busca de uma nova oportunidade no mercado de trabalho. Esse dado evidencia a dificuldade para compatibilizar estudo e trabalho que a juventude tem, particularmente a pobre e periférica. Importante destacar também que 5,6% das jovens não estudavam porque precisavam cuidar dos filhos ou filhas e 3,4% não estudavam porque não tinha escola na proximidade da casa ou os horários não eram adequados. Pela voz da juventude entrevistada, apesar das peculiaridades regionais e do período pandêmico, o trabalho invariavelmente foi destacado como concorrente da escola no tempo disponível da juventude (Tabela 1). Também em convergência com os diagnósticos baseados em pesquisas domiciliares, entre os respondentes da Enquete que trabalhavam, 46,6% não tinham carteira de trabalho assinada.
Nos grupos focais, na percepção da juventude sobre suas condições de vida, trabalho e futuro, chamou atenção o fato de avaliarem que foram privilegiados pela melhoria geral em relação à de seus pais e mães. Geralmente, este entendimento de mobilidade social ascendente foi associado às oportunidades trazidas por políticas públicas de caráter distributivo, nascidas com a Constituição de 1988 e ampliadas entre 2005 e 2015, especialmente as de ampliação do acesso à educação. No entanto, os entrevistados apresentaram dificuldade para traçar linhas para sua inserção laboral no futuro, pensar em um emprego de qualidade, uma situação considerada distante da atualidade econômica e social do país, aprofundada pela crise sanitária do coronavírus. De uma forma geral, dentre os jovens que participaram da pesquisa, há uma percepção comum de degradação econômica e, consequentemente, do trabalho. Pragmaticamente, também acrescentam avaliações sobre suas possibilidades individuais no mercado de trabalho: aqueles sem qualificação profissional têm acesso a trabalhos precários e sonham com o Ensino Universitário; por outro lado, aqueles que cursavam o Ensino Superior ou já haviam se formado, com dificuldade de conseguir um emprego em suas respectivas áreas de formação que apresentassem condições de trabalho satisfatório, moderam suas expectativas para obtenção de qualquer ocupação condizente, ao menos, com sua escolaridade.
A avaliação sobre a piora nas condições do mercado de trabalho para eles não estaria apenas relacionada à economia em crise, mas também ao fato de a regulação do trabalho e da previdência terem sofrido degradações. Parte dos jovens destacou que o contrato de trabalho com carteira assinada não representa mais uma segurança, uma proteção. Desse modo, opções do tipo “empreendedor” soam como a possibilidade de ser “dono do meu tempo e do meu trabalho”, “trabalhar com o que gosta de fazer”, “flexibilidade de horário permite a qualificação”, “possibilidade de ganho financeiro somente para o trabalhador, sem ter que dar a maior parte para o patrão”. Eles também refletiram sobre a exploração a que são submetidos em seus empregos, o assédio dos empregadores e das relações de trabalho fortemente antidemocráticas. Os jovens desejam um futuro em que seja possível ter educação de qualidade e emprego, sem assédio moral ou sexual, com salário digno, jornadas compatíveis com as outras esferas da vida social, direitos trabalhistas e previdenciários.
As argumentações aparentemente contraditórias relacionadas a se tornar empreendedor ao invés de trabalhador assalariado, ao mesmo tempo em que reivindicam direitos, sugerem o desejo pelo trabalho com condições dignas, sustentado por relações mais democráticas e carreguem a possibilidade da realização profissional. Ao que parece, esses elementos não são possíveis em um trabalho com carteira de trabalho assinada tanto pelas experiências que acumularam em suas incursões pelo mundo do trabalho, quanto a partir das avaliações que fazem sobre as reformas que reduziram direitos trabalhistas. No entanto, suas falas remetem a reivindicações bem concretas de uma pauta sindical: melhores salários, jornada de trabalho compatível com estudos, direitos previdenciários, sem assédio. Ou seja, a pesquisa produziu indícios de que a juventude trabalhadora, mesmo imersa em uma crise multidimensional, hoje, identifica seus dilemas e seu maior desejo – uma existência digna, com controle sobre o tempo dedicado ao trabalho remunerado e outras esferas da vida.
A desconfiguração do trabalho alimentada por transformações econômicas, políticas e tecnológicas em todo o mundo rompeu com a prevalência das jornadas de trabalho habitualmente praticadas no fordismo em países centrais, enquanto os países subdesenvolvidos sempre conciliaram uma estrutura ocupacional heterogênea com jornadas de trabalho irregulares. No Brasil esse processo foi acentuado durante a reestruturação produtiva, expondo as fragilidades da economia nacional via abertura comercial e financeira, produzindo o desencadeamento da indústria nacional e destruindo ocupações de qualidade em setores de elevada produtividade. O processo de flexibilização atingiu frontalmente a juventude, tendo em vista que a reestruturação reduziu as ocupações de início de carreira, ampliou a dificuldade para o ingresso em ocupações formais e manteve um elevado nível de desemprego.
Durante o período de crescimento econômico dos anos 2000 houve um descenso da pressão exercida pelos jovens para integração precoce à força de trabalho. Mas com o aprofundamento da crise econômica e política no país, o empobrecimento das famílias tem comprimido parcelas cada vez mais expressivas a um ingresso precoce e precário na vida laboral. Os jovens estão mais expostos a piores ocupações, menores salários e mais extensas jornadas de trabalho por não possuírem qualificações ou experiências profissionais e por possuírem maior predisposição física para ocupações mais exaustivas. Com uma economia que não é capaz de acomodar nem os trabalhadores já estabelecidos na força de trabalho, os jovens são impelidos a buscarem subempregos em setores informais e em atividades plataformizadas que possuem, segundo os próprios jovens, jornadas flexíveis e não requerem processo seletivo para o ingresso.
A pesquisa do DIEESE demonstrou que o empreendedorismo se apresenta como a alternativa desejável, frente a outras atividades mal remuneradas, degradantes ou inacessíveis. Os jovens nutrem a expectativa de que um trabalho autônomo lhes dará jornadas flexíveis para que continuem estudando e realizando as experimentações que compõem seu desenvolvimento pessoal e social. Trabalhar lhes permite contribuir com a manutenção de seus lares e financiar os bens que lhes permitem vivenciar a juventude. Com elevada taxa de participação de jovens no mercado de trabalho, o anseio por ocupações mais flexíveis, ainda que com piores remunerações e sem direitos trabalhistas, apontam não só para a falta de alternativas dignas para inserção laboral, como a má qualidade dos postos disponíveis à juventude.
De toda sorte, ser jovem pobre no Brasil exige uma forma particular de gestão do tempo. Em uma etapa da vida que requer a conciliação de Trabalho e Educação, além do tempo para fazer amigos, realizar experiências amorosas e vivenciar formas distintas de associativismo, a juventude nacional lida com um contexto de descenso das condições objetivas para isto, no qual a desvalorização da hora trabalhada joga papel essencial. Em consequência, a desigualdade de classe entre os jovens é também estabelecida pela extensão da jornada de trabalho, com evidente desdobramento sobre futuras configurações da classe trabalhadora, mobilidade social e desigualdade no país.
1. Ver aqui.
2. Disponível aqui. Acessado em 3 de abril 2021
3. A taxa de desemprego aberto é uma estatística mundialmente harmonizada, propiciando comparações globais sobre a inserção da População em Idade Ativa (15 anos e mais) ou sob diferentes recortes etários. Assim, o patamar atingido pelas taxas de desemprego revela distinções estruturais entre mercados de trabalho e suas reações à conjuntura. Neste estudo se percebe que o impacto da Grande Crise 2008-2009 tardou a atingir as economias latino-americanas e provocou efeitos desiguais no continente, atingindo severamente as mais industrializadas e participantes das cadeias mundiais de valor, caso do Brasil, do que aquelas em que setorialmente predomina a agricultura familiar, o mercado interno e a auto-ocupação – como a Bolívia e o Peru. Já o confronto das taxas na América Latina mostra um padrão acentuado e diferente de distanciamento entre o desemprego total e juvenil no Brasil, indicando que a adesão ao novo regime de exploração do trabalho apresenta um viés geracional.
4. O estudo feito pelo DIEESE comportou uma enquete on-line, que envolveu 439 jovens com questões sobre educação, trabalho e participação política, seguida de investigação qualitativa, feita através de grupos focais.
ALIANÇA BIKE (2019). Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo. Associação Brasileira do Setor de Bicicletas. Disponível aqui.
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Por que a juventude precisa trabalhar menos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU