16 Junho 2020
Maior economia europeia e um dos maiores consumidores de gás fóssil do mundo, Alemanha projeta futuro descarbonizado com protagonismo do hidrogênio verde.
A reportagem é de Cínthia Leone, publicada por EcoDebate, 15-06-2020.
Investimentos de governos e relatórios de institutos de pesquisa sinalizam que a reconstrução da economia mundial após a pandemia de COVID-19 ampliará a participação das energias renováveis. Os destaques são a energia solar – que bateu mais um recorde de barateamento de custos – e a corrida pelo hidrogênio verde. Um relatório que mapeia o desempenho da cadeia produtiva de combustíveis fósseis sugere que a descarbonização das principais economias do mundo levará a uma aguda desvalorização dos ativos do setor, aumentando o risco de investimentos. O cenário pode representar uma grave ameaça ao sistema financeiro internacional – empresas de combustíveis fósseis são 25% do mercado mundial de ações.
Um dos sinais mais claros desse movimento veio da Alemanha, que investirá 9 bilhões de euros para se tornar “a número um do mundo no uso do hidrogênio verde”. A medida é parte das ações para descarbonização da economia alemã, tema central do megapacote de recuperação do país pós-pandemia. Nessa corrida, os alemães largam atrás de Coréia do Sul e do Japão, que já apresentaram medidas para incentivar o combustível em suas indústrias, mas se antecipa ao restante do bloco europeu, que anunciará sua “rota do hidrogênio” no dia 24 de junho.
Os setores escolhidos na Alemanha para o hidrogênio são transportes marítimos, transporte de mercadorias pesadas, aviação e indústrias, começando pelas siderúrgica e química. Combustíveis fósseis dominam até 99% da produção alemã nessas áreas. A estratégia reconhece que o hidrogênio é um recurso escasso e que seu uso deve ser limitado a áreas prioritárias – setores difíceis de descarbonizar por eletrificação. Com essa decisão, o país pode reduzir a dependência de importações de gás natural da Rússia e eliminar a necessidade de investimentos estatais no setor, como grandes terminais de gás natural liquefeito.
O anúncio do pacote de 9 bilhões de euros na semana passada ainda não tinha deixado claro a informação reforçada hoje de que somente o hidrogênio verde será considerado para fins de descarbonização da economia alemã. Embora a combustão do hidrogênio emita apenas vapor de água na atmosfera, o processo de obtenção do gás depende de uma fonte de energia adicional – que pode ser renovável ou fóssil. Neste último caso, o combustível obtido não pode ser considerado “verde”. Apesar de reconhecer que somente o hidrogênio verde oferece neutralidade de carbono, o governo alemão discute se o país deve promover paralelamente o hidrogênio ‘azul’ baseado em gás fóssil por um período de transição.
Felix Heilmann, pesquisador do think tank climático E3G, avalia que o reconhecimento do governo de que apenas o hidrogênio verde de fontes renováveis é sustentável reduz o risco a longo prazo de o gás fóssil sobreviver pela porta dos fundos. “Essa estratégia mostra que um dos maiores consumidores de gás fóssil do mundo já está se preparando para um futuro sem ele”, analisa Heilmann.
“Com o lançamento de sua estratégia de hidrogênio no meio de debates sobre a recuperação econômica, a Alemanha mostra que investimentos de longo prazo em tecnologias de zero carbono são uma parte necessária da resposta à crise”, avalia Claudia Kemfert, especialista em economia e energia do Instituto Alemão de Pesquisas Econômicas (DIW). Para ela, a ação também sinaliza que, assim como o carvão, “gases fósseis não têm futuro.”
“Juntamente com a UE, a Alemanha proativamente promove o planejamento de critérios ambiciosos de sustentabilidade e sistemas de certificação confiáveis que ajudam a acelerar o desenvolvimento de um mercado internacional de hidrogênio”, afirma Andrea Wiesholzer, assessor de Política da Organização Germanwatch. “Os países que quiserem fazer parte dessa discussão devem se envolver agora.”
Especialistas alertam que não há uma bala de prata para descarbonização: devido à capacidade limitada de produção e importação de hidrogênio verde, a eficiência energética e a eletrificação deverão ser a primeira escolha na maioria dos setores.
A necessidade de criar hidrogênio a partir de energia limpa deve impulsionar os setores de energia solar em outros países, já que a maior parte da demanda alemã por hidrogênio verde terá que ser importada. A estratégia apresentada hoje nomeia especificamente os países da UE como potenciais fornecedores, mas também indica parcerias com países em desenvolvimento – 2 bilhões de euros do pacote de recuperação do país estão destinados para a criação dessas plantas.
A indústria pesada alemã já vinha apostando fortemente em hidrogênio limpo em seus planos de descarbonização de longo prazo, e muitas empresas lançaram projetos-piloto para testar tecnologias de hidrogênio de baixa emissão. O apoio do governo e o estabelecimento de modelos de negócios viáveis a partir da nova estratégia de hidrogênio foram recebidos com otimismo pelos setores produtivos. Outra sinalização bem vista pelo setor é a de que a Alemanha deve usar sua presidência da União Europeia, a partir do segundo semestre de 2020, para avançar com a criação dos mercados e infraestruturas necessários para o hidrogênio .
Apesar do impacto devastador do COVID-19, durante os meses de abril e maio, as energias renováveis continuaram a bater recordes, como exemplifica o relatório do Institute for Energy Economics and Financial Analysis da Austrália (IEEFA).
Surpreendentemente, em abril de 2020, a Emirates Water and Electricity Company (EWEC) concedeu 1,5 gigawatt (GW) da energia solar gerada em Al Dhafra, Abu Dhabi, ao grupo francês de energia EDF e à empresa solar chinesa JinkoPower. O consórcio ofereceu $13,50 / MWh. Esse valor está 13% abaixo do recorde anterior, observado em janeiro, quando a Qatar General Electricity e Water Corp (Kahramaa) leiloou 800 megawatt (MW) a $15,60 / MWh para Total e Marubeni Corp.
O autor do relatório, Tim Buckley, diretor de Estudos de Financiamento de Energia do IEEFA para o sul da Ásia, diz que um dos impactos relevantes do COVID-19 tem sido o colapso das taxas de juros nos mercados globais. Esse barateamento no custo do capital, segundo ele, foi somado à queda de 20% nos preços dos módulos solares nos últimos ano. “Apesar da pandemia global, ou talvez em face dela, o impulso mundial para a transição energética continua em ritmo acelerado”, diz Buckley.
O novo relatório do Carbon Tracker deste mês alerta que a indústria de combustíveis fósseis está se aproximando de um declínio devido à concorrência com tecnologias limpas e às políticas governamentais mais rígidas para atingir metas climáticas e aumentar a segurança energética. O tamanho desse setor na economia sugere que esse declínio pode representar uma ameaça significativa para a estabilidade financeira do mundo – empresas do sistema de combustíveis fósseis valem $18 trilhões, um quarto do valor total dos mercados globais de ações.
“É uma grande oportunidade para os países que importam combustíveis fósseis, que podem economizar trilhões de dólares mudando para uma economia de baixo carbono, em conformidade com o Acordo de Paris”, afirma o autor do relatório, Kingsmill Bond, estrategista de Energia da Carbon Tracker. “Agora é o momento de planejar uma saída ordenada dos ativos em combustíveis fósseis e gerenciar o impacto na economia global, em vez de tentar sustentar o insustentável.”
Leia os relatórios:
Estratégia alemã para hidrogênio verde. Disponível aqui.
Relatório do IEEFA. (Renewables Continue to Break Records Despite COVID-19 Impacts). Disponível aqui.
Relatório Carbon Tracker. Disponível aqui.
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Descarbonização da Economia: Projetos para recuperação ‘verde’ da economia são bom sinal para renováveis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU