24 Outubro 2023
A reportagem é de Giovanna Carneiro e Arnaldo Sete, publicada por Marco Zero e reproduzida por Mongabay, 19-10-2023. A tradução é de Thaissa Lamha.
Antônio Acelino de Moura, 65 anos, diz que imaginou que o futuro finalmente havia chegado à sua comunidade no Nordeste quando, em 2012, ouviu a notícia de que um parque eólico seria construído em sua comunidade no sertão potiguar. Moura, um agricultor de pele bronzeada e envelhecida, testemunha de anos de trabalho no campo, observava ansiosamente do seu terraço, rodeado de plantações de mandioca e milho, os primeiros reboques que se aproximavam do vilarejo transportando enormes turbinas e hélices. Ele nunca tinha visto máquinas tão grandes antes.
Os caminhões entravam e saíam diversas vezes ao dia, mudando a rotina de uma comunidade que antes raramente via carros passando. O nome do vilarejo de Moura, Recanto, no município de Cerro Corá, sugere um lugar sossegado. Mas a realidade aqui está longe de ser idílica. A vila é formada por uma única fileira de casas construídas ao longo de um trecho de terra da rodovia estadual RN-310. A paisagem é típica da Caatinga. Moura estava animado; parecia que o tão esperado progresso estava chegando.
Moura estava convencido de que a rodovia seria rapidamente modernizada para atender aos caminhões que transportam equipamentos tão caros, seguidos por engenheiros e técnicos. Ele também esperava que suas contas de energia ficassem mais baratas à medida que as turbinas eólicas começassem a girar.
Nenhum de seus sonhos se tornou realidade. As contas mensais de energia continuaram a subir. A estrada permaneceu inalterada, com cada caminhão que passava apenas adicionando mais uma camada de poeira ao vilarejo. A construção do complexo eólico Santa Rosa Mundo Novo (SRMN), propriedade da EDP Renováveis, uma subsidiária sediada na Espanha da gigante portuguesa de serviços públicos EDP, tornou o ar ainda mais sujo para os residentes da comunidade. Como resultado, as janelas e portas de Recanto permanecem fechadas dia e noite, apesar das temperaturas ultrapassarem os 30°C.
Explosões na construção de um parque eólico no município de Cerro Corá (RN) causaram rachaduras na casa de Antônio Acelino de Moura. No início, ele ficou entusiasmado com o novo projeto, mas logo sua empolgação desapareceu. (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
Moura e seus vizinhos resignaram-se ao pó, mas seus problemas não pararam aí. Para montar as torres das turbinas, os funcionários do complexo eólico usaram dinamite para explodir rochas e nivelar o terreno. As explosões provocaram fissuras nas paredes de Moura.
“As explosões eram muito fortes, as telhas só faltavam voar”, diz Moura em um tom lento e calmo, com a camisa desabotoada expondo uma grande cicatriz no peito causada por uma cirurgia cardíaca. “Eles faziam três explosões de uma vez e a poeira tomava conta do povoado por horas, a gente nem conseguia ver o horizonte”, acrescenta, apontando para as rachaduras em sua parede.
A EDP Renováveis não respondeu a vários pedidos da reportagem para comentar as reclamações da comunidade. Em seu site, a empresa afirma que a sua principal prioridade é “promover os direitos humanos e as boas práticas de trabalho ao longo de toda a cadeia de valor. A EDPR está comprometida com a integração das questões sociais no planeamento e na tomada de decisões, bem como em garantir operações responsáveis ao longo de todo o ciclo de negócios. Procuramos ativamente promover os valores de integridade, responsabilidade e transparência por toda a cadeia de valor da empresa e na sociedade em geral.”
Embora as vantagens da energia eólica sobre os combustíveis fósseis sejam bem conhecidos, o caso de Moura e de muitos outros no Nordeste mostram que a geração de energia limpa também pode ter um impacto negativo nas comunidades vizinhas se os parques eólicos forem construídos sem levar em conta os seus impactos ambientais e sociais.
Grande produtor de petróleo de longa data, o Brasil apostou fortemente nas energias renováveis, tornando-se líder na América Latina em capacidade de geração de energia renovável e estabelecendo-se como um exemplo para outros países que procuram expandir-se para energias limpas. Mas esta transição não foi tão limpa como o nome sugere. O modelo adotado para a expansão da energia eólica teve um custo elevado para as comunidades rurais do país — questão muitas vezes esquecida nos discursos dos políticos e ocultada nas campanhas publicitárias promovidas pelas grandes empresas.
A chegada do parque eólico União dos Ventos, perto de Enxu Queimado (RN), também levou a um aumento nos preços dos imóveis locais, o que por sua vez atraiu pelo menos dois especuladores que afirmam ser os proprietários das terras onde fica o vilarejo. (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
O Brasil possui 953 parques eólicos, sendo 261 deles somente no Rio Grande do Norte. Embora em segundo lugar em número de parques, depois da Bahia, o estado é o maior produtor nacional desse tipo de energia: produz 30% dos 26,92 gigawatts totais, segundo o Mapa de Energias Renováveis.
O modelo que os promotores de energias renováveis seguem aqui é conhecido como geração centralizada, no qual os parques eólicos são agrupados em uma determinada região para produzir uma grande quantidade de energia a partir de um espaço concentrado. Mas esse modelo tende a causar grandes prejuízos tanto à vida das pessoas quanto ao meio ambiente, afirma Heitor Scalambrini Costa, professor de Física e especialista em Política Energética da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“Não há energia limpa se você está desmatando, poluindo nascentes e mudando a vida das pessoas efetivamente ao tirá-las de suas casas”, diz Costa. Embora enfatize que apoia o desenvolvimento de energias renováveis para reduzir as emissões de carbono, Costa diz que o atual modelo brasileiro e sua gestão precisam ser discutidos, pois podem resultar em “danos irreversíveis e irresponsáveis”.
Até que ponto a energia eólica é “limpa” é uma questão crucial – uma questão, segundo Costa, com impactos na reputação das empresas que a desenvolvem, mas também com consequências jurídicas e financeiras. “O fato de chamarmos a energia eólica de energia limpa implica, do ponto de vista da legislação ambiental, que elas são de baixo impacto ambiental, e isso exime as empresas de energia eólica da obrigação de apresentar o Estudo de Impacto Ambiental [EIA] e o Relatório de Impacto do Meio Ambiente [Rima], que são dois mecanismos fundamentais para fiscalizar a implantação de projetos e empreendimentos que afetam o meio ambiente.”
O quadro regulamentar para estes projetos pode ser complicado. Pela legislação brasileira, o licenciamento e a fiscalização dos projetos de energia eólica em operação no país são de responsabilidade de cada estado. Assim, embora as regulamentações sejam federais, estabelecidas por meio de leis aprovadas pelo Congresso e aplicáveis em todo o país, é o órgão ambiental de cada estado que analisa, licencia e autoriza a operação de parques eólicos privados.
Existem também muitos incentivos do governo para estimular o desenvolvimento de energia sustentável, mas não há incentivos suficientes para garantir que cumpram os regulamentos para proteger as comunidades ou se afastem do modelo de geração centralizada. A lei permite que os estados concedam descontos e isenções em impostos estaduais, e que o Governo Federal forneça incentivos fiscais sobre as receitas dos incorporadores. Também está disponível o financiamento através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para empresas brasileiras que desenvolvam projetos eólicos.
(Fonte: Mongabay)
Não muito longe de Recanto, os parques eólicos estão causando um tipo diferente de perturbação, ameaçando um ecossistema local. Cientistas e ambientalistas denunciaram o desenvolvimento do complexo eólico Pedra Lavrada pela Casa dos Ventos, maior desenvolvedora brasileira de energia renovável. O projeto prevê 372 aerogeradores espalhados por 1.600 hectares de terra, abrangendo oito municípios nos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba.
A principal preocupação dos ambientalistas é o impacto do complexo no Geoparque Seridó, nomeado Geoparque Global da Unesco em abril de 2022. O local é um santuário para papagaios, araras e periquitos, incluindo o quase ameaçado maracanã-verdadeiro (Primolius maracana). Apenas 30 indivíduos dessa espécie foram identificados até o momento no parque, segundo o movimento Seridó Vivo. Como a Mongabay informou recentemente, a construção de parques eólicos perto de habitats de aves representa uma ameaça não só pelo risco de colisão com as hélices das turbinas, mas também pelo impacto da construção na vegetação de que as aves necessitam para sobreviver.
Outra preocupação em especial é o potencial de danos ou destruição de sítios arqueológicos no Seridó, que abrigam pinturas rupestres, cemitérios e habitações de antigas culturas indígenas. Só na região dos córregos Olho d’Água e Bojo já foram catalogados 20 sítios desse tipo, todos podendo ser danificados em explosões como a que rachou o muro da casa de Moura.
Segundo o Seridó Vivo, o EIA e o Rima apresentados pela Casa dos Ventos para obter sua licença apresentavam falhas. “Não há um zoneamento ecológico e faltam estudos técnicos para avaliar os impactos negativos dos empreendimentos sobre a biodiversidade, o patrimônio histórico-cultural e a vida humana nos entornos dos parques”, afirmou o movimento em comunicado.
O Seridó Vivo acrescenta ainda que a empresa pode ter omitido ou minimizado impactos como o desmatamento de grande área de vegetação de Caatinga, aumento da desertificação, degradação de sítios arqueológicos e mudanças no modo de vida de comunidades e populações tradicionais. A Casa dos Ventos, que no ano passado fez parceria com a gigante francesa de petróleo e gás TotalEnergies para desenvolver o portfólio de energia renovável desta última no Brasil, negou que haveria qualquer dano ao patrimônio geológico do Seridó. “Pelo contrário, as ações previstas envolvem a corresponsabilidade da empresa, junto aos órgãos públicos, na identificação, proteção e o monitoramento desse patrimônio na área dos parques”, afirmou a empresa em comunicado.
Pedra Lavrada é apenas um dos vários parques eólicos planejados no geoparque. No município vizinho de Lajes, estão atualmente em operação 34 parques eólicos, e outros 33 estão planejados. Esses projetos, sob diversos desenvolvedores, aguardam aprovação das autoridades estaduais e devem gerar 1,5 GW – 50% a mais do que os 0,99 GW que todo o estado de Pernambuco produz atualmente.
A Caatinga é um tipo de bioma semiárido no qual a vegetação persiste apesar da falta de chuvas. Vários parques eólicos foram implementados na região (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
A falta de estudos aprofundados para identificar e mitigar os impactos em médio e longo prazo da construção de conjuntos de turbinas eólicas já levou a consequências imprevistas. Os pescadores da Reserva Estadual de Desenvolvimento Sustentável Ponta do Tubarão, em Macau, Rio Grande do Norte, têm convivido com alguns desses impactos.
A reserva, uma espécie de área protegida na qual são permitidas algumas formas de exploração sustentável de recursos, acolhe atualmente cinco aerogeradores que fazem parte do parque eólico Miassaba II, propriedade da empresa brasileira Bioenergia Geradora. As turbinas, que podem pesar até 72 toneladas e atingir 200 metros de altura, estão localizadas em uma área de dunas entre o rio e o mar, local estratégico para os pescadores da região, que precisam cruzar um braço de maré em suas canoas para chegar à barreira arenosa que separa os manguezais do oceano.
Para permitir o acesso dos caminhões e SUVs da empresa, a empresa construiu uma estrada de cascalho – feita de pedra e areia mais grossa que a areia da praia – que atravessa a barreira arenosa de ponta a ponta. O aterro da estrada é 2 metros mais alto que o terreno circundante, criando efetivamente um muro entre os moradores de Sertãozinho e o mar.
Para pescadores como José Martins, isto significou uma mudança radical na sua rotina. Enquanto antes eles atravessavam facilmente a barreira arenosa para chegar ao mar, agora ele e os outros pescadores têm de subir o aterro de cascalho, atravessar a estrada e descer novamente para chegar ao mar, carregando as suas redes e outros equipamentos de pesca. Na volta, eles fazem o mesmo caminho, só que desta vez carregando cestos de peixes de até 30 quilos. “Nosso trabalho depende da maré, às vezes trabalhamos de dia, de noite. Passamos cerca de três horas por dia na atividade”, diz Martins.
A Bioenergia Geradora não foi encontrada para comentar. O site da empresa lista um número de telefone, um endereço de e-mail e um formulário de contato, mas nenhum deles parecia estar funcionando, apesar das diversas tentativas da reportagem.
O município de Macau, no Rio Grande do Norte, abriga a Reserva Estadual de Desenvolvimento Sustentável Ponta do Tubarão, Unidade de Conservação na qual são permitidas algumas formas de exploração sustentável de recursos. Cinco turbinas eólicas que fazem parte do parque eólico Miassaba II estão localizadas na reserva. (Foto: Arnalso Sete | MZ Conteúdo)
Em um vídeo corporativo, a empresa diz que “para a implantação dos parques Miassaba II e Aratuá I, a Bioenergia realizou diversas ações socioambientais”, mas não detalha quais são essas ações. O parque Aratuá I também está localizado no Rio Grande do Norte.
“É preciso pensar na estrutura que vai ser montada para a instalação desses parques e os danos que eles vão causar”, afirma Luiz Ribeiro, pescador e membro do conselho gestor da reserva. “O meio ambiente vai conseguir se recuperar? E depois que se recuperar, como fica em caso de descomissionamento, que seria a retirada dessas estruturas? O ambiente está sendo modificado com muita frequência em pouco tempo e as consequências disso são graves.”
Ribeiro afirma que foram levantadas diversas objeções aos reguladores ambientais contra a instalação dos parques eólicos na reserva, mas estas nunca foram consideradas. Ele acrescenta que tem sido difícil estabelecer um diálogo com o governo do estado, sob comando do PT.
“Nós podemos observar que um dos aerogeradores está a menos de 33 metros da maior maré, então, ele é uma construção totalmente ilegal pelas normas do patrimônio da União, que determina que qualquer estrutura de alvenaria só é permitida depois dos 33 metros”, diz Ribeiro. “Além disso, estamos em uma área de desova de tartarugas. Em 2010, quando nós estávamos mapeando os piquetes colocados pela empresa para demarcar a área de construção dos aerogeradores, encontramos um ninho de tartarugas em um dos trechos. Até hoje, não há nenhum estudo apresentado ao Governo do Estado que diga qual é o impacto que os parques eólicos podem trazer para essas espécies que desovam aqui.”
Macau, município onde está localizada a reserva Ponta do Tubarão, já possui um campo petrolífero offshore, anteriormente gerido pela Petrobras, mas vendido à 3R Petroleum em 2019, no início da administração de Jair Bolsonaro. A diferença com os parques eólicos offshore planejados é que as plataformas de petróleo ficam distantes das rotas dos pescadores, diz Ribeiro.
“Os aerogeradores vão estar em cima de pesqueiros, locais bastante utilizados pelos pescadores em suas atividades”, afirma. “A norma da Marinha proíbe que as embarcações se aproximem a menos de 500 metros de raio das estruturas que estão no mar, então, isso vai fazer com que os pescadores não possam ir ao lugares onde se concentram os cardumes.”
“Nosso trabalho depende das marés; às vezes trabalhamos durante o dia e à noite”, diz o pescador José Martins. Além da carga horária de pesca, ele precisa enfrentar os novos desafios impostos pelos parques eólicos. (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
Enquanto os pescadores de Macau têm que escalar um muro para chegar ao mar, os moradores da vila costeira de Enxu Queimado, mais a leste do Rio Grande do Norte, perderam completamente o acesso aos seus pesqueiros depois que um novo parque eólico foi construído nos arredores do vilarejo. Assim como Antônio Moura, fazendeiro de Recanto, a população de Enxu Queimado tinha grandes esperanças no parque eólico, que foram frustradas logo que as hélices começaram a girar.
“Eles [empresários das eólicas], quando chegaram aqui, fizeram reuniões com a comunidade e foi toda aquela propaganda muito bonita”, diz a pescadora e líder comunitária Maria Joelma Martins. “Disseram que íamos transitar normalmente nas áreas dos parques, que poderíamos criar gado e que os produtores rurais seriam beneficiados. Também prometeram um serviço social maravilhoso, porque tudo que eles pudessem fazer pela comunidade eles fariam. Mas a realidade é que não fizeram absolutamente nada.”
O parque eólico União dos Ventos foi construído pela Serveng Energia, subsidiária do conglomerado brasileiro Serveng. “Proibiram a circulação de qualquer pessoa dentro dos parques eólicos, você não pode circular sem permissão. Por isso, é tudo cercado”, diz Joelma Martins. A cerca estende-se para além dos limites do parque eólico até um ponto à beira-mar.
Costumava ser pior. Durante os primeiros meses, a vedação impediu o acesso direto ao mar, obrigando os pescadores a fazerem um desvio para onde seus barcos estavam ancorados e onde a pesca de mariscos e crustáceos é melhor. A empresa finalmente moveu sua cerca após pressão da comunidade.
A Serveng Energia não foi encontrada para comentar.
“No início era mais gente, a maioria mulheres, e nós nos articulamos junto com a Sedraf”, diz Joelma Martins, referindo-se à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar. “Foi assim que nossa batalha começou.”
Apesar dessa pequena vitória, a comunidade perdeu uma de suas fontes de subsistência. “Nossa tradição era correr nas dunas e tomar banho nas lagoas, além de plantar e colher nas matas e várzeas”, conta um dos pescadores. “Mas a nossa área verde acabou. Eles passaram um ano inteiro só desmatando e destruindo os morros de areia para construir os parques.”
A população de Enxu Queimado tinha grandes esperanças no parque eólico, afirma a pescadora e líder comunitária Maria Joelma Martins. Mas as promessas da empresa de energia não foram cumpridas. (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
A perda do acesso ao mar não foi o único problema que a comunidade de Enxu Queimado teve de enfrentar. O modelo de implantar grandes extensões de terra com centenas de turbinas eólicas criou mais do que apenas problemas ambientais. Enxu Queimado não faz parte das movimentadas rotas turísticas do estado, por isso não oferece muito para os viajantes. Há apenas um restaurante, localizado no piso térreo da única pousada do vilarejo, que é apenas um estabelecimento de dois quartos. No entanto, a chegada do parque eólico União dos Ventos nas proximidades levou a um aumento nos preços imobiliários locais, o que por sua vez atraiu pelo menos dois especuladores que afirmam ser os proprietários das terras onde a vila está situada.
A pescadora Leonete Roseno diz que o problema começou em 2020, no auge da pandemia da covid-19, quando um empresário italiano chegou à comunidade com “tudo mapeado”, como ela diz. “Ele disse que tinha todos os dados das nossas casas, e sabia até quantos móveis e cômodos tinham em cada uma delas”, diz ela. “Ele pediu para que a gente procurasse o cartório porque já estava tudo certo pra fazer a regularização e queria que a gente pagasse pelas terras.” O empresário até tentou cobrar taxas dos moradores por pesquisas que eles nunca haviam solicitado.
Desde então, o caso transformou-se numa batalha judicial, liderada em grande parte pelas mulheres da comunidade, contra a incorporadora Teixeira Onze, representada pelo cidadão italiano Marcello Giovanardi. Inicialmente, a empresa apresentou um documento de compra de terras e obteve uma decisão judicial favorável para a reintegração de posse das terras dos moradores. Essencialmente, os 3.100 habitantes teriam de desocupar as suas casas ou comprá-las do novo suposto “proprietário”.
No entanto, a decisão foi posteriormente anulada por um tribunal superior. Gustavo Freire, o advogado que representa os moradores de Enxu Queimado, diz que a empresa não consegue provar a propriedade de terras que nunca havia ocupado, o que é a base legal para a sua reivindicação.
“Esse tipo de ação tem o objetivo de reaver uma posse que deixou de existir porque o posseiro foi expulso de suas terras e deseja retomá-las”, diz Freire, lembrando que nesta analogia o posseiro seria a Teixeira Onze. “A questão é que para ter a posse das terras, o posseiro precisa provar que havia ocupado ela antes, pois só tem direito às terras quem faz uso dela, mesmo que não seja proprietário.”
Os moradores da vila costeira de Enxu Queimado, mais a leste do Rio Grande do Norte, perderam completamente o acesso aos seus pesqueiros depois que um novo parque eólico foi construído nos arredores. Queixas semelhantes foram feitas por outras comunidades do estado. (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
Para além das questões ambientais e jurídicas que surgiram com a instalação de parques eólicos perto das comunidades, existe também uma preocupação sobre o seu efeito na saúde pública, particularmente através da exposição no longo prazo ao ruído e à poeira gerados pelas turbinas.
Em Pernambuco, o ruído constante e de alto volume é um dos problemas relatados pelos agricultores da comunidade do Sítio Sobradinho, no município de Caetés. A localidade fica tão próxima de um parque eólico que os moradores descrevem o ruído da turbina como o de um avião voando baixo permanentemente sobre suas casas, e relataram problemas de saúde crescentes, como insônia, ansiedade, depressão e perda auditiva. Para muitos, o sono só é possível com a ajuda de medicamentos.
Tal como aconteceu com Moura, surgiram fissuras nas paredes da casa de Roselma de Melo após a instalação de parques eólicos pela Cubico Sustainable Investments, uma empresa de desenvolvimento de energias renováveis com sede no Reino Unido. As turbinas ficam a apenas 150 metros da propriedade onde ela mora com o marido, os dois filhos e os sogros. “Depois da implantação desse parque foi muito sofrimento para os moradores daqui por causa do barulho que é demais, a poeira também”, diz Melo.
Com a casa cercada por aerogeradores, Melo diz temer que as estruturas desmoronem e causem um acidente grave. “Há pouco tempo a hélice de uma delas caiu bem atrás da minha casa”, conta ela, mostrando um vídeo do incidente. Ocorreu no final de 2021, quando as pás de uma das turbinas explodiram e caíram.
“No dia que a hélice quebrou foi muito assustador”, diz Melo. “Era de manhã cedo, meus filhos estavam dormindo ainda quando, de repente, a gente ouviu a explosão, no lugar que ela caiu destruiu todas as plantas. Isso porque foi só um pedaço da hélice, se tivesse sido a torre toda tinha feito um estrago muito maior.” Um vídeo gravado pela família mostra fragmentos da pá pendurados perigosamente no cubo da hélice enquanto um barulho alto emana da turbina.
A Cubico não respondeu aos pedidos de comentários. Em seu site, a empresa afirma estar comprometida “um papel significativo na transição para um mundo de energia limpa, respeitando o meio ambiente e o desenvolvimento social das comunidades em que operamos. Somos apaixonados por moldar o futuro da energia com um negócio de investimento de longo prazo que gere crescimento constante, margens elavadas e alto valor para nossos acionistas.”
A AES Brasil adquiriu o Complexo Eólico Caetés em novembro de 2022 e disse em nota que, desde então, realiza uma “campanha de comunicação para se apresentar às comunidades vizinhas como a nova empresa responsável pelo empreendimento, bem como para divulgar seus canais de serviço disponíveis.”
Os canais de contato institucional que a AES oferece aos moradores são e-mail e telefone. Sobre as denúncias apresentadas pelos moradores quanto aos danos socioambientais causados pelas instalações do complexo eólico, a AES afirmou que “tem avaliado todas as questões levantadas pela comunidade e mantido diálogos periódicos com o grupo de representantes das famílias e o advogado que os representam e, portanto, está confiante de que juntos chegarão a uma solução para o problema”.
Costa, o especialista em política energética, diz que a adoção de um modelo de negócios alternativo poderia ajudar a minimizar os riscos e danos potenciais de tais projetos de energia renovável no Brasil. Ele defende sistemas descentralizados de instalações menores, em vez do sistema atual de clusters grandes e concentrados. “Quanto maior a área ocupada pelos aerogeradores, maior vai ser o impacto ao meio ambiente”, afirma.
Costa aponta exemplos bem-sucedidos de sistemas descentralizados no Brasil, como a instalação de painéis solares em telhados residenciais, o uso de turbinas eólicas menores e a instalação de um número menor de turbinas em áreas limitadas.
“Caso as grandes instalações sejam realmente necessárias e bem justificadas, que elas aconteçam em locais de desertificação, que não afete diretamente o cotidiano das pessoas nem o ambiente”, afirma.
No nível político, diz, a fragilidade das instituições públicas no Brasil agrava as ameaças representadas pelas empresas de grande escala. Padrões ambientais negligentes e a falta de supervisão eficaz dos empreendimentos de energias renováveis contribuíram para os impactos prejudiciais causados por estes parques eólicos à escala industrial, diz ele.
O litoral do Rio Grande do Norte tem alguns dos ventos mais regulares do Brasil e se tornou o epicentro do crescimento da energia eólica no país. (Foto: Arnaldo Sete | MZ Conteúdo)
De volta a Recanto, Antônio Moura diz que representantes da EDP Renováveis garantiram que implementariam melhorias na comunidade como compensação pelos danos causados pela instalação de suas turbinas. Mas estas promessas não foram cumpridas, deixando aos residentes a responsabilidade de reparar os danos causados pelas explosões.
“Eles disseram que as rachaduras não tinham sido causadas pelas explosões e eu mesmo tive que comprar o material e mandar cobrir tudo. Se fosse esperar por eles, a casa tinha caído”, diz Moura.
Ele remendou as rachaduras com cimento, mas a poeira implacável persiste. Consequentemente, Moura tomou a decisão de abandonar a vida em Recanto. Ele agora aluga uma casa no município de Lajes e faz o deslocamento diário de 23 quilômetros para cuidar de suas plantações de milho, feijão e mandioca em Recanto, sua única fonte de sustento.
Além de lidar com os prejuízos e frustrações causados pela chegada do parque eólico, Moura perdeu o filho durante a pandemia. Em meio à dor, ele considera abandonar totalmente sua propriedade devido ao peso insuportável dos danos causados pelo parque eólico e à falta de forças para continuar lutando por seus direitos.
“Eu tinha um roseiral, criava galinhas. Era tão tranquilo”, diz Moura. “Eu não tenho mais isso. Muita gente disse que eu me beneficiaria com a chegada das torres, mas só sofri prejuízos. Não só eu, mas toda a comunidade. Acho que até perdi um pouco da alegria da vida.”
Esta matéria faz parte de uma série publicada originalmente pela Marco Zero. Giovanna Carneiro e Arnaldo Sete são membros do Report for the World.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Comunidades rurais do Nordeste enfrentam desafios causados por parques eólicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU