13 Setembro 2022
“Em 1924, Pablo Neruda escreveu ‘Vinte poemas de amor e uma canção desesperada’. Agora, no mundo, vivemos uma situação oposta. Ouvimos muitas ‘canções desesperadas’, mas também existe um poema de amor: é o Evangelho que pede para entrar no mundo.”
Dom Carlos Castillo, arcebispo de Lima e primaz do Peru, mesmo no exercício de seu ministério episcopal, continua a reflexão teológica que é bem conhecida na Itália há muito tempo e, em particular, desde que foi publicado há cerca de 20 anos um livro que apresenta o que ele chama de “teologia da regeneração”.
Trata-se de uma chave para acessar o anúncio do Evangelho no mundo contemporâneo, ainda mais em um tempo particular como o que vivemos, marcado pela guerra, pela pandemia e por muitas situações de crise, que afetaram e afetam de forma particularmente impactante, devido à desigualdade crônica e ao avanço do narcotráfico, o continente latino-americano.
A entrevista é fruto de uma longa conversa com Dom Castillo, por ocasião de uma recente estada na Itália. Um colóquio que identifica no atual caminho sinodal, se levado a sério, uma chance para a Igreja e o mundo de hoje. E que resume alguns dos temas abordados na conferência, agora publicada, proferida em outubro passado em um seminário da Pontifícia Academia para a Vida, cujos anais foram agora publicados no livro “Etica e teologia della vita. Scrittura, tradizione, sfide pratiche” [Ética e teologia da vida. Escrita, tradição, desafios práticos]. Sempre em busca de respostas “radicais” e não óbvias.
Etica e teologia della vita. Scrittura, tradizione, sfide pratiche | Foto: divulgação
A reportagem é de Bruno Desidera, publicada pela Agência SIR, 10-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dom Castillo, como podemos ler a atual situação global?
Parece-me que se trata da etapa mais recente de uma crise global que nos lança em uma era de grande incerteza. Em 2001, tivemos a crise do terrorismo, com o atentado às Torres Gêmeas. Em 2008, explodiu a crise econômica, causada pelo liberalismo desenfreado e pelo desenvolvimento das finanças. Nessa visão, prevalece um mundo tecnológico sem sentido, que não tem nenhuma consideração pela pobreza do mundo, pela crise ambiental, pelo aquecimento global. Nessa visão, perde-se a possibilidade de uma participação ativa das pessoas. A tecnologia toma o lugar da sabedoria.
E depois vem a terceira crise global, a pandêmica, que leva à falta de esperança e a uma maior mecanização das relações humanas. E justamente quando, devido à pandemia, se tornou evidente a necessidade de fraternidade, de solidariedade e de repensar o nosso sistema econômico, a tendência de divisão se acentuou. E nos deparamos com a guerra atual. Nesse quadro, que pode parecer pessimista, entra a proposta do Evangelho, desde que não se queira voltar atrás nem dar uma demão de tinta para fingir que esse cenário não existe. Por isso, digo que esta época me lembra, ao contrário, a obra de Neruda: há um poema de amor, o Evangelho que pede para entrar no mundo desesperado.
E como a Igreja pode oferecer uma resposta nesse cenário?
Ela deve retomar seu lugar, sem cair nas polarizações que afetam as sociedades hoje em todo o mundo, e deve evitar fugas para o passado, como reação a esse mundo. O grande historiador Braudel explicava que as crises anteriores se acumulam ao longo do percurso da história. Pois bem, hoje estão emergindo todas as crises que se acumularam nas últimas décadas. Mas o que ocorre em nível social – como nos explica Freud – também ocorre em nível pessoal, com uma “história dos traumas”. No entanto, eu acredito que a fé tem uma origem pré-natal, que a primeira experiência é a de receber gratuitamente uma relação de amor. Filósofos como Sloterdijk ou teólogos como Sequeri me ajudam a vislumbrar essa experiência original.
O ser humano sempre recorda esses elementos originais de comunhão gratuita. Jesus é aquele que gera de novo, do alto de uma cruz, com infinita misericórdia, como nos lembra o papa. De alguma forma, a fortíssima devoção que temos no Peru pelo Senhor dos milagres também responde a esse mistério. A Igreja é chamada, hoje como sempre, a assumir essa forma de Cristo. Mesmo nos tempos de Jesus, havia uma sociedade polarizada, e Jesus mostra um modo de entrar na história e de viver situações que parecem difíceis e desesperadoras. A Igreja não deve deixar as pessoas em situações desesperadoras, mas trazer à tona as origens do humano, voltar a ser “comunidade-ventre”, saindo da “jaula” atual.
Concretamente, o que isso significa do ponto de vista pastoral?
Na passagem da barca e da tempestade, citada pelo Papa Francisco naquele memorável 27 de março de 2020, os apóstolos se dirigem a Jesus lhe perguntando: “Não te importas conosco?”. Na realidade, eles não se dão conta de que Jesus está na popa, ou seja, na parte da frente da barca eventualmente destinada a afundar. Jesus se encontra no lugar mais perigoso e, em geral, onde estão as feridas mais profundas. E é lá que a Igreja também deve estar. Devemos voltar aos elementos constitutivos da vida de Jesus, à sua morte que é o “pré-Natal” da ressurreição. E, com esses elementos, de forma sutil, devemos voltar a agir na história. Acredito que é aqui que reside a tarefa da pastoral, afirmar o povo de Deus, acima de tudo os leigos, partindo da vida, criando e redescobrindo laços.
É aí também que se encontra o sentido da sinodalidade?
Sim, as perguntas principais devem ser feitas diante do povo reunido. Dar centralidade à comunidade nos levará a novas modalidades para entender a Igreja nativamente. Tudo isso não vai contra o longo caminho da tradição, que, durante a história, não foi um caminho de conservação. A Igreja não deve apenas perpetuar os rituais. Ela também deve enfrentar os novos problemas. A Igreja não é feita de uma vez por todas. Ela se faz fazendo. Uma Igreja sinodal dá centralidade à voz dos doentes, dos pobres, dos últimos, dos movimentos populares, mas também de quem geralmente não é consultado, das pessoas idosas que costumam ficar caladas, por exemplo.
O Papa Francisco frequentemente critica o clericalismo. Parece-me que esse fenômeno está ligado à “tentação do pináculo”, uma das três tentações a que Jesus foi submetido no deserto. A tentação de se sentir “elite”, à qual nada acontecerá. Trata-se de um fenômeno que tem raízes antigas. Segundo alguns estudos recentes, a própria “oligopistia”, ou seja, a “pouca fé” que Jesus atribui aos apóstolos, não seria tanto, segundo a tradição, “pouca fé”, mas sim “a fé de poucos”. Além disso, no Evangelho, há um mal-entendido entre João Batista e Jesus: o Batista pensa em um batismo de purificação, e Jesus faz o caminho oposto, o dos pecadores, ele se “enlameia”, em vez de se purificar. A Igreja só tem uma possibilidade: seguir o mesmo caminho, não o de se sentir pura e se separar dos homens e das mulheres.
Do ponto de vista pastoral, por exemplo, isso significa se dirigir às pessoas de forma diversificada, na situação delas, não de forma genérica. Devemos nos lembrar que generatividade é o oposto de produtividade. Hoje, ser comunidade significa fecundar a história com profundos atos de amor. Além disso, há outro ponto fundamental. A sinodalidade é um processo longo, às vezes cansativo, mas deve desembocar na reforma, caso contrário corre o risco de cair no parlamentarismo. Sobre isso, a exortação Evangelii gaudium é muito clara. Não basta escutar, é preciso deliberar juntos. Acabou o tempo de “um só” que decide por todos. Vivemos em um grande nível de complexidade e de crise em nível mundial! O risco é que, sobre os grandes temas, as conclusões sejam deixadas aos técnicos, mas os técnicos não têm uma solução para tudo, nem os padres e os bispos. O próprio Jesus deixa seus discípulos agirem. O mundo se salvará com a sabedoria de todos. Por isso o papa diz para escutar o povo!
A Igreja na América Latina também enfrenta vários problemas, mas parece ter tomado decididamente o caminho da sinodalidade. É assim, na sua opinião?
A recente Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe foi um exemplo interessante. Muitas propostas estão surgindo ao longo do processo. Resta o problema do resultado da reforma. Até agora faltou esse aspecto. Além disso, noto uma falta de formação profunda e generalizada.
Enquanto isso, a Igreja Católica sofre a “concorrência” dos evangélicos e pentecostais...
Por um lado, há a natureza orgânica da Igreja, por outro, uma enorme individualização da fé, na base da qual está a ideia de salvação individual, uma espécie de individualismo espiritualista, que dá origem à chamada “teologia da prosperidade”. A perspectiva é a salvação da própria alma, mas sem olhar para o sofrimento dos pobres. Uma perspectiva desse tipo “não gera”. A história se torna “minha história”. Certamente, essa ideia de fundo se enxerta em experiências comunitárias fortes, nas quais, porém, não há nenhuma referência à comunidade mais ampla, à dimensão do “terceiro excluído”, isto é, dele, dela, deles, para além da totalidade do “nós”. Emmanuel Lévinas diz que toda totalidade é sempre interpelada pelo infinito “outro” fora de nós. De fato, a ideia de sinodalidade é justamente essa, partindo “dele”. A “Igreja em saída” não é uma evasão, mas é entrar na realidade, em outro nível, para que se abra perenemente a outros e caminhe ampliando-se e refazendo-se.
A sociedade latino-americana está cada vez mais oprimida pelo narcotráfico. O que a Igreja pode dizer e fazer?
Ou anunciamos o Senhor da vida ou anunciamos a morte. As máfias têm interesses que chegam até a cotidianidade da vida, uma presença impressionante. A possibilidade de construir o Evangelho desmorona. Por isso, o papa diz que o corrupto, ao contrário do pecador, não pode encontrar o perdão, porque justifica a si mesmo e não deixa espaço para mais nada. Por isso, uma Igreja que busca um modus vivendi ao lado das máfias, na realidade, realiza um modus moriendi. A Igreja deve sair dessa jaula, com sua proposta autêntica e diferente. A corrupção deve ser superada com o Evangelho.
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“Em um mundo desesperado, o Evangelho é poesia.” Entrevista com Carlos Castillo, arcebispo de Lima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU