Pela primeira vez em mais de três décadas, os quase 200 países-membros que participaram da Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP28) se comprometeram com uma “transição” para o fim do uso de combustíveis fósseis. O documento final com as propostas internacionais para frear a crise climática foi assinado nesta quarta-feira (13) e encerra o evento, realizado neste ano em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por Infoamazônia, 13-12-2023.
O texto também incorpora a proposta brasileira para obrigar os países reverterem o desmatamento e degradação de florestas até 2030, como forma de garantir o limite médio de aquecimento da Terra em 1,5ºC acima do nível pré-industrial (1850-1900). Antes voluntária e declaratória, a preservação das florestas passa a ser compromisso dos países, o que contribui para a proteção de biomas como a Amazônia.
Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima, avalia que o acordo buscou uma “linguagem de consenso” e destaca que, entre versão preliminar do texto divulgada na segunda-feira (11), e que não mencionava combustíveis fósseis, e a versão final, ocorreram manifestações importantes da União Europeia, dos Estados Unidos, dos países ilhas do Pacífico, entre outros, que deram uma resposta “forte e generalizada sobre a necessidade de eliminar os combustíveis fósseis”.
Sultan Al Jaber, presidente da COP28, ergue o martelo durante as considerações finais da Plenária de Encerramento da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (Foto: COP28/Christopher Pike)
“A linguagem era algo que estava sendo muito disputada e a escolha da palavra transição parece ter sido a saída de negociação para que todos os países aceitassem. Existem brechas e dificuldades ainda a serem vencidas, mas foi um passo importante”, avaliou.
O texto final evitou os termos “phase out”, eliminação, e “phase down”, diminuição, que polarizaram as discussões nesta última semana. Para transformar as decisões sobre o clima em realidade, os países agora precisam incorporar o acordo em seus compromissos nacionais (NDCs), que serão apresentadas pelos países apenas na COP30, que será realizada no Brasil.
A linguagem era algo que estava sendo muito disputada e a escolha da palavra transição parece ter sido a saída de negociação para que todos os países aceitassem — Stela Herschmann
Tweet.Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, que acompanhou de perto as negociações em Dubai, avalia que o compromisso é um avanço para frear uma disparidade mundial que existia entre ações climáticas e anúncios de novas frentes de expansão de petróleo.
“O pacote de energia está claramente identificando a transição para o baixo carbono e alinhado a uma transição de combustíveis fósseis até 2050. Isso não é pouca coisa”, afirmou, citando como exemplo contradições do próprio Brasil, que levou para conferência resultados climáticos como a redução do desmatamento na Amazônia e a redução nas emissões dos gases do efeito estufa, mas que acabaram ofuscados por anúncios como o ingresso do país na OPEP+ e com o lançamento de um leilão de petróleo e gás apenas um dia após o encerramento da COP28.
“É exatamente o que está acontecendo hoje no leilão no Brasil: novas explorações de petróleo que vão contra a meta do Acordo de Paris. Então, essa linguagem do transition away [ou transição] até 2050 em linha com a ciência vai forçar uma revisão nos planos de expansão da exploração de petróleo que existem em inúmeros países, incluindo o Brasil”, explica Unterstell.
Essa linguagem do transition away [ou transição] até 2050 em linha com a ciência vai forçar uma revisão nos planos de expansão da exploração de petróleo que existem em inúmeros países, incluindo o Brasil — Natalie Unterstell
Tweet.A própria ministra Marina Silva fez sinalizações em relação a isso em seu discurso no encerramento da conferência: “a partir de agora temos uma forte sinalização para governos e empresas de que esse tema passa a fazer parte dos compromissos assumidos por todos e em uma trajetória de transição para o fim do uso de combustíveis fósseis”.
Marina também acenou que o compromisso climático brasileiro terá que incluir “todos os setores da economia”, e pode obrigar uma revisão no Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que está em discussão no Congresso e recentemente excluiu o agronegócio do cumprimento de um teto de emissões.
Marina Silva participa da plenária de encerramento da COP28 (Foto: COP28/Christopher Edralin)
Entre os pontos negativos do documento, especialistas destacaram a falta de mecanismos claros para financiar a transição justa e equitativa, principalmente nos países subdesenvolvidos, e a falta de alternativas ao uso de gás fóssil no parágrafo que trata sobre combustíveis de transição.
Para Alexandre Prado, especialista em mudanças climáticas do do WWF-Brasil, o tom neutro que o documento buscou ao tratar dos combustíveis fósseis deixa brechas de interpretações que podem retardar ações mais incisivas na eliminação da extração e uso de petróleo.
“Ao recomendar a transição dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, a meta de emissões líquidas zero fica para os sistemas energéticos como um todo e não o setor de fósseis especificamente. Se por um lado isso fortalece a tendência da indústria fóssil de enfatizar o potencial da captura de carbono, por outro mantém a utilização do petróleo em setores petroquímicos não relacionados com a produção de energia. Ainda não é a linguagem robusta que precisamos, mas é um avanço em relação à versão anterior.”
Ainda não é a linguagem robusta que precisamos, mas é um avanço em relação à versão anterior — Alexandre Prado
Tweet.O coordenador do MapBiomas, Tasso Azevedo, diz que a menção aos combustíveis fósseis pela primeira vez desde 1992 é “um marco importante”, mas que uma transição até 2050 ainda não é ideal para garantir a meta climática limitada a 1,5ºC.
“Mais importante foi a indicação de que precisa começar esta década”, afirma, ponderando que “o que está na decisão não chega nem perto de garantir a limitação do aumento da temperatura em 1,5 graus alinhado com Paris, mas é um passo importante nessa direção”. Para Azevedo, a não menção ao gás fóssil no texto “deixou aberta uma brecha gigante para o gás fóssil como ‘combustível de transição’”.
O que está na decisão não chega nem perto de garantir a limitação do aumento da temperatura em 1,5 graus alinhado com Paris, mas é um passo importante nessa direção — Tasso Azevedo
Tweet.O acordo para reverter o desmatamento e a degradação de florestas, um dos principais pontos defendidos pelo Brasil durante a COP28, deve fortalecer as políticas brasileiras rumo ao desmatamento zero até 2030. No entanto, o texto não incluiu a participação dos povos indígenas.
Segundo o texto, a reversão do desmatamento até 2030 deve seguir o acordo de biodiversidade que foi fechado na COP15 de Biodiversidade, em Montreal (Canadá), em 2022. A meta estabelecida é de praticamente zerar o desmatamento em áreas sensíveis e de grande biodiversidade.
Além disso, o artigo que trata da preservação de florestas alia a preservação com o cumprimento da meta climática de manter o nível de aquecimento global em 1,5ºC. O texto fortalece iniciativas como o Fundo Amazônia e o Florestas Tropicais para Sempre (FFTS), este segundo encabeçado pelo Brasil e que pode beneficiar 80 países que possuem grandes áreas de vegetação nativa. A meta para o FFTS é captar US$ 250 bilhões com os países mais ricos.
No entanto, segundo observa Alexandre Prado, ao abordar exclusivamente florestas, o documento final da COP28 “acaba penalizando outros importantes biomas que estão sendo devastados, como o Cerrado brasileiro”.
Além disso, também ficaram de fora questões defendidas por diversos países relacionadas aos direitos humanos e sobre a participação indígena no cumprimento das metas climáticas, ponto defendido pelos negociadores do Brasil, mas que foi alvo de resistências internas dentro da delegação do país.
A COP28 evidenciou contradições no governo de coalizão liderado por Lula. Apesar de ser a edição com maior participação indígena, incluindo a ministra Sonia Guajajara como chefe de delegação brasileira, os povos tradicionais foram marginalizados nas principais discussões relacionadas às ações e ao financiamento das mudanças climáticas.
No Pavilhão Brasil, executivos de grandes empresas, políticos e gestores financeiros focaram em transição energética, estocagem de carbono e aumento de energia renovável sem abordar as necessidades indígenas. Durante um painel com executivos da mineradora Vale, indígenas protestaram e cobraram espaço de fala no painel.
Ingrid Sateré Mawé, da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), diz que a não inclusão dos povos indígenas no texto final da conferência ocorre porque é “compatível com o que aconteceu na conferência”.
Tudo isso em meio a um contexto de preocupação com a realização de leilões de petróleo e gás na Amazônia e a possibilidade de abertura de terras indígenas para projetos agropecuários e construção de hidrelétricas, como promete a bancada do agronegócio para sessão que vai analisar vetos do presidente Lula.
“Os povos indígenas estão sendo afetados pelas empresas de mineração, pelo avanço do agronegócio e pelos projetos que pretendem explorar mais petróleo e gás na Amazônia. Não houve participação dos indígenas nessas discussões. O discurso não bate com a realidade, e isso nos preocupa bastante”, aponta Sateré.
Antes de embarcar para a COP28, a ministra Sonia Guajajara disse em entrevista à InfoAmazonia que a derrubada dos vetos de Lula na lei que mexe nos direitos indígenas contraria compromissos climáticos do país. Durante o evento, a ministra disse que seguirá com agenda para tentar reverter o quadro anunciado pela bancada ruralista.