16 Dezembro 2023
"O leilão é vergonhoso em todos os aspectos, inclusive na óbvia inconsistência com as declarações do Brasil na COP28 [15]. Internamente, mostra mais uma vez que apenas o Ministério do Meio Ambiente está comprometido em conter os danos ambientais, enquanto o restante do governo se sente à vontade para implementar os projetos mais prejudiciais", escreve Philip Martin Fearnside, em artigo publicado por Amazônia Real, 14-12-2023.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria.
Um dia após o fim da cúpula climática COP28, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) realizou o que é conhecido como o leilão “Fim do Mundo”, vendendo direitos de perfuração em 602 novas áreas de exploração [1,2], incluindo 21 na bacia do rio Amazonas.
Mais da metade dos blocos na Amazônia (12 blocos) estão localizados em áreas que impactam diretamente até 20 terras indígenas [3] e zonas de amortecimento de pelo menos 15 unidades de conservação [4], e em territórios quilombolas demarcados [5]. A oferta também inclui áreas ambientalmente sensíveis para perfuração offshore, como a área de Fernanda de Noronha [6] e áreas de recifes de coral ao longo de toda a costa do Brasil [7]. As áreas “em estudo”, não incluídas no presente leilão, incluem a primeira parte do desastroso projeto de petróleo e gás “Área Sedimentar do Solimões” (Figura 1). Este projeto impulsionaria a construção de estradas e o desmatamento na vasta área de Tran-Purus, na metade ocidental do estado do Amazonas [8-11].
Mapa da exploração de petróleo e gás na Amazônia brasileira. São 52 blocos já contratados (cinza), 307 em estudo (laranja) e 92 prontos para oferta (vermelho) de um total de 451 áreas de exploração previstas. (Reprodução: Arayara)
O momento do leilão mostra a completa desconexão entre o discurso do governo Lula sobre o meio ambiente e as ações concretas mais importantes que o governo está tomando. É certamente uma coincidência que o leilão seja um dia depois da COP28, talvez sugerindo que tenha sido um pouco adiado para não acrescentar mais um acontecimento escandaloso durante a própria COP. No entanto, durante o evento, o Presidente Lula concordou com a adesão do Brasil ao grupo OPEP+ de países exportadores de petróleo, chamando a atenção para o mesmo tipo de hipocrisia [12]. As emissões de carbono da queima do petróleo a ser bombeado nos blocos vendidos no leilão representam uma “bomba” para as mudanças climáticas [13].
Os impactos da extração de petróleo em áreas indígenas e áreas com outros povos tradicionais são muitas vezes catastróficos, como mostra a experiência no Peru e no Equador [14]. Além dos impactos sociais e de saúde do contato com os trabalhadores dos projetos petrolíferos, são comuns fugas e derrames, afetando os peixes e outros recursos que sustentam os povos tradicionais.
O leilão é vergonhoso em todos os aspectos, inclusive na óbvia inconsistência com as declarações do Brasil na COP28 [15]. Internamente, mostra mais uma vez que apenas o Ministério do Meio Ambiente está comprometido em conter os danos ambientais, enquanto o restante do governo se sente à vontade para implementar os projetos mais prejudiciais, como a construção da Rodovia BR-319 e outras estradas que abrem a floresta amazônica ao desmatamento [16], a legalizando reivindicações ilegais de terras em terras do governo, um dos grandes motores de desmatamento [17], a autorização de mais de 500 agrotóxicos perigosos [18], e a iniciação e expansão de projetos de extração de petróleo, incluindo aqueles em áreas que danificam florestas tropicais e povos indígenas, e a extração de petróleo offshore nas áreas mais biologicamente diversas e frágeis e em profundidades nas quais os vazamentos não podem ser contidos [19]. O presidente Lula precisa controlar as tendências antiambientais de seus ministros, e alguns, como o ministro de Minas e Energia, precisam ser substituídos imediatamente.
[1] Bispo, F. 2023. 21 blocos para petróleo e gás na Amazônia serão ofertados um dia depois da COP28. InfoAmazonia, 08 de dezembro de 2023.
[2] Instituto Internacional Arayara. 2023. Análises do Leilão de Petróleo e Gás: Diagnóstico do Risco Socioambiental do 4º Ciclo da Oferta Permanente da ANP. Instituto Internacional Arayara, Brasília, DF.
[3] Instituto Internacional Arayara. 2023. Análises do Leilão de Petróleo e Gás: Análise de risco socioambiental e climático das áreas do 4o Ciclo de Oferta Permanente da ANP sobre Terras Indígenas. Instituto Internacional Arayara, Brasília, DF. 22 pp.
[4] Instituto Internacional Arayara. 2023. Análises do Leilão de Petróleo e Gás: Análise de risco socioambiental e climático das áreas do 4o Ciclo de Oferta Permanente da ANP sobre as Unidades de Conservação. Instituto Internacional Arayara, Brasília, DF. 25 pp.
[5] Instituto Internacional Arayara. 2023. Análises do Leilão de Petróleo e Gás: Análise5de risco socioambiental e climático das áreas do 4o Ciclo de Oferta Permanente da ANP sobre Territórios Quilombolas. Instituto Internacional Arayara, Brasília, DF. 26 pp.
[6] Instituto Internacional Arayara. 2023. Análises do Leilão de Petróleo e Gás: Análise de risco socioambiental e climático das áreas do 4o Ciclo de Oferta Permanente da ANP sobre os Montes Oceânicos da Cadeia Submarina de Fernando de Noronha. Instituto Internacional Arayara, Brasília, DF. 22
[7] Instituto Internacional Arayara. 2023. Análises do Leilão de Petróleo e Gás: Análise de Risco Socioambiental e Climático do 4o Ciclo de Oferta Permanente da ANP a áreas do Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Ambientes Coralíneos. Instituto Internacional Arayara, Brasília, DF. 15 pp.
[8] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.
[10] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real – Série completa. Amazônia Real.
[11] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real, série completa. Amazônia Real.
[12] Fearnside, P.M. 2023. O que o Brasil deveria ter dito na COP28, mas não disse. Amazônia Real, 05 de dezembro de 2023.
[13] ClimaInfo. 2023. Brasil ganha prêmio “Fóssil do Dia” na COP28 por adesão à OPEP+. ClimaInfo, 05 e dezembro de 2023.
[14] ClimaInfo. 2023. “Bomba” de emissões, pior leilão de petróleo da história do Brasil tem áreas de conflito socioambiental. ClimaInfo, 08 e dezembro de 2023.
[15] Koenig, K. 2019. The Amazon Sacred Headwaters: Indigenous Rainforest “Territories for Life” Under Threat. Amazon Watch. Oakland, California, EUA. 42 pp.
[16] Fearnside, P.M. 2021. Audiências públicas BR-319: Um atentado aos interesses nacionais do Brasil e ao futuro da Amazônia. Amazônia Real, 28 de setembro de 2021.
[17] Fearnside, P.M. 2023. Lula e a questão fundiária na Amazônia. Amazônia Real, 17 de janeiro de 2023.
[18] Altino, L. 2023. Após recorde com Bolsonaro, autorização de agrotóxicos segue mesmo ritmo no governo Lula. O Globo, 11 de dezembro de 2023.
[19] Fearnside, P.M. 2019. O derramamento de petróleo no Nordeste: Um alerta para o Pré-Sal e para Amazônia. Amazônia Real, 28 de outubro de 2019.
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O leilão do “Fim do Mundo” para exploração de gás e petróleo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU