09 Outubro 2024
Principal lição a ser aprendida com a eliminação dos combustíveis fósseis e a expansão das fontes renováveis é um modelo de desenvolvimento justo e equitativo.
A opinião é de Alexandre Gaspari, jornalista, em artigo publicado por ClimaInfo, 08-10-2024.
Qualquer discussão sobre as medidas para o combate às mudanças climáticas deve ter a transição energética como seu tema principal. O termo é autoexplicativo: o processo envolve uma mudança na forma como produzimos e consumimos energia. O domínio dos combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás – na matriz energética global a partir da Revolução Industrial do século 18 inundou a atmosfera de gases de efeito estufa (GEE), o que elevou a temperatura média do planeta a níveis perigosos. O resultado são eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e intensos. E como a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, são os países mais pobres e que menos contribuíram para esse cenário que mais sofrem.
A ciência já comprovou há pelo menos 40 anos que precisamos parar de queimar carvão, petróleo e gás fóssil e usar fontes renováveis de energia para suprir nossas necessidades energéticas e assim salvar nossa existência no planeta – porque a Terra sobreviverá ao estrago que causamos, mas nós não. Se de um lado petroleiras e petroestados fizeram de tudo para negar a óbvia relação entre os combustíveis fósseis e as mudanças climáticas, de outro ampliou-se vertiginosamente os investimentos nas renováveis, com base nas evidências científicas da necessidade e urgência desse redirecionamento. Inicialmente restritas e caras, essas fontes já são economicamente viáveis e até mais baratas, sem falar no ganho que trazem na redução das emissões de GEE.
Estaria tudo bem, não fosse o fato de as tecnologias de aproveitamento das renováveis, como tantas outras, virem dos países ricos. Países estes que passaram a pressionar as nações pobres a fazer a transição energética a fórceps, sem dar qualquer apoio tecnológico, financeiro e sem considerar as necessidades das populações locais. E no momento em que parte desses países mais pobres descobriram grandes reservas dos combustíveis fósseis que os países ricos tanto queimaram durante séculos – e que continuam queimando até hoje, no melhor estilo “faça o que digo, não o que faço”.
Por isso, a necessidade de eliminarmos os combustíveis fósseis e os substituirmos por fontes renováveis de energia como a eólica e a solar virou também uma disputa geopolítica. Trouxe novamente à tona o sentimento colonizador-colonizado que marca a história das relações entre o Norte e o Sul globais. E gera resistências baseadas nesse ressentimento totalmente compreensível porque, mais uma vez, os países ricos estão a ditar as regras para resolver um problema pelo qual são os principais responsáveis.
O problema é que, no ritmo atual, o “Titanic” climático afundará e, ao contrário do famoso transatlântico do século 20, não temos botes nem mesmo para mulheres, crianças e os mais ricos. Por isso a transição energética é urgente. Mas é inegável que ela também traz desafios que precisam ser enfrentados e superados.
O principal deles é uma lição a ser aprendida com o processo. Além de “transitar” de uma base energética suja e destruidora para outra renovável e bem menos impactante, a transição energética precisa “virar a chave” do modelo de desenvolvimento econômico colonialista e exploratório, liderado por Europa e Estados Unidos, para outro, justo e equitativo.
Não à toa muitos analistas já incluem a palavra “justa” no termo “transição energética”. Mas, de novo, o que era para ser uma solução está sendo cooptado por parte de grandes interesses econômicos. A noção de “justiça” que líderes governamentais e empresariais (inclusive de países em desenvolvimento como o Brasil) estão promovendo, no fundo, quer manter tudo quase da mesma forma que está. Nem transição, muito menos justiça.
No nosso país há quem inclua na “transição energética justa” a exploração de combustíveis fósseis na foz do Amazonas. Justificam essa inclusão com o fato de termos uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo e alegam que explorar petróleo “gera riquezas”.
Sim, temos eletricidade majoritariamente renovável. Temos um dos maiores programas de biocombustíveis do mundo. Também temos enormes desafios sociais que demandam dinheiro. Mas, desde os anos 2000 o Brasil vem sujando sua matriz elétrica com a implantação de termelétricas a gás fóssil. Quanto à “riqueza” do petróleo, as experiências tanto internacionais como no nosso país confirmam outro óbvio: o combustível fóssil concentra riquezas nas mãos de poucos e distribui os prejuízos – sociais, ambientais e climáticos – para todos. Sendo que a maior parte da conta é paga pelos mais pobres, como de costume.
Se a grande lição da transição energética justa é a necessidade de transformarmos o modelo de desenvolvimento, o Brasil tem a faca e o queijo nas mãos. Por absoluta necessidade, quando nem se pensava em meio ambiente e mudança climática, o país aproveitou sua imensa capacidade hidrelétrica e também desenvolveu o etanol e o biodiesel, dois biocombustíveis. É verdade que tudo foi feito de forma enviesada e que não pode ser repetido. Mas é justamente essa experiência em saber fazer, de um lado, e como não deve ser feito, de outro, que torna nosso país capaz de liderar essa transformação maior, não apenas energética, mas com uma evolução socioeconômica que não deixe ninguém para trás.
Mas como fazer isso? Temos algumas respostas às dúvidas sobre transição energética justa:
Não só é viável como a história do país é marcada pelo desenvolvimento de fontes renováveis. O que é preciso agora é fazer isso de forma justa, considerando as demandas de comunidades e populações que podem ser impactadas pela instalação de fontes renováveis como a eólica e a solar e também a readequação profissional de trabalhadores da indústria fóssil para que tenham emprego e renda fora da cadeia do petróleo, gás ou carvão.
A chave da transformação é não repetir a experiência desastrosa que ocorreu na implementação de hidrelétricas e na expansão da cultura da cana-de-açúcar. Assim como é preciso aprender já com a implantação recente de usinas eólicas e solares no Nordeste, feita de forma descontrolada e que prejudicou muito as comunidades locais. Que, em iniciativa inédita, elaboraram um guia com mais de 100 recomendações socioambientais a serem observadas antes da instalação de usinas eólicas e solares.
Até nisso o Brasil atirou no que viu e acertou no que não viu. Hoje as hidrelétricas são as nossas melhores “baterias”: quando não venta, ou à noite, quando não há luz solar, são elas que podem suprir nossa necessidade elétrica. Com um bom planejamento de linhas de transmissão e de acionamento de usinas, podemos instalar mais eólicas e solares com segurança energética.
Há ainda o desenvolvimento de armazenamento de eletricidade em baterias, outra área que está crescendo bastante pela necessidade da transição energética.
Temos também a expansão da geração distribuída, aquela feita pelo próprio consumidor, que tem nos painéis solares uma excelente alternativa. Energia renovável gerada em casa. Com preços mais competitivos e fontes de financiamento, a energia solar distribuída pode se popularizar; hoje ainda é privilégio dos mais ricos.
Há anos as fontes eólica e solar são as que se apresentam mais baratas nos leilões de energia que o governo promove para garantir o abastecimento elétrico do país, porque o valor dos equipamentos caiu drasticamente. Por isso elas são muito mais baratas que a eletricidade vinda de termelétricas a combustíveis fósseis, que produzem uma energia que, além de mais cara, é suja.
O que encarece o preço da eletricidade hoje no Brasil é um sistema tarifário que mantém subsídios ineficazes e desnecessários, inclusive para as fontes renováveis, que já se bancam por si só, e para a fonte de energia mais suja, o carvão. Não é a energia renovável que encarece os preços, mas nosso sistema tarifário, somado à eletricidade gerada por combustíveis fósseis como o gás.
Exemplo disso é o sistema de bandeiras tarifárias. Toda vez que as bandeiras amarela e vermelha são acionadas na conta de luz, impondo um custo extra, é porque termelétricas a combustíveis fósseis foram acionadas.
Aí entra a lição de transformação do modelo econômico exploratório e a vontade/necessidade de liderar a agenda climática global. Se o Brasil repetir o que as nações ricas fizeram durante séculos, será um dos países que mais sofrerá as consequências das mudanças climáticas. Isso porque além de ter uma parte significativa de sua matriz elétrica dependente da regularidade do regime de chuvas, por causa das hidrelétricas, parte importante da economia nacional depende da produção agropecuária, também extremamente dependente do clima. Ou seja, estamos falando da segurança energética, alimentar e hídrica do país.
Aliás, o Brasil já está sofrendo. Somente neste ano vimos enchentes históricas no Rio Grande do Sul, um segundo ano consecutivo de seca extrema na Amazônia, uma estiagem nunca vista atingindo boa parte do país, oito ondas de calor até o início de outubro, inclusive no inverno, e queimadas e incêndios florestais destruidores. Tudo isso é consequência – ou facilitado – pela crise climática, provocada principalmente pela queima de combustíveis fósseis.
Ou o Brasil muda esse paradigma pelo exemplo, já que tem vantagens naturais para isso, e cobra ações similares dos países ricos, inclusive com financiamento para sua transição energética, ou pagará muito mais para remediar os efeitos dos eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes e intensos. Vale ressaltar que essa liderança em um paradigma que deverá ser seguido pelo restante do planeta nos dá uma vantagem competitiva do ponto de vista da economia global.
Antes de mais nada é preciso lembrar que o Brasil hoje já produz mais petróleo do que consome. Além disso, a Petrobras e outras petroleiras ainda estão explorando áreas da bacia de Santos e do pré-sal e outras, onde temos mais de 14 bilhões de barris comprovados, o suficiente para abastecer o país até para lá de 2040 e completar a transição deixando as sobras de carvão, petróleo e gás enterrados. E a tendência global que vem sendo sistematicamente projetada pela Agência Internacional de Energia (IEA) é chegarmos ao pico da demanda mundial por petróleo daqui a pouco mais de 5 anos, em 2030, quando esta começará a cair gradativamente.
Se a Petrobras começasse a perfurar hoje o poço que quer abrir no bloco FZA-M-59, na foz do Amazonas, para explorar combustíveis fósseis, o início da produção se daria em 6, 7 anos, ou seja, em 2030 ou depois. Isso se de fato a empresa encontrar reservas de petróleo e gás consideradas viáveis comercialmente. Já foram perfurados cerca de 100 poços na foz do Amazonas, e nunca se encontrou volume suficiente de combustíveis fósseis que justificasse os gastos na exploração.
Essa noção de “soberania energética” focada no petróleo é muito baseada em conceitos do século passado, quando a produção desse combustível fóssil era concentrada em poucos países. Isso mudou. As fontes renováveis de energia passaram a entrar nessa conta de soberania. Por isso é tão importante o Brasil desenvolver ainda mais essa modalidade energética.
Isso não é mais problema para a energia eólica. Já fabricamos tudo aqui. Mas não se pode negar que as células dos painéis solares vêm da China. Essa dependência, aliás, não é uma exclusividade brasileira: a China domina esse mercado globalmente. E não só no mercado de energia: o Brasil é um dos maiores produtores de commodities agrícolas do mundo, mas importa quase todos os fertilizantes que usa. Resolver isso exige políticas públicas de desenvolvimento tecnológico. É possível.
Essa é uma questão para que a transição energética seja de fato justa: ninguém pode soltar a mão de ninguém. Assim como é preciso que os projetos de energia renovável respeitem o meio ambiente e as comunidades locais, é fundamental que os trabalhadores da indústria fóssil tenham oportunidades de trabalho com o fim dessa atividade. Isso envolve principalmente requalificação profissional e oferta de empregos alternativos à essa indústria, com remuneração compatível.
Não é impossível: no passado, no interior de São Paulo, usava-se o fogo na colheita da cana-de-açúcar, que era então fortemente baseada em mão de obra temporária. Um acordo do setor eliminou o fogo e requalificou os trabalhadores para que a transição para uma prática menos danosa ao ambiente não deixasse uma leva de pessoas desempregadas.
Sim, o desmatamento e o uso da terra são os principais emissores de GEE no Brasil. Mas isso não dá licença para explorarmos e queimarmos mais combustíveis fósseis ao reduzir a devastação de nossas florestas ou recuperar áreas degradadas pelo agronegócio. Por uma razão simples: os efeitos das emissões não são divididos em “caixinhas”. Prova disso são as pequenas ilhas do Oceano Pacífico, que não fizeram quase nada para agravar as mudanças climáticas, mas estão literalmente deixando de existir ao serem invadidas pelo mar, porque o aumento do nível dos oceanos é um dos efeitos da crise climática.
Reduzir o desmatamento e explorar mais combustíveis fósseis é trocar seis por meia dúzia. Pior: as emissões de GEE estão afetando a capacidade de fixação de carbono da Floresta Amazônica – a floresta retira CO2 do ar e fixa esse gás em sua vegetação e no solo.
Portanto, por mais que o Brasil zere o desmatamento e regenere a Amazônia e outros biomas, se as emissões continuarem crescendo não daremos conta de manter a floresta viva. E se isso acontecer, perderemos os serviços ecossistêmicos que a floresta tem fornecido ao resto do Brasil e que estão na base do crescimento do nosso país: estabilidade climática e a regularidade (e abundância) de chuvas que nos colocam como uma das nações com maior estoque de água potável no mundo.
Entre as questões não respondidas sobre a transição energética está o seu financiamento.
Não há dúvida que os países ricos, os petroestados e as petroleiras, por serem os principais causadores das mudanças climáticas, precisam ser cobrados a pagar por isso. Essa é mais uma agenda que o Brasil pode liderar, como já vem tentando, se fizer seu dever de casa e acelerar a transição energética.
Não será usando o argumento falacioso de que aumentar a exploração de combustíveis fósseis é necessário para “bancar” a transição que o país conseguirá isso. Porque os efeitos das mudanças climáticas, como já se vê neste ano, são muito mais caros e imprevisíveis.
Portanto, para combater a atual crise climática precisamos de um acordo global para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, tanto pelo lado do consumo como da produção. A maior tarefa é dos países mais ricos, historicamente responsáveis pela maior emissão de gases que causam o efeito estufa. Mas as nações em desenvolvimento também precisam integrar essa necessária e urgente força-tarefa. Para isso, devem contar com apoio financeiro internacional para acelerar sua transição energética.
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A urgência e os desafios da transição energética justa. Artigo de Alexandre Gaspari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU