Os limites da transição energética e a necessidade do pensamento global em nosso tempo. Entrevista especial com Heverton Lacerda

Para o ambientalista, descarbonizar o mundo é necessário, mas não é tudo. De nada adianta impor energias renováveis sem respeitar os saberes e os modos de vida das comunidades locais

Foto: Parker Deen | Canva

Por: João Vitor Santos | 21 Dezembro 2023

Um avanço, embora inda muito pequeno. Esta é a avaliação do ambientalista Heverton Lacerda acerca da COP28. Para ele, a tal “transição energética”, presente no documento final, “já deveria ter sido proposta nas primeiras conferências das partes, no fim do milênio passado, e já estar em estágio avançado de implementação”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele parte dos resultados da COP para refletir sobre os desafios ambientais que temos diante do desastre climático que temos vivido.

Uma transição energética, segundo posto na COP28, além de atrasada, ainda não resolve todos os problemas. “Além de rumar para um futuro sem emissões antrópicas exageradas de gases do efeito estufa, é preciso atentar para os impactos ecológicos dessas novas tecnologias de geração de energia considerada limpa, a exemplo dos parques eólicos offshore, que precisam de melhor regulamentação para suas implantações, com atenção especial às faunas e floras locais, assim como às comunidades tradicionais”, diz. Além disso, segue Lacerda, vemos práticas distanciadas de discursos sobre a transição. E tanto no Brasil como no mundo.

Para romper com a “petrodependência”, por exemplo, os desafios são gigantes, sob vários aspectos. “A ‘dependência’ é também uma facilidade, já que existe uma estrutura montada tanto para a prospecção de novas áreas quanto para a construção de novas plantas, utilizando do conhecimento e práticas acumulados. No entanto, o governo precisa mostrar que o discurso não está separado da ação. Principalmente um governo que assumiu o discurso ambiental na campanha eleitoral”, analisa.

Ao longo da entrevista, Lacerda também analisa os impactos do modo de produção agrícola brasileiro no meio ambiente, que chega a pensar mais na conta da crise climática do que os próprios combustíveis fósseis. E, com anos de atuação na área ambiental do Rio Grande do Sul, também analisa como o estado gaúcho vem deturpando lógicas de proteção do meio ambiente sob o argumento de “revitalizar” espaços e gerar emprego e renda.

No fim das contas, revela que seja o caso gaúcho, seja o caso brasileiro ou mundial, o problema é o mesmo. Não basta uma transição energética para assegurarmos a permanência da vida na Terra. “Como a ecologia observa, os processos através de suas relações, o olhar local com pensamento global é um ponto importante a ser considerado. No caso das energias renováveis, é preciso considerar, além das emissões no processo de geração, distribuição e consumo, os impactos na implementação de parques, usinas e lavouras de produção”, sugere. E completa: “gerar energia destruindo lares e fontes tradicionais de geração de renda de populações desprotegidas não pode ser entendido como algo viável a ser aceito por nossa sociedade”.

Heverton Lacerda (Foto: Arquivo pessoal)

Heverton Lacerda é ambientalista, jornalista, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental, ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia e mestrando em Comunicação na mesma instituição. É membro da coordenação do Comitê de Combate à Megamineração no RS, representando a Agapan, fundador e ex-presidente do Instituto de Comunicação Social e Cidadania – InComun, instrutor em projetos sociais populares e presidente da Agapan na segunda gestão consecutiva.

Confira a entrevista.

IHU – Como o senhor analisa esta última conferência internacional sobre o clima, a COP28?

Heverton Lacerda – O que estão chamando de avanço – o fato de constar o termo “transição energética” para a redução do uso de combustíveis fósseis – é pouco, diante da avançada situação de crise climática global. Isso já deveria ter sido proposto nas primeiras conferências das partes, no fim do milênio passado, e já estar em estágio avançado de implementação. A transição energética em si não é garantia de redução de emissões de gases poluentes na quantidade necessária e a tempo suficiente de evitar o colapso, menos ainda de diminuição de riscos de impactos ecológicos sobre populações humanas e de outros seres vivos.

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que é urgente estancar o uso de combustíveis fósseis. É uma prática mundial que satura a atmosfera terrestre com dióxido de carbono, afetando o equilíbrio climático e ecológico que suporta a vida no planeta, além de criar a agenda de implementação e executá-la.

Outro ponto que merece reflexão e cuidados é a diretriz de triplicação da capacidade energética renovável. Além de rumar para um futuro sem emissões antrópicas exageradas de gases de efeito estufa, é preciso atentar para os impactos ecológicos dessas novas tecnologias de geração de energia considerada limpa, a exemplo dos parques eólicos offshore, que precisam de melhor regulamentação para suas implantações, com atenção especial às faunas e floras locais, assim como às comunidades tradicionais.

IHU – O que significa a redução gradual do uso de combustíveis fósseis, previsto no acordo que saiu da COP28?

Heverton Lacerda – Em princípio, está no campo da retórica, pois não estipularam metas concretas a serem alcançadas para a redução do uso de combustíveis fósseis. Nas palavras do presidente da COP28, Sultan Al Jaber, “somos o que fazemos, não o que dizemos”. Ele é um empresário do ramo petrolífero e ministro de Indústria e de Tecnologias Avançadas dos Emirados Árabes Unidos.

Jogou para a torcida, induzindo que as ações são mais importantes do que as palavras, no caso as escritas no documento final da COP, que não se compromete com o fim do uso dos combustíveis fósseis: carvão, petróleo e gás natural. Que ações são mais importantes, não resta dúvida, mas se as palavras não tiverem no documento assinado pelas nações, não há espaço para a sociedade cobrar cumprimentos de metas.

IHU – Em sua participação na COP, a delegação brasileira enfatizou a redução dos desmatamentos, mas reconheceu ser impossível abandonar o uso dos combustíveis fósseis. Como interpreta essa aparente contradição brasileira?

Heverton Lacerda – As palavras permitem diversas interpretações. Quando relacionada à questão climática, a diminuição do desmatamento é positiva. Cabe ressaltar que, no caso do Brasil, o desmatamento e a agricultura emitem mais gases do efeito estufa do que o uso de combustíveis fósseis. Neste sentido, diminuir o desmatamento é caminhar rumo à meta climática, em especial a brasileira.

No entanto, isso não é suficiente para barrar o avanço dos impactos ecológicos causados pela diminuição da área de floresta da Amazônia. Ano a ano, mesmo considerando aqueles nos quais a quantidade de área desmatada é inferior à área do ano anterior, o total de desmatamento aumenta, e isso avança em direção ao chamado ponto de não retorno da floresta (ponto em que a floresta não terá mais capacidade de autorregeneração).

Escrevi sobre isso em um artigo para o Observatório do Jornalismo Ambiental da UFRGS, com foco nas manchetes de jornais com dados deste último ano. O artigo foi replicado, em nível nacional, no Observatório de Imprensa.

Injustiça climática

É possível que a delegação brasileira esteja discursando nesse sentido: de que é necessário reduzir o desmatamento, mas que não podem abrir mão da exploração de combustíveis fósseis pelo fato de o Brasil não ser um dos maiores contribuintes das emissões com esses combustíveis. Do ponto de vista ecológico, é ruim, mas o governo não enxerga apenas com os olhos da ecologia.

A contradição mais importante a ser encarada, e a mais nefasta, é que os países com maior cômputo histórico de emissões de CO², e que mais enriqueceram com o uso de combustíveis fósseis, são os que mais influenciam nas questões geopolíticas e os que têm mais recursos para salvar suas populações das catástrofes ambientais que seguirão se intensificando, caso não consigamos estancar ou reduzir significativamente as emissões. Ou seja, temos um caso mundial de injustiça climática que precisa ser reconhecido e reparado. O contrário disso seria selvageria, uma espécie de guerra climática mundial, onde os mais ricos têm mais chances de sobreviver.

IHU – Ainda nos primeiros anos do primeiro governo Lula, houve um grande incentivo para o uso e produção de etanol, menos poluidor do que o petróleo. Mas, como a descoberta do pré-sal, o projeto de investimento em combustíveis não fósseis foi sendo posto de lado. Hoje, mesmo com avanço da geração de energia solar e até eólica, a exploração de petróleo ainda parece ser “ficha 1” no atual governo. Como podemos compreender esta “petrodependência” brasileira?

Heverton Lacerda – Em primeiro lugar, é preciso ter claro que existem fortes pressões do capital privado, tanto em nível nacional quanto mundial. A própria COP é um exemplo disso, mas também são, em nível nacional, estaduais e até de alguns municípios aqui no Brasil. Também há os conselhos de meio ambiente, que estão dominados pelos setores ligados à produção econômica, tanto por representantes diretos nas vagas de conselheiros quanto das próprias gestões municipais, como é o caso de Porto Alegre. Nas conferências mundiais, os interesses dos grandes extratores de petróleo e de economias nacionais mais dependentes desse combustível fóssil sempre tiveram muita força nas decisões, impedindo avanços nas metas de diminuição das emissões de dióxido de carbono na atmosfera.

O Brasil está longe de ser um desses países com grande dependência do petróleo e do gás natural para a geração de energia elétrica, graças à nossa matriz energética mais “limpa” (no comparativo a países como China, Estados Unidos, Índia, Rússia e com a União Europeia). No entanto, as pressões sobre as contas e os resultados fiscais obtidos pela União acabam exercendo influências nas decisões governamentais.

E essas pressões também têm a mão do capital privado, que atua com muita ênfase sobre os (e nos) legislativos, principalmente, para aprovar leis com privilégios empresariais ou setoriais que acabam afetando o orçamento e ampliando a pressão tributária sobre a população economicamente mais pobre. As pressões (lobby) para conquistar isenções e imunidades fiscais acabam por gerar influência nas decisões, mesmo que indiretamente. Um exemplo é a imunidade tributária de ICMS para exportação de soja, minérios e outros produtos primários classificados pelo mercado como commodities (mercadorias, em inglês).

A “dependência” é também uma facilidade, já que existe uma estrutura montada tanto para a prospecção de novas áreas quanto para a construção de novas plantas, utilizando do conhecimento e práticas acumulados. No entanto, o governo precisa mostrar que o discurso não está separado da ação. Principalmente um governo que assumiu o discurso ambiental na campanha eleitoral, gerando expectativas e esperança de uma virada na condição brasileira. Se fosse no governo anterior, não haveria esperança alguma, pois a ligação estreita com os interesses empresariais e o discurso de destruição ambiental eram claros.

IHU – Há poucos dias, ocorreu o leilão para exploração de petróleo na costa gaúcha. No que consiste este projeto e como compreende este empreendimento?

Heverton Lacerda – O resultado desse leilão foi anunciado no mesmo dia que terminou a COP. Isso nos dá um exemplo concreto de que o discurso e a prática não estão concatenados na conferência, ao menos com o discurso geral de que algo precisa ser feito. Mas, talvez, fique alinhado ao discurso real da COP, que é dizer algo para não deixar vazio, mas não se comprometer com nada que diminua os negócios.

Ainda que, como dito acima, os combustíveis fósseis não sejam os principais emissores de gases do aquecimento global no Brasil, ampliar a parte suja da matriz energética diminui, proporcionalmente, a parte limpa. O resultado é negativo para os números brasileiros. No entanto, os problemas maiores são climáticos e ecológicos. Na exploração de petróleo, há riscos de derramamento do produto em várias etapas da produção. Isso impacta diretamente o meio ambiente, matando peixes, pássaros, corais e outros seres vivos. Já a queima posterior adiciona dióxido de carbono à atmosfera.

IHU – Que caminhos o senhor vislumbra para a descarbonização e viabilização de projeto a partir de energias limpas no Brasil? Em que medida estes caminhos estão no radar do governo federal?

Heverton Lacerda – Iniciando pela segunda pergunta, eu diria que não está bem claro o que o governo federal pretende fazer para ajudar a descarbonizar a matriz brasileira e contribuir para a meta global. Apenas reduzir o desmatamento da Amazônia não é suficiente. Precisamos pensar em processos produtivos de baixo carbono, ou carbono neutro, que seria melhor ainda. É evidente que cada setor de produção tem suas peculiaridades, mas voltar o pensamento para a questão climática pode ajudar a encontrar soluções adequadas para cada caso.

No Brasil, a agricultura ainda representa o maior desafio, tanto em questões climáticas quanto ecológicas. Além da liberação de carbono ao revolver a terra, a maior parte da produção agrícola brasileira ainda faz uso intensivo de agrotóxicos e transgênicos. Outro problema, somando aqui os aspectos econômicos e sociais, é o foco na produção de soja para exportação e as imunidades fiscais para esses produtos, que forçam para baixo os resultados das receitas públicas e levam à ampliação da pressão tributária sobre os contribuintes de baixa renda, no caso dos impostos indiretos, especialmente o ICMS. Isso amplia a regressividade tributária que existe no Brasil, onde quem ganha menos sente mais o peso dos tributos.

Olhar local com pensamento global

Como a ecologia observa os processos através de suas relações, o olhar local com pensamento global é um ponto importante a ser considerado. No caso das energias renováveis – eólica, fotovoltaica, hidrelétrica, etanol, etc. –, é preciso considerar, além das emissões no processo de geração, distribuição e consumo, os impactos na implementação de parques, usinas e lavouras de produção.

Esse ponto é fundamental em respeito às comunidades locais de seres humanos e outros animais e plantas dos ecossistemas prospectados para as implantações de plantas operacionais. Gerar energia destruindo lares e fontes tradicionais de geração de renda de populações desprotegidas não pode ser entendido como algo viável a ser aceito por nossa sociedade.

IHU – Recentemente, no Rio Grande do Sul, vimos voltar à discussão o projeto de exploração de carvão mineral, Ele quase chegou a ser implementado na região do Delta do Jacuí, perto do centro de Porto Alegre. Como compreender as questões de fundo que trazem à tona estes empreendimentos que já foram condenados no passado?

Heverton Lacerda – As intenções de usar o carvão de baixa qualidade energética e alto índice de emissão de poluentes do Rio Grande do Sul é antiga. Em 1979, foi instituído, através do Decreto 28.310, o Complexo Carboquímico do Rio Grande do Sul, o Concarbo. Neste artigo, de 2019, escrevo sobre isso.

Há poucos anos, como mencionado na pergunta, tentaram implantar, aqui perto de Porto Alegre, a Mina Guaíba, da empresa Copelmi Mineração, que seria a maior mina de carvão a céu aberto da América Latina. O projeto previa a implantação dessa megamina há poucos metros do Rio Jacuí, maior contribuinte da água do Guaíba, que abastece Porto Alegre e outros municípios da Região Metropolitana. Só a forte mobilização de nossas entidades ambientalistas, associações, universidades e sindicatos que formaram o Comitê Contra a Megamineração no RS (CCM) conseguiu barrar isso, e não foi sem muita luta nos mais diversos terrenos possíveis, desde a mobilização de rua, a pressão política, o convencimento técnico, a comunicação e, ainda, no campo jurídico.

Agora, Candiota

Agora, a questão retoma em Candiota, a partir da apresentação no Senado Federal o Projeto de Lei 4.653/2023, de iniciativa dos três senadores gaúchos (Paim, Mourão e Heinze), que visa incluir “a região carbonífera do Estado do Rio Grande do Sul” na Lei Federal 14.299/2022 (do período Bolsonaro), que criou o “Programa de Transição Energética Justa (TEJ)”. Como publicamos na nota do CCM, “na prática, essa lei esvazia de sentido e utiliza de maneira contraditória o termo Transição Energética Justa para maquiar de verde a continuidade da exploração e queima do carvão mineral”.

Essa é uma questão importante que, embora seja debatida em nível local, o Rio Grande do Sul, tem referências e impactos globais. Para tentar explicar, trago aqui, novamente, dois pontos de partida para a nossa reflexão: o ecológico e o climático.

Do ponto de vista ecológico, precisamos pensar nos reflexos diretos dos empreendimentos, ou seja os acidentes, catástrofes e suas consequências, como poluição, doenças e mortes de pessoas, fauna e flora. Mas, também, precisamos pensar nas famílias que atualmente geram seus sustentos com esses projetos poluentes e causadores de doenças. É preciso encontrar alternativas urgentes para que essas pessoas possam migrar de emprego, para algo melhor. Isso é um desafio que precisa ser encarado pelos governos e pela sociedade, colaborativamente. O que não podemos é simplesmente aceitar que um projeto poluente, como o da Usina Termelétrica de Candiota III, se coloque como a única opção para produção de energia, emprego e renda. Isso é uma decisão social que precisamos assumir juntos, principalmente neste contexto de crise climática, onde entra o nosso segundo ponto.

O município de Candiota, no Rio Grande do Sul, onde fica a termelétrica | Mapa: Wikipédia

Como já referido, ampliar a quantidade de emissão de CO², além de contribuir para o aumento da crise climática, influencia nas metas brasileiras e globais de enfrentamento às mudanças climáticas. Os governos, sozinhos ou com apoio de poucas empresas, escolhidas a dedo, não conseguem resolver essa questão. Isso já está provado. É preciso envolver a sociedade, em especial as universidades, e, neste caso específico da questão climática, as entidades que há décadas atuam com o tema e têm muito a contribuir.

IHU – Depois de desastres ambientais ocorridos no Vale do Taquari em setembro, o governo gaúcho apresentou um plano de enfrentamento de emergências climáticas. Quais são as fragilidades e os avanços deste plano?

Heverton Lacerda – O governo apresentou, em outubro deste ano, um plano distribuído em quatro pilares (transição energética justa; redução das emissões de gases do efeito estufa; educação e conscientização ambiental; e resiliência climática), mas esse plano, elaborado pela Assessoria do Clima – Asclima da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura ainda não apresenta resultados.

Conforme o próprio governo, as atividades serão gerenciadas por um gabinete permanente por meio de acordo firmado com o Conselho Internacional para Iniciativas Ambientais Locais (ICLEI, na sigla em inglês).

No entanto, nos preocupam algumas ações que vão na contramão desse plano, como a liberação para entrada de mais venenos agrícolas nas lavouras do RS, a autorização para supressão de vegetação nativa em áreas sensíveis e estratégicas de preservação ambiental para a construção de reservatórios de águas, e a intenção de ampliar o tempo de operação de usinas à carvão no RS. É claro que o governo pode dizer que alguns são projetos de outros agentes sociais, como a lamentável iniciativa dos três senadores gaúchos de prorrogar Candiota III e o PL 151/2023, do deputado Delegado Zucco (Republicanos), que altera o Código Estadual de Meio Ambiente (Lei n° 15.434/2020), um marco legal fundamental para a proteção ambiental estadual, que autoriza mais desmatamento para barramentos particulares em cursos d’água com a finalidade de produção agrícola. Mas todas essas situações estão interligadas.

Portanto, fazer um plano para mostrar boa vontade, mas trabalhar com as conexões políticas para que projetos anticlimáticos sejam aprovados por vias diversas, não passará despercebido. Sabemos que governos agem com seus próprios atos e através de iniciativas de seus parceiros de outros poderes e, inclusive, de setores da economia.

Gabinete de Crise do Proclima 2050

Outro ponto a destacar se refere aos conselhos criados no âmbito do Gabinete de Crise do Proclima 2050. As entidades ecológicas do estado, que atuam há mais de 50 anos nessa área, não foram convidadas para integrar o Conselho Científico ou o Conselho de Crise, já que o projeto prevê a participação de entidades. O programa é majoritariamente formado pelo governo e por servidores do Estado.

Neste contexto, ressalto que a própria Secretaria de Meio Ambiente teve seu papel deturpado desde o governo [José Ivo] Sartori, e continua nos dois governos [Eduardo] Leite, para facilitar os interesses do setor produtivo. Nesta situação, o papel de proteção ambiental da Secretaria, assim como o da Fepam, ficou prejudicado e não detém a mesma confiança de tempos anteriores.

IHU – Como vê a forma com a qual o governo federal vem trabalhando a crise climática?

Heverton Lacerda – Por enquanto, o foco está mais na diminuição do desmatamento ilegal da Amazônia. Falta mais integração com as comunidades para compreender os impactos locais de empreendimentos eólicos, por exemplo. Não queremos novos empreendimentos como Belo Monte no Brasil, empreendimento que causou grandes impactos sociais e ambientais na região do rio Xingu, no Pará.

IHU – Porto Alegre, como muitas capitais brasileiras, está entrando na onda da chamada revitalização. Como enxerga esta revitalização que tem sido empreendida na cidade? Quais os desafios para que se empreenda uma transformação na cidade que valorize a qualidade de vida e preservação ambiental?

Heverton Lacerda – Como escrevi em um artigo publicado no jornal Zero Hora em setembro, para revitalizar, é preciso recompor todo o espaço de vida que foi e está sendo suprimido. Não é isso que a gestão municipal de Porto Alegre está fazendo. O que se vê são inúmeras árvores sendo derrubadas e podas assassinas preparando futuros cadáveres arbóreos para uma morte lenta e gradual.

Parques, como a da Redenção [na região central de Porto Alegre], vêm sendo postos na vitrine para a iniciativa privada construir estacionamentos e sombreiros artificiais substituindo a vegetação, além de tirar da população o espaço público onde funcionava o orquidário para entregar a comerciantes de bar que colocam seguranças nos portões e fazem barulho com varredores a motor, afastando a fauna. Também houve um agressivo avanço sobre a vegetação do Parque Harmonia para abrir espaço para empreendimentos privados de espetáculos lucrativos e roda gigante, como se isso fosse revitalizar. Sem contar as toneladas de concreto despejadas na orla do Guaíba, que carece da mata ciliar que lhe foi ceifada.

A forma como a gestão municipal tem encaminhado essa questão, afastando pessoas e natureza, é frontalmente oposta às necessidades ecológicas de quem vive em grandes cidades, indivíduos que precisam de oportunidades de contato e relação com o ambiente natural para 'desestressar' e aprender a conviver com os demais entes da vida terrestre. Nossos parques são oportunidades de experiências e contatos com a vida natural. A gestão municipal de Porto Alegre é insensível para isso.

O caminho ideal é o oposto da rota destrutiva que estão gestando. A cidade precisa ser pensada a partir das pessoas, não desde os interesses de negócios imobiliários desconectados com a história e a vocação cultural da Capital gaúcha.

IHU – O senhor está à frente da Agapan, uma ONG cinquentenária, pioneira na luta ambiental. Quais as lutas que marcam estes 50 anos e, hoje, quais são as principais questões ambientais no Rio Grande do Sul?

Heverton Lacerda – Já são 52 anos de atuação ininterrupta e 100% voluntária. Desde o início, em 1971, a entidade esteve à frente das principais questões ecológicas do Brasil. A Amazônia ganhou destaque internacional a partir da atuação do José Lutzenberger que, mais adiante, na década de 1980, foi convidado a participar do documentário A década da Destruição, de Adrian Cowell e Vicente Rios.

A edição número 18 da Revista IHU On-Line teve seu tema de capa dedicado a Lutzenberger

O arquipélago Fernando de Noronha também tem atuação da Agapan, que ajudou, com sua expertise única no Brasil até então, a elaborar o plano de manejo da reserva. A entidade também foi precursora na luta contra os agrotóxicos, na questão das podas e arborização urbana, na luta contra as emissões poluentes da papeleira norueguesa Borregaard, que exalava cheiro de ovo podre de suas chaminés em Guaíba (RS) e jogava poluição no rio Guaíba. (De 2015 para cá, a empresa foi autuada mais 9 vezes, por emissões de poluentes atmosféricos e líquidos. Algumas dessas autuações foram feitas por denúncias da Agapan, em apoio à comunidade do entorno da fábrica quadruplicada.) 

A Agapan atua até hoje em defesa da agroecologia, o que entende ser uma saída adequada para a produção de alimentos e proteção ambiental, proporcionando renda e qualidade de vida no campo e na cidade; no apoio e incentivo à produção da pecuária ecológica, como forma de gerar renda, alimento e preservar o bioma Pampa; na observação dos avanços e retrocessos legislativos, sempre posicionando-se em apoio à população gaúcha e brasileira.

Todas essas lutas, de uma forma ou de outra, seguem na pauta da entidade. Como tudo está mais intenso, atualmente atuamos com muitas parcerias, tanto com as entidades ambientais da Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente – Apedema-RS quanto com universidades, associações, sindicatos e movimentos que nos ajudam a construir e enfrentar questões, com o caso do Comitê de Combate à Megamineração no RS, da Rede de ONGs da Mata Atlântica, da Coalizão pelo Pampa, dos movimentos de defesa dos parques de Porto Alegre, como o Preserva Redenção, Preserva Marinho, Preserva Harmonia, entre outros.

Além disso, integramos diversos coletivos, como a Comissão de Produção Orgânica – CPOrg e conselhos. Por sinal, estamos deixando de integrar os conselhos de meio ambiente por entender que esses perderam o sentido de proteção ambiental e estão aparelhados para aprovar projetos de interesses ruralistas, no caso estadual, e da especulação imobiliária, no caso da Capital gaúcha. Esperamos que um dia possamos rever esse posicionamento, à medida que os referidos conselhos forem retornando à origem de seus objetivos mais nobres, que é avaliar os projetos pensados para o Estado e para Porto Alegre, tendo a preservação ambiental como foco principal.

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