Em palestra promovida pelo IHU, Karina Macedo Fernandes, mestra e doutora em Direito Público, discute, a partir do caso de Porto Alegre, caminhos para uma revitalização do Cais Mauá que não se configura em mais exclusão
Imagine uma cidade que vê a natureza como ameaça, um inimigo a ser controlado e neutralizado. Assim, depois de um trauma de uma grande cheia em 1941, decide, ao velho estilo das urbes medievais, cercar o rio e o manter apartado do resto da cidade. Passa-se mais de 80 anos, a cidade felizmente entende que o rio não é inimigo - e tampouco a natureza -, concebe outras alternativas para as cheias e decide derrubar muros e ver o rio de frente novamente. Porém, ao que parece, essa orla não volta a ser um passeio assim tão publico como antes de 1940, porque, inundada de capitalismo, a cidade decide "lotear" o espaço para quem pode pagar para ter o deleite de ver o sol adormecer sobre as águas do rio. Essa cidade pode ser qualquer uma de nossos tempos, mas ela é Porto Alegre. Apesar de notório bem que tem feito a capital dos gaúchos com essa recuperação da orla, os empreendimentos têm ascendido um debate: a gentrificação e a tomada de espaços públicos.
Cais Mauá, região onde hoje é a avenida de mesmo nome e mediações tomados pela água na enchente de 1941 | Foto: Acervo Fotográfico Museu de Comunicação Hipólito José Da Costa
Embora os primeiros trechos da orla sejam abertos ao público, ou seja, não se cobra qualquer tipo de ingresso para acessar, quase todos estão sendo geridos pela iniciativa privada. Além disso, a exploração do espaço com bares, outros serviços e mesmo publicidade podem se configurar em exclusão de populações mais pobres. Assim, mesmo que seja gratuito, o pôr do sol do Guaíba passa ser algo inacessível para muitos. Além da lógica higienista da orla, há também uma modificação de todo entorno que passa a ser explorado pelo mercado imobiliário e suas moradias para classes média e alta.
Essas questões têm posto em alerta um coletivo de professores, arquitetos e pessoas que primam pelo espaço público da orla. Mas quando a reforma chegou ao Cais Mauá, o problema tomou corpo. Diferente da intenção do poder público, o Coletivo Cais Cultural Já defende que as docas não se destinem para exploração comercial. A ideia é reunir recursos para revitalizar os armazéns, sem a possibilidade de uso residencial e deixando o acesso realmente público.
Essa história bem concreta de Porto Alegre está no centro de um debate que poderia se dar em qualquer cidade. São os chamados riscos da gentrificação. Afinal, transformar o espaço público em shopping center ou um residencial não se configura como uso comum de um bem público. Mas como conceber alternativas? Para entrar nessa discussão, o IHU Ideias, espaço tradicional de palestras e debates do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que ocorrem sempre nas quintas às 17h30min, agora no formato live, promove a conferência “A não gentrificação do Cais Mauá. Por um projeto coletivo e autossustentável”, com Karina Macedo Fernandes, graduada em Direito e mestra e doutora em Direito Público.
“A ausência de uma política de regularização fundiária possibilita a grilagem de terras e a gentrificação. Além disso, o uso e o aproveitamento da terra e do espaço urbano para fomento do capitalismo, com a realização de empreendimentos de médio e grande porte, supõem uma situação de anormalidade para o exercício do direito à terra, à moradia e à cidade dos atingidos.” A reflexão é de Karina Macedo Fernandes, em entrevista concedida ao IHU em 2019, quando discutíamos o déficit habitacional. Para ela, esse problema tem como cento as lógicas do capitalismo que expropriam a terra e empurram quem não tem como pagar por ela para zonas marginalizadas, as periferias. Isso é, quando conseguem ocupar algum espaço e não vagam pela cidade.
Esse debate acerca de moradia digna está estreitamente ligado com a ocupação de espaços dados como bem comum que se convertem em redutos de lazer acessíveis a poucos. Afinal, em ambas problemáticas estamos tratando da ocupação e uso social da terra. “O Estado tem o dever de assegurar o cumprimento da Constituição e do Estatuto da Cidade, que estabelecem a política da ordem jurídico-urbanística e estão assentados na gestão democrática da cidade e na sua função social, o que nos leva à função social da propriedade urbana”, pontua, na mesma entrevista.
Para Karina, “o projeto de revitalização do Cais Mauá se trata de uma realidade específica de intervenção urbana que não leva em conta os elementos sociais, econômicos e políticos da cidade como um todo”. Isso porque são lógicas capitalistas, novamente, dominando projetos como esse, num jogo de concentração e dispersão de pessoas. “Essas concentrações e dispersões populacionais, compulsórias ou não, foram marcadas por mudanças comportamentais diretamente relacionadas à acumulação de capital, bens e serviços, bem como ao consumo, inserindo-se diretamente na lógica urbanística de desenvolvimento capitalista”, explica.
Ela ainda observa que “nesse espaço de disputas, os movimentos que defendem a cidade e o direito ao seu uso democrático, plural, includente e equilibrado agem em uma lógica de pluralidade na ocupação do espaço, de pertencimento coletivo e de valorização da memória coletiva que, por si, representam grandes conquistas anti-hegemônicas e anticapitalistas”.
Essas questões inspiram um dos artigos de 2020, assinado por Karina Macedo Gomes Fernandes, publicado no número 303 do Cadernos IHU Ideias. Como cenário, mais uma vez, ela olha para o Caís Mauá. A partir da análise das intervenções políticas no local, analisa como os processos legais de planejamento urbano brasileiro possuem vieses que privilegiam determinados atores em detrimento de outros. O que se vê na prática está longe de coincidir com os fundamentos do direito à cidade. E, segundo Karina, direito à cidade é “o exercício pleno da cidadania, a gestão democrática da cidade e a função social da cidade e da propriedade urbana”.
No texto, Karina aponta mudanças possíveis a partir de uma ordem oposta à colonialidade de poder. Assim, acredita que os processos de intervenção urbana ocorrem a partir de um conflito de interesses, isto é, nem todos os projetos encabeçados e/ou apoiados pelo Poder Público visam o bem-estar dos habitantes e demais pessoas diretamente afetadas com a modernização dos espaços. Pois, “colonialidade do poder é o conceito desenvolvido por Aníbal Quijano e que determina que as relações de colonialidade nos âmbitos econômico e político não findaram com o fim do colonialismo da América. A categoria, além de denunciar a continuidade das formas de opressão engendradas no colonialismo moderno, atualiza processos de dominação que reproduzem a retórica da modernidade”.
Inspirada nas concepções do geógrafo David Harvey, Karina conclui que é fundamental a “compreensão da matriz colonial de poder que demarca a questão urbana. Nesse sentido, a colonialidade é caracterizada como sinônimo de espoliação fundamental – da terra, do trabalho e do dinheiro – para a circulação do capital e a consolidação do capitalismo e sua manutenção se justifica pela contradição entre propriedade privada e Estado, amparada pelo Direito ou pelo campo da legalidade”.
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, mestra e doutora em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Integra o Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos e desenvolve pesquisas na área de Direito, com ênfase em direitos humanos, direito à cidade e pensamento decolonial.
Karina Macedo Fernandes (Foto: arquivo pessoal)