18 Agosto 2023
"Embora o dinheiro seja importante, deter o desmatamento requer mais do que dinheiro – também requer coragem política, e a influência de critérios ambientais nas importações pode ajudar a gerar essa coragem", escreve Philip Martin Fearnside, em artigo públicado por Amazônia Real, 16-08-2023.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria.
O fato de os oito países amazônicos se reunirem e discutirem o desmatamento é positivo, embora os resultados da reunião tenham sido decepcionantes. A declaração final [1] tem uma longa lista de boas intenções para respeitar os povos indígenas, reduzir os impactos ambientais e ajudar a evitar as mudanças climáticas, mas carece de compromissos específicos com metas e cronogramas quantificados. A palavra “sustentável” aparece 88 vezes nos 113 parágrafos numerados da declaração.
Os países se recusaram a concordar com uma meta para interromper o desmatamento “ilegal”, muito menos limitar o desmatamento “legal”, e eles não concordam em proibir a extração de petróleo na Amazônia [2, 3]. Limitar o desmatamento é essencial devido à sua contribuição ano a ano para o aquecimento global [4] e devido ao seu enorme estoque de carbono na vegetação e no solo que poderia ultrapassar o clima global além de um ponto de inflexão se houver uma parte significativa dele é lançada na atmosfera [5].
O Presidente Lula foi o principal impedimento para o compromisso de acabar com a extração de petróleo, atividade que deve ser reduzida imediatamente e encerrada até 2050 para controlar o aquecimento global, como defende inclusive uma entidade decididamente não ambientalista com representantes dos governos de mais de 120 países: a Agência Internacional de Energia [6]. Além da completa inconsistência entre a expansão da extração de petróleo e as intenções declaradas de mitigar o aquecimento global, essa extração também tem tremendos impactos ambientais na Amazônia [7, 8].
No caso do proposto projeto brasileiro “Bacia Sedimentar do Solimões”, no estado do Amazonas, levaria a um desmatamento maciço em conjunto com a rodovia BR-319 e as suas associadas estradas secundárias planejadas, como a AM-366 [9, 10]. No caso da extração proposta no estuário do rio Amazonas, poços são planejados em água de até o dobro da profundidade do local do desastre no Golfo do México, que jorrou petróleo durante meses em 2010 e provou que ninguém no mundo tem tecnologia para controlar derramamentos de petróleo em águas tão profundas [11].
O que os países concordaram foi sobre questões politicamente fáceis, como os itens na declaração “Exortando os países desenvolvidos a cumprirem suas obrigações” para contribuir mais dinheiro para os esforços de redução do desmatamento, e “Condenando a proliferação de medidas comerciais unilaterais” que impõem restrições ambientais às importações que afetam o desmatamento (ou seja, soja, carne bovina e madeira). Mais contribuições de dinheiro são realmente necessárias e podem ter um efeito positivo na redução do desmatamento. No entanto, a resistência às restrições de importação, se bem-sucedida, teria o efeito oposto, eliminando uma influência importante nas políticas que impulsionam a perda florestal [12].
O Lula deu uma indicação disso dois dias antes da Cúpula na sua passagem pelo Estado do Amazonas: em uma entrevista de rádio ele mencionou, entre as justificativas para estabelecer um grupo de trabalho para avaliar se o projeto de reconstrução da BR-319 deve seguir, a necessidade de evitar qualquer “veto” sobre os produtos do agronegócio brasileiro [13, 14].
Embora o dinheiro seja importante, deter o desmatamento requer mais do que dinheiro – também requer coragem política, e a influência de critérios ambientais nas importações pode ajudar a gerar essa coragem. O dinheiro pode pagar pelas tão necessárias operações de comando e controle, e é importante que essa seja a prioridade para o uso do dinheiro e não ações politicamente mais fáceis, mas muito menos econômicas, como plantar árvores para restaurar áreas já desmatadas.
O mais importante de tudo são “elefantes na sala” politicamente difíceis, que não foram tratadas na reunião em Belém. Um desses elefantes são compromissos de não construir estradas que abram áreas de floresta tropical para a entrada de desmatadores – mais urgentemente a planejada reconstrução da rodovia BR -319 (Manaus-Porto Velho) e vicinais associadas (especialmente AM-366 e AM-343) [15].
Outro “elefante na sala” em Belém foi a necessidade de acabar com a legalização de reivindicações de terras do governo na Amazônia (denominada eufemisticamente como “regularização” em discurso brasileiro) [16]. A legalização dessas reivindicações incentiva uma cadeia interminável de grilagem de terras, invasões de terras e desmatamento [17]. Também resulta na legalização do desmatamento passado e futuro, o que representa a maneira mais fácil de cumprir a promessa do presidente brasileiro Lula de acabar com o desmatamento “ilegal” até 2030, mas sem ter que realmente parar o desmatamento (por exemplo, [18]).
O discurso atual de Lula sobre o fim do desmatamento “ilegal”, incluindo sua proposta na cúpula de Belém, contrasta com a sua palestra muito elogiada na COP de 2022 no Egito, quando prometeu zerar o desmatamento sem acrescentar o qualificativo fatal “ilegal” [19]. Nem mesmo a proposta brasileira de interromper o desmatamento “ilegal” em toda a Amazônia foi aceita em Belém. O impacto de um hectare de desmatamento tem o mesmo impacto no clima e na biodiversidade, seja legal ou não.
Infelizmente, os principais impulsionadores do desmatamento não foram abordados na cúpula de Belém. Esses elefantes na sala devem ser resolvidos rapidamente se quisermos evitar cruzar pontos de inflexão catastróficos.
[1] MRE (Ministério das Relações Exteriores). 2023. Declaração Presidencial por ocasião da Cúpula da Amazônia – IV Reunião de Presidentes dos Estados Partes no Tratado de Cooperação Amazônica. MRE, Nota à imprensa Nº 331. 08 de agosto de 2023.
[2] Nunomura, E. 2023. Declaração de Belém não cria meta para desmatamento zero na Amazônia. Amazônia Real, 08 de agosto de 2023.
[3] Pedrosa Neto. C. 2023. Diálogos Amazônicos foram ignorados na Declaração de Belém. Amazônia Real, 09 de agosto de 2023.
[4] Fearnside, P.M. 2019. Amazônia e o aquecimento global. Série. Amazônia Real.
[5] Barros, H.S. & P.M. Fearnside. 2019. Soil carbon is decreasing under “undisturbed” Amazonian forest. Soil Science Society of America Journal 83(6): 1779-1785.
[6] IEA (International Energy Agency). 2021. Net Zero by 2050: A Roadmap for the Global Energy Sector. IEA, Paris, França. 222 p.
[7] Esterhuyse, S., Redelinghuys, N., Charvet, P., Fearnside, P., Daga, V., Braga, R., Okello, W, Vitule, J., Verheyen, E. & Van Steenberge, M. 2022. Effects of hydrocarbon extraction on freshwaters. Encyclopedia of Inland Waters, 2nd Edition. Elsevier, Amsterdã, Países Baixos. Vol. 4, p. 189-209.
[8] Fearnside, P.M., E. Berenguer, D. Armenteras, F. Duponchelle, F.M. Guerra, C.N. Jenkins, P. Bynoe, R. García-Villacorta, M. Macedo, A.L. Val, V.M.F. de Almeida-Val & N. Nascimento. 2021. Drivers and impacts of changes in aquatic ecosystems. Chapter 20 In: C. Nobre, A. Encalada et al. (eds.) Amazon Assessment Report 2021. Science Panel for the Amazon (SPA). United Nations Sustainable Development Solutions Network, New York, E.U.A.
[9] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.
[10] Fearnside, P.M. 2022. O interesse financeiro de Putin nas rodovias da Amazônia brasileira. Amazônia Real, 03 de maio de 2022.
[11] Fearnside, P.M. 2019. O derramamento de petróleo no Nordeste: Um alerta para o Pré-Sal e para Amazônia. Amazônia Real, 28 de outubro de 2019.
[12] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2022. Países devem boicotar o Brasil por causa do desmatamento impulsionado pela exportação. Amazônia Real, 16 de fevereiro de 2022.
[13] Youtube. 2023. Presidente Lula concede entrevista para rádios da Amazônia. Youtube, 03 de agosto de 2023.
[14] g1 AM. 2023. Presidente Lula diz que decidiu criar grupo de trabalho para discutir reconstrução da BR-319. Declaração foi dada em uma entrevista para emissoras de rádio da Região Norte. G1, 03 de agosto de 2023.
[15] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial: 1 – Um desastre evitável. Amazônia Real, 08 de março de 2022.
[16] Fearnside, P.M. 2023. Lula e a questão fundiária na Amazônia. Amazônia Real, 17 de janeiro de 2023.
[17] Fearnside, P.M. 2020. O perigo da “lei da grilagem”. Amazônia Real, 22 de maio de 2020.
[18] Fearnside, P.M. 2021. Desmatamento ilegal zero, mais uma distorção do Bolsonaro. Amazônia Real, 26 de abril de 2021.
[19] Lima, L. 2022. “Não há segurança climática sem Amazônia protegida”, diz Lula na COP27. Amazônia Real, 16 de novembro de 2022.
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As decepções da Cúpula da Amazônia em Belém. Artigo de Philip Martin Fearnside - Instituto Humanitas Unisinos - IHU